Especial Fake News – Parte 2

CURA MILAGROSA

Tratamentos alternativos podem trazer consequências graves

Por Francisco Artur

O incômodo causado pelas injeções diárias de insulina nem se compara ao arrependimento da estudante de administração Gleide Carvalho, 23 anos. Diabética tipo 1 há 13 anos, ela trocou, no ano passado, o uso de dois tipos de insulina do tratamento convencional pela terapia alternativa, à base chás da folha conhecida como pata de vaca. “Para mim, o chá era como se fosse água. Para todo lugar que ia, levava uma garrafa térmica, cheia de chá”, lembrou a estudante, que à época trabalhava em uma farmácia de medicamentos naturais.

Foi a partir de conversas com uma colega de trabalho que Gleide foi informada da suposta eficácia do chá de pata de vaca para tratar a diabetes. “Minha colega disse que tinha um marido diabético, e ele usava a bebida para controlar a glicemia. Resolvi testar para me livrar das aplicações de insulina”, contou.

A busca pelo equívoco

Gleide Carvalho trocou o tratamento de Diabetes convencional por chá – Foto: Pedro Vilas Boas

Antes de adotar o tratamento, porém, Gleide fez uma rápida busca no Google, até encontrar textos e depoimentos que estivessem de acordo com a sugestão da amiga de trabalho. “Pesquisei frases relacionadas a chás e remédios caseiros para tratar a diabetes. Achei diversos depoimentos de pessoas que abandonaram a medicina convencional, para tomar chá de pata de vaca”, explicou.

Quanto à apuração de resultados do Google relacionados ao uso de chás para o tratamento da doença autoimune que destrói as células produtoras de insulina do pâncreas, Gleide estava certa. A equipe de reportagem fez uma pesquisa no servidor de buscas, utilizando as seguintes palavras: chá de pata de, vaca diabetes. Os resultados encontrados atestam as informações citadas por Gleide, já que apareceram links como: “Trate o diabetes tomando chá de pata de vaca” ou “clique aqui para aprender como controlar o diabetes com chá de pata de vaca”.

Palavra do médico

Embora haja registros do alto índice de interesse por chás para controlar a diabetes, não existe uma prova científica disso. No site da entidade médica responsável para repercutir os modelos de tratamento em diabetes, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), não constam provas da eficácia da bebida da pata de vaca, ou quaisquer outros chás. Esse tratamento, portanto, configura-se como um conteúdo enganoso.

A adoção de métodos terapêuticos não comprovados, como foi o caso da atitude da paciente diabética tipo 1 Gleide Carvalho, pode trazer consequências desastrosas ao tratamento e, até, à vida do paciente. Segundo a endocrinologista Reine Chaves, diretora do Centro de Diabetes e Endocrinologia da Bahia (Cedeba), quaisquer medidas relacionadas à saúde do diabético devem ser baseadas em relatórios científicos. “O diabético tipo 1 não produz insulina, hormônio responsável pelo transporte de carboidratos para a célula. Por isso, o paciente precisa injetar a substância, e não tomar um chá que vai curar a doença”, explicou a endocrinologista.

  • Diretora do Cedeba faz alerta à população:

Além da visita ao site de alguma entidade de representação médica, como a SBEM, o paciente pode checar informações relacionada à saúde por meio do número de whatsapp do Ministério da Saúde: (61) 992894640. Funciona assim: o cidadão se identifica, e envia alguma informação de caráter duvidoso. O Ministério da Saúde, então, aciona a equipe técnica, apura o caso e, envia uma resposta ao paciente.

De acordo com a assessoria de comunicação da pasta, em um mês de lançamento da ferramenta, entre 27 de agosto e 27 de setembro, a ferramenta Ministério da Saúde recebeu 2251 mensagens. Destas, segundo dados da pasta, 416 foram enquadradas como fake news. Entre as desinformações recorrentes, destacam-se o câncer de olho causado pelo uso de smartphones, vírus HIV sendo injetado dentro de frutas e a presença de uma bactéria no feijão que pode ser combatida com vinagre.

Por abandonar o tratamento com insulinas, Gleide sentiu as consequências desastrosas citadas pela médica. A jovem estudante ingeriu diariamente, por três meses, xícaras do chá da pata de vaca. “Continuei com esse tratamento até o dia em que fui parar na emergência da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), com a glicemia muito alta. Quando fiz os exames, minha hemoglobina glicada estava em 11,2, sendo que o padrão de um paciente diabético é entre 6,8 a 7,0”, disse Gleide, assustada ao lembrar do alto valor referente ao laudo que atesta uma média da glicemia dos últimos 90 dias.

Passado o pesadelo dos momentos em que o açúcar no sangue estava descontrolado, por causa da falta de insulina, Gleide aprendeu que o incômodo de algumas aplicações de injeção é mais agradável que estar em uma cama de hospital. “Eu tenho uma deficiência no pâncreas, sim. Mas hoje sou muito feliz por fazer o tratamento adequado da minha diabetes”, confessou a jovem.

Fake news no tratamento do câncer

Se Gleide abandonou a terapia da medicina convencional para tomar chás de pata de vaca, o agricultor José Augusto Pereira, 79, que, no ano de 2009, descobriu um câncer no estômago em estado grave, optou por acrescentar sucos caseiros à quimioterapia. Desesperado, seu filho, o autônomo Silvio Pereira, 49, entendeu que o consumo de líquidos era uma boa alternativa para o paciente que, sequer, poderia submeter-se a uma mesa cirúrgica.

Uma das cunhadas de Silvio descobriu então sucos e chás que, supostamente, contribuiriam para o tratamento contra a doença de seu José. A receita chegou aos ouvidos da família através de outros parentes de pacientes com câncer, que ensinavam o “medicamento” em grupos de redes sociais. “Ela se associou com um povo que tinha os mesmos problemas, e ficavam trocando informações, indicava que o suco era bom, e ela continuou dando a ele esse suco”, contou Silvio.

O agricultor, que viajou de Serrinha, no Nordeste baiano, para Salvador, com a esperança de se curar da doença na capital, alinhou o tratamento convencional aos sucos e chás da internet. Porém, uma dessas receitas era feita a base de abacaxi, uma fruta muito ácida. “O médico disse que não era para dar como ela tava dando, todos os dias, ela só dava isso a ele. E foi agravando mais ainda, aumentava mais a gravidade da lesão do estômago”, explicou o autônomo.

Seu José não resistiu à doença e morreu ainda no leito hospitalar. Sobre a possibilidade de ter o pai vivo, caso a doença não tivesse sido agravada pela ingestão do suco, Silvio desvia o olhar e não responde diretamente. “Ele não comia mais nada. Só dava isso a ele”.

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Série completa

Parte 1 – VÍTIMA DA MENTIRA: De trabalhador a criminoso. O impacto das fake news

Parte 2 – CURA MILAGROSA: Tratamentos alternativos podem trazer consequências graves

Parte 3 – A LEI: Justiça Eleitoral em guerra indefinida contra as fake news

Parte 4 – CHECAGEM: Apuração basta? Saiba o que dizem pesquisadores e editores de veículos baianos

Parte 5 – RASTILHO DE PÓLVORA: Educação para mídia online

*Este texto é parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)/2018 apresentado ao Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge) pelos alunos Francisco Artur Filho, Lívia Oliveira, Pedro Vilas Boas e Roberto Aguiar.

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