Nos quase sete anos de vigência da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2012), profissionais da imprensa utilizaram a ferramenta para produzir matérias investigativas que trouxeram à tona escândalos de corrupção e outros crimes contra a gestão pública. Agora, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) decidiu ampliar as possibilidades de restringir o acesso a documentos públicos, por meio de um decreto publicado na última quarta-feira (23), no Diário Oficial da União (DOU). Jornalistas e entidades que militam pela transparência reagiram e pedem revogação da medida. A principal preocupação é que, ao abrir o leque de servidores aptos a recorrerem ao sigilo de dados, se crie mais uma barreira na transparência entre governo e sociedade.
Antes da assinatura do Decreto nº 9.690 (que altera o Decreto nº 7.724) pelo presidente interino Hamilton Mourão (PRTB), a classificação de informações com o grau máximo de sigilo: de 25 anos (dados ultrassecretos) ou 15 anos (dados secretos) só poderia ser feita por presidente, vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas ou consulares permanentes no exterior. O texto atual permite que essas altas autoridades estendam a possibilidade a ocupantes de cargos comissionados.
O jornalista Breno Costa, fundador do site Brio, classifica o decreto como “democratização da censura” e destaca que, na prática, mais de 1.200 pessoas no governo federal poderão receber poderes para definir que documentos públicos fiquem em segredo pelo menos até 2034. “O governo deu um primeiro passo para uma potencial guinada contra a transparência”, afirmou. Ele alega que a decretação de sigilo não tem um parâmetro específico. “É muito subjetiva. Vai acabar abrindo margem para deixar ocultos documentos que, se revelados, poderiam provocar mudanças na administração pública”.
Para ele, é perigoso não poder reportar de maneira precisa e completa, por falta de acesso a documentos que provam os fatos. De olho na administração pública, Costa lançou uma newsletter semanal “Brasil Real Oficial” (aqui), com ações oficiais “escondidas” nas letras miúdas do Diário Oficial. “Você não consegue decretar sigilo sobre o Diário. Mas ele não é feito para a população em geral acompanhar. Nem jornalista gosta de ler. Então, a ideia é poder traduzir, porque, às vezes, medidas muito importantes se dão em uma única linha”, explicou.
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No bojo das diferentes iniciativas para abrir dados do governo, o jornalista Léo Arcoverde criou em 2015 o Fiquem Sabendo, um site dedicado a reportagens de interesse público feitas com informações obtidas por meio da Lei de Acesso. Ele ressalta a importância do mecanismo e avalia as consequências para o trabalho de apuração. “O decreto vai contra o espírito da lei”, analisa. De acordo com Arcoverde, a LAI veio para criar práticas que não eram adotadas pela maior parte da administração pública. “Temos um histórico de sigilo do poder público e uma lei muito recente de acesso à informação. Mesmo nesses anos de vigência, tem muita coisa que a gente não acessou até hoje”.
Ao lado dos jornalistas Maria Vitória Ramos, Matheus Moreira e Luiz Fernando Toledo, Léo lançou este mês a newsletter quinzenal “Don’t LAI to me”, a primeira do Brasil sobre a LAI. A proposta é divulgar notícias, dicas e reportagens produzidas sobre ou baseadas em dados obtidos por meio do dispositivo. O serviço gratuito tem como objetivo cunhar uma rede para fomentar a transparência pública e o controle social. “Precisamos ficar atentos e nunca deixar de pedir informações aos poderes públicos”, completa.
E sem a LAI?
Aliada dos jornalistas, a Lei de Acesso se mostrou fundamental para a produção de reportagens que revelaram desde dados inéditos sobre a crise hídrica histórica em São Paulo entre 2014 e 2015, por exemplo, até desdobramentos de incursões policiais como a Operação Lava-Jato. Com base na LAI, o Fiquem Sabendo trouxe a público dados estatísticos que apontam o desvio de 1 munição da Aeronáutica a cada 12 horas, totalizando 10 mil munições extraviadas entre 2005 e 2017. Também com o auxílio da lei, casos de injúria racial registrados em boletins de ocorrência foram levantados no período de 2014 a 2018. Conforme os dados obtidos, a Secretaria Estadual da Segurança Pública de São Paulo registrou 7.231 boletins de ocorrência de injúria racial, o que corresponde a cerca de 1 registro a cada 6 horas.
Foi graças a LAI que a jornalista baiana Clarissa Pacheco, do Jornal Correio*, apurou a compra de jet skis pela Polícia Militar do Estado da Bahia. Ela conta que acompanhava o Diário Oficial e achou estranha a aquisição. “Preferi não recorrer à assessoria. Entrei com o pedido no site e fui atendida por e-mail, dentro do prazo de 20 dias”. A corporação respondeu que a embarcação seria usada pelo Corpo de Bombeiros, que à época da matéria não havia sido desvinculado da PM.
Os critérios para colocar uma informação sob sigilo são discutidos pela jornalista. “Será cada vez mais difícil fazer esse trabalho de vigilância, de acompanhar o que está sendo feito”. Ela destaca que a LAI é importante não só para os jornalistas. “Como cidadãos, temos direito à informação sobre o governo, acho perigoso dificultar essa checagem. O que eles estão fazendo lá que a sociedade não pode saber? Pagamos a conta e não temos direito à prestação de contas?”, questiona.
Quando o sigilo é a regra
Para o advogado Mauro Menezes, ex-presidente da Comissão de Ética da Presidência da República, o acesso à informação produzida pelo poder público é considerado uma das formas de avaliar a qualidade do regime democrático de um país. Ele explica que a LAI nasceu de uma mobilização do Conselho de Transparência da CGU – Controladoria-Geral da União, integrado por diversos entes da sociedade civil, vinculados à questão da ética pública. “Ela parte do princípio de que o governo tem que ser submetido a um controle interno, mas também deve estar aberto a um controle social”.
De acordo com Menezes, a LAI contém uma série de preceitos que emanam da Constituição Federal de 1988, que traz como um dos princípios cardeais da Administração Pública a publicidade. O advogado ponderou sobre os procedimentos, prazos específicos e situações em que pode haver restrição de acesso a informações, como o risco à defesa e à soberania nacionais ou à segurança de altas autoridades. “Mas, o sigilo tem que ser exceção, não uma regra”. Ele destaca ainda que “é grave” o fato desse decreto ter sido editado sem consulta ao Conselho de Transparência Pública, da CGU, onde nasceu a lei.
“Temos aí um retrocesso em relação ao sistema de gestão da transparência. Fala-se muito em prevenção da corrupção, integridade pública. Mas esses propósitos dependem de transparência”, avalia. Para o advogado, a imprensa é fundamental nesse processo. “Falamos muito no Ministério Público, na Polícia Federal, mas os jornalistas têm desempenhado um papel essencial na elucidação das questões de interesse público”.
Mauro Menezes explica que nenhuma das prerrogativas que o cidadão dispunha foram aperfeiçoadas pelo decreto. “Examinei o conteúdo e não vejo ponto positivo. Pelo contrário, o que ressalta é essa opção por uma delegação mais generosa, ampla, do poder de estabelecer requisitos de reserva”. Ele recomenda que a sociedade se manifeste perante os órgãos de governo, para demandar a revogação da medida. “Antes de considerar uma ação judicial, eu acho que os mecanismos democráticos não devem ser dispensados. É preciso uma manifestação clara voltada a assegurar que essa marcha em favor da transparência não venha a ser revertida”.
Ainda na quinta (24), um grupo de entidades que milita pela transparência assinaram um manifesto com críticas às mudanças. Entre os signatários estão as organizações Transparência Brasil, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Artigo 19 e Open Knowledge Brasil. A seção Brasil da Transparência Internacional pediu que o governo “reverta essa decisão e abra um diálogo com a sociedade sobre a questão”.
A Associação Bahiana de Imprensa (ABI) também divulgou nota em que expressa sua preocupação com a edição do decreto. A entidade disse que não vislumbra justificativa plausível para as alterações e pediu aos representantes do governo federal para revogar a nova regulamentação.
CGU e ação popular
Analistas afirmam que as mudanças podem dificultar a obtenção de informações atinentes ao interesse público por meio da LAI, pois mais agentes poderão limitar as regras de acesso. É o caso do advogado Carlos Klomfahs, que moveu uma ação popular contra a medida. Segundo o advogado, “alterar uma lei por decreto já é um expediente inconteste e reiterado pelo Governo Federal em todas as administrações, eivado de inconstitucionalidade porque usurpa competência do Legislativo”. A ação popular contra o sigilo fez o vice-presidente Hamilton Mourão apresentar requerimento para que a União se manifeste.
Fontes da CGU confirmaram ao jornal O Globo que o decreto foi elaborado dentro do Palácio do Planalto e atende a um pleito recorrente dos militares: Só a Marinha é responsável por 96% das informações classificadas como sigilosas (70.035 documentos). O ministro da CGU, Wagner Rosário, não assinou o ato do governo, mas defendeu a medida. Segundo ele, o decreto “não corta a transparência em nada, só descentraliza as decisões”. Em nota (aqui), o órgão disse que a mudança imposta pelo novo decreto não gera “efeitos nocivos” na aplicação da Lei de Acesso à Informação.
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