Um choro baixo, sufocado, podia ser ouvido no canto da Sala Roberto Pires, na Associação Bahiana de Imprensa (ABI). O comerciante Jurandy de Santana, de 44 anos, não conseguiu conter as lágrimas durante uma das fortes cenas do documentário “Sem descanso” (2018), do cineasta francês Bernard Attal. O filme reconstrói sua jornada em busca do filho Geovane, torturado e morto por policiais militares em agosto de 2014. A obra foi lançada no Panorama Internacional Coisa de Cinema, no último dia 17, e exibida segunda-feira (10) na ABI, em alusão ao aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O caso veio à tona após reportagens do jornal Correio* denunciarem o sumiço e a saga do pai. A série “Onde está Geovane?”, iniciada pelo repórter Bruno Wendel, se tornou popular e chamou a atenção do diretor Bernard Attal. Em Salvador desde 2005, o cineasta resolveu fazer um filme para mostrar a história e estimular o debate sobre segurança pública. Junto à jornalista e produtora cultural Fabíola Aquino, Attal escreveu o roteiro e passou os últimos três anos produzindo o documentário. O filme problematiza temáticas como a pena de morte, escravidão, racismo, assassinato da juventude negra, autos de resistência e porte de arma.
A obra traz entrevistas com familiares da vítima e ativistas de direitos humanos. De acordo com o cineasta, a intenção nunca foi fazer um filme contra a polícia. O objetivo era refletir sobre as raízes da violência policial no Brasil. “É muito gratificante ver que o público fica impactado com o filme. As pessoas não se dão conta do que significa esse tipo de violência no dia a dia. Espero que o filme ajude a entender. A violência não é uma fatalidade, ela pode ser combatida. Tem um caminho e esse caminho não é de mais violência”, afirmou. “A falta de diálogo e de trocas abertas faz esse tipo de drama acontecer”, defende. O Governo do Estado da Bahia, Judiciário e Ministério Público se recusaram a participar.
Bernard Attal elogiou a postura corajosa de Jurandy e considerou “impressionante” a cobertura dispensada pelo jornal ao que ficou conhecido como Caso Geovane. “É muito difícil para um jornalista acompanhar um caso por muito tempo. Nesse episódio, a equipe foi na contramão”. Para ele, a nobreza da imprensa está na maneira como acompanharam a jornada de Jurandy. “Precisamos resgatar o papel do jornalismo. Ao invés de desconfiar da imprensa e reduzir o papel dela, temos que valorizar e dar recursos aos profissionais”.
Fabíola Aquino destaca o paralelo que foi feito entre as mortes de Geovane e Michael Brown (18), jovem negro morto no dia 9 de agosto de 2014 por um policial, nos Estados Unidos. Mas, diferentemente daqui, a população de Ferguson se mobilizou. A jornalista ponderou o fato de o então presidente Barack Obama ter denunciado publicamente as práticas racistas por parte da polícia e a desigualdade de tratamento dada aos afroamericanos. Após o episódio, a polícia local passou a usar câmeras acopladas ao uniforme. Para Aquino, em um cenário Donald Trump, o Caso Mike teria outros contornos.
“É um filme plugado com a realidade mundial à medida que faz o link com o jovem norte-americano. Tem as colorações sociais que vão deixando a gente arrepiado. Um filme fundamental”, avalia o jornalista e crítico de cinema Marcos Pierry. Segundo ele, o documentário mostra o fio da navalha em que vive o jornalista. “Entre o drama humano de um personagem real, que é um pai, e nossa obrigação de apurar”.
O filme “Sem descanso” vai ser enviado a festivais no Brasil e no exterior. Depois da temporada nos festivais, será lançado nas salas comerciais. Um programa em parceria com o jornal Correio* vai possibilitar a exibição em comunidades da capital baiana.
Sem descanso
“Se não fosse a imprensa, hoje eu não estaria aqui”, afirma Jurandy, enaltecendo o trabalho do jornalista Bruno Wendel. De acordo com ele, o repórter estendeu a mão enquanto o Estado lhe virou as costas. Personagem central do documentário, Jurandy investigou por conta própria o desaparecimento do filho. E foi graças a sua coragem e busca incansável que a história do assassinato de Geovane pôde ser desvendada. No dia do desaparecimento, ele percorreu delegacias e hospitais, mas não havia pista do jovem abordado por policiais, no bairro da Calçada. “Vaguei como um zumbi, não tinha sono, fome ou sede. Não podia voltar para casa porque não tinha notícia para dar a meus pais”.
Numa das delegacias a que recorreu por dias, um policial orientou Jurandy a procurar circuitos de vigilância na rua onde ocorreu a ação policial. A partir das imagens da câmera de uma das casas foi possível ver o momento em que Geovane era parado com sua moto e passa a ser agredido pelos policiais. Em seguida, é levado na viatura. “Procurei Bruno já com as imagens do meu filho sendo abordado pelos policiais. Se eles soubessem que eu estava procurando provas, teriam me eliminado antes de eu conseguir a filmagem”.
Com a gravação no pen drive, Jurandy percorre novamente as delegacias de Salvador. A história foi contada pelo jornal Correio* na edição do dia 13 de agosto. Dois dias após a publicação ganhar as ruas, a polícia indicou que era do rapaz um corpo e uma cabeça encontrados dias antes, em partes distintas da cidade. A perícia apontou que Geovane morreu por decapitação e foi carbonizado, teve arrancados os órgãos genitais, mãos e a tatuagem com o nome de seu pai. Em homenagem ao filho, Jurandy tatuou “Geovane” na região das costelas do lado esquerdo, mesmo local onde ficava a tatuagem extraída da pele do jovem.
Emocionado, Jurandy revelou que, na primeira vez que foi chamado a comparecer à Corregedoria da PM, encontrou os acusados reunidos, rindo e conversando na sala de espera. “Eu estava, sem saber, no meio dos assassinos do meu filho”. Seu jeito simples e semblante sofrido não escondem a revolta causada pela sensação de impunidade. “Quatro anos se passaram e não vemos nada. Nem uma ação, nem uma palavra sobre o andamento das investigações. Eles falam que estão ouvindo, para depois ter o julgamento”. Seis meses atrás, Jurandy soube que cerca de 20 pessoas tinham sido ouvidas. Os policiais seguem trabalhando.
Tão repudiada, tão pouco lida
Para o advogado Eduardo Rodrigues, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Seção Bahia, em outras circunstâncias o crime teria resposta. “Essa investigação não anda porque é sobre uma pessoa que tem passagem pela polícia, é de família pobre, morador de periferia. Temos outros casos que têm a coincidência de pessoas negras ou pardas e não necessariamente à margem da lei”, observa.
No filme, Rodrigues comenta os polêmicos autos de resistência, que embora não contem com lei específica, têm amparo no Código Penal. Neles, o policial mata o suspeito, alega legítima defesa e resistência à prisão. As testemunhas exigidas pelo CP são os próprios colegas. “Precisamos discutir a pena de morte. Vivemos num país onde, de fato, ela existe. Uma pena de morte seletiva, onde não há julgamento e nem sempre as pessoas que executam têm algum senso de justiça”.
Segundo ele, não é que a lei seja menos ou mais dura. O problema seria a aplicação estatal. “Quando a aplicação falha, dá liberdade a quem está na ponta querer ser ele o acusador, juiz e executor de uma pena que nem existe”, explica. “Uma parcela da sociedade repudia os direitos humanos justamente por sequer saber do que se trata”. Nesse grupo, de acordo com o advogado, estão pessoas para as quais os tais “direitos humanos” simbolizam uma instituição ou pessoa disposta a tudo para defender quem está à margem da lei.
Eduardo Rodrigues afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento produzido depois da Segunda Guerra Mundial, serve de base para evitar atentados contra a nossa dignidade, assim como a Constituição Federal promulgada no Brasil depois de um longo período de ditadura militar. Para ele, falta a percepção de que os atores que militam pela causa reivindicam o cumprimento das leis, ao invés de tentar livrar criminosos das punições. “O diálogo para os direitos humanos passa pela empatia”.
O advogado Mário Bastos, colega de Eduardo Rodrigues na OAB/BA, também rejeita a tese de que o recrudescimento da pena resolve a violência. “É importante que vocês, jornalistas, pautem na sociedade uma discussão muito séria, para desbancar esse mito. Cientificamente não se sustenta. A segurança pública eficiente se dá por outros pilares”. Ele aponta como principal problema a seletividade na aplicação das penas. “Assim como nós temos uma seletividade nessa pena de morte, que tem um perfil sociográfico bem definido. “A imprensa precisa abordar, evitando o sensacionalismo que vai acompanhar o discurso populista que está ganhando espaço na sociedade, onde políticos falam escancaradamente que é aceitável matar pessoas”.
Relembre o caso
No dia 2 de agosto de 2014, Jurandy de Santana recebe um telefonema da nora, Jamile Santos, esposa de seu filho mais velho, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos. Ela relata que o rapaz havia sido visto por uma vizinha parado numa abordagem policial, no bairro da Calçada. Jurandy passa a procurar pelo filho e investiga o sumiço por conta própria, tendo chegado a uma filmagem que registrou a ação e o momento em que Geovane é levado no fundo da viatura da Rondesp Baía de Todos-os-Santos.
48h depois de uma reportagem ser publicada pelo jornal Correio*, a polícia indica ser do rapaz um corpo e uma cabeça encontrados dias atrás, em partes distintas da cidade. Geovane vahia sido morto pelos policiais. O corpo do jovem foi enterrado no dia 24 de agosto, no município de Serra Preta, no interior da Bahia.
O Ministério Público do Estado (MP-BA) denunciou 11 PMs pelos crimes de sequestro, roubo e homicídio qualificado por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima. Dos onze, seis policias foram também denunciados por ocultação de cadáver. As investigações chegaram aos agentes através do relatório do GPS das viaturas, que comprovaram que os veículos estiveram próximo ao Parque de São Bartolomeu e no bairro de Campinas de Pirajá, locais onde os restos mortais da vítima foram deixados, horas depois do seu sequestro. Há dois anos, o 1º Juízo da 1ª Vara do Júri anunciou que sete dos acusados iriam a júri popular. Até agora, no entanto, não houve julgamentos.