A canetada do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para flexibilizar as regras para o porte de arma rasurou o Estatuto do Desarmamento sancionado em 2003. O decreto publicado ontem (8) pelo Diário Oficial da União permitirá que, segundo dados do Instituto Sou da Paz, mais de 19 milhões de brasileiros sejam considerados aptos ao porte ou posse, em função da categoria profissional. Sem análise do Congresso Nacional, jornalistas, advogados, políticos, agentes de trânsito, caminhoneiros e até conselheiros tutelares poderão andar armados. Comunicadores baianos criticam a ampliação do direito, antes restrito a policiais, agentes de segurança e promotores. Órgãos que representam trabalhadores da comunicação soltaram notas de repúdio contra a ação do chefe do Executivo. A categoria teme que a medida transforme o jornalista em alvo.
“Sou contra a flexibilização do porte de armas. Só pessoas treinadas e que trabalham no combate à violência devem andar armadas”, afirmou à ABI o jornalista conquistense Casemiro Neto. O apresentador do programa QVP – Que Venha o Povo, da TV Aratu, afirma que o problema da segurança pública “não se resolve armando a população e categorias que não são treinadas para isso”, avaliou. Ele acredita que a violência é promovida por vetores como a desigualdade social brasileira e a falta de investimentos em setores importantes como educação, saúde e trabalho. “Os dados estão aí para mostrar a nossa realidade, que é uma das mais assustadoras do mundo”, observa.
Conhecido por narrar em programas televisivos histórias que parecem ter saído de tramas policiais, o apresentador da TV Record, José Eduardo, vê o decreto com preocupação. “Primeiro, eu sou jornalista e acho que a minha arma, que preciso usar diariamente, é caneta papel e microfone”, destaca o fundador do site BNews. “Não é porque somos reféns do medo que vou colocar uma arma na cintura e sair por aí, atirando sem o mínimo preparo”. Segundo ele, armar a sociedade é “loucura” e pode provocar um “efeito bomba pesada”. O jornalista aponta uma possível intensificação da criminalidade. “A violência já está aí para todo mundo ver. Agora, ele [Bolsonaro] quer colocar na mão da sociedade a defesa?”, questionou.
Perigo na pauta
Um dos profissionais de destaque na cobertura policial da Bahia, o premiado jornalista Bruno Wendel, do jornal Correio*, argumenta que a flexibilidade das regras para o registro contribui para aumentar o número de mortes acidentais. “No dia a dia, nós, repórteres que cobrimos os casos policiais, contamos a história da criança que pegou a arma do pai e matou o irmão ou o amigo, da briga de trânsito que terminou com um motorista morto… Viveremos num bang-bang”, projeta. Para ele, cabe à polícia garantir a segurança de todos, inclusive, dos jornalistas. “Não sou favorável à flexibilização para os jornalistas que atuam na cobertura policial. Quem tem que trabalhar armada é a polícia. São mundos bem distintos. Um repórter policial armado representa um perigo para a categoria”, defende.
Bruno Wendel foi o responsável por dar início ao “Caso Geovane”, uma série de reportagens que revelou o sequestro e assassinato de Geovane Mascarenhas, em Salvador. A cobertura deu voz à família do jovem e ajudou a denunciar 11 policiais pelo crime. Apesar do alto risco suscitado pela atividade, Wendel afirma nunca ter recebido ameaças relacionadas à sua atuação e se posiciona contra o decreto. “O repórter tem que contar histórias, narrar fatos, atuar como um elo entre a comunidade e Estado”. Ele teme que o jornalista vire alvo. “Os criminosos não vão perguntar quem cobre polícia. Um carro de reportagem poderá ser crivado de balas numa tentativa de tomada de armas”, adverte o jornalista.
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Ao contrário de Bruno Wendel, o veterano Maurílio Fontes sofre ameaças explícitas e veladas, como retaliação às denúncias diárias que ele publica no site Alagoinhas Hoje. A caneta de Fontes aterroriza forças políticas há 34 anos. Ontem (8), uma de suas denúncias levou o prefeito de Alagoinhas, Joaquim Neto (PSD), a anular de um concurso que havia sido realizado no município. Mais uma vez contrariando o poder político, o veículo editado por Fontes revelou que os três primeiros colocados são ligados ao gabinete do vereador Juracy Nascimento (DEM). “Nosso trabalho contraria interesses políticos. Já ouvi ‘se continuar, um caminhão vai passar por cima do seu carro’. Nunca cogitei andar armado, apesar de ter inimigos vorazes”, reconheceu o jornalista. “Eu sou virulento quando escrevo, mas eu não defendo a violência e jamais usarei armas. Eu coloco o jornalismo à frente”, afirmou.
A Associação Bahiana de Imprensa (ABI) promoveu uma enquete em sua página no Facebook, para saber a opinião dos profissionais ligados à atividade da imprensa. 91% dos participantes votaram “Não”, rejeitando o decreto. Entre os optantes pelo “Sim” como resposta à pergunta “Profissional de imprensa: Você é a favor do porte de arma para quem realiza cobertura policial?”, o fotojornalista Luiz Hermano Abbehusen acha que “todo cidadão deve se proteger, aprendendo e obedecendo ao manuseio da arma e ter conhecimento para poder saber a hora de usar”, disse. “Hoje só bandidos andam armados, matando trabalhadores e policiais que arriscam suas vidas para nos proteger. Acho justo o cidadão andar prevenido e atento para matar, se preciso, para manter-se vivo”, defende. Os demais profissionais que votaram a favor do decreto ainda não se pronunciaram.
“No limite da lei”
O principal argumento do presidente Bolsonaro foi o resultado do referendo realizado no Brasil em 2005, quando 63,68% dos eleitores disse “não” à proibição do comércio de armas de fogo e munição, contrariando o Estatuto do Desarmamento (ED), alvo frequente de críticas de Bolsonaro. O decreto é considerado uma promessa de campanha dele e era discutido desde o início do governo, tendo passado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro.
“Eu sempre disse que a segurança pública começa dentro de casa”, afirmou. “É com muita satisfação, muito orgulho, que assinei esse decreto na presença de pessoas maravilhosas quanto vocês”, declarou o capitão reformado do Exército, durante a cerimônia de assinatura, na terça (7). Na ocasião, ele disse que o governo atuou “no limite da lei” para editar o decreto.
Em cinco meses de governo Bolsonaro, o STF já foi acionado quase 30 vezes para barrar medidas anunciadas pelo Palácio do Planalto. E dessa vez não foi diferente. O fato de a regulamentação via decreto não seguir os limites gerais fixados pela lei federal gerou intenso debate no campo jurídico. “A judicialização já começou”, avisou o advogado criminalista Domingo Arjones, referindo-se a ações contra o decreto no Supremo.
Para o especialista, há contradições entre o Estatuto do Desarmamento e o decreto. “O decreto fere fatalmente o ED, uma vez que a possibilidade de abertura para o uso e porte de armas de fogo ‘revoga’ tacitamente artigos que restringiam e limitavam o acesso”, explica. “Nunca é correto legislar por decreto, muito menos por decisão judicial. O certo é seguir toda tramitação prevista no processo legislativo, para que o ‘nascimento’ da nova lei passe por todas etapas previstas pela Constituição Federal de 1988”, completa Arjones.
Entidades repudiam
A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) foi uma das primeiras entidades a dizer ‘não’ ao armamento dos profissionais. Em nota oficial, divulgada nesta quarta (8), a FENAJ considera inadequada a alteração do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de 22/12/2003) por decreto, “sem o devido e necessário debate democrático”. Segundo órgão que congrega os jornalistas brasileiros, “o Poder Executivo não pode agir autocraticamente, usurpando competência do Poder Legislativo de aprovar e alterar leis”.
A entidade argumenta que “cabe ao aparato de segurança do Estado garantir a segurança dos jornalistas e demais profissionais da comunicação no exercício profissional”. Como alternativa, a Fenaj defende um Protocolo de Segurança para a atuação profissional, que inclui a criação de comissões de segurança nas redações para avaliação de cada situação específica e o fornecimento de equipamentos de proteção individual e treinamento para os jornalistas.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) também publicou uma nota em que considera que “há ações mais indicadas para aumentar a segurança de quem se arrisca para informar a população, como a estruturação adequada do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Ambientalistas e Comunicadores”, diz o documento. Já o Instituto Sou da Paz afirmou que “insistir em medidas que facilitem a compra e circulação de armas irá piorar o grave cenário da segurança pública enfrentado pela população brasileira”.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a medida é “claramente uma tentativa de driblar o Estatuto do Desarmamento (…) e ignora estudos e evidências que demonstram a ineficiência de se armar civis para tentar coibir a violência em todos os níveis”. O Fórum disse em nota que o decreto “parece ter sido feito sob medida para agradar alguns eleitores do atual presidente da República, que dá sinais claros de realmente acreditar que Segurança Pública começa dentro de casa”.