Artigos Imprensa e História

O autor soteropolitano que os grapiúnas adotaram

*Por Luís Guilherme Pontes Tavares

O livro, ainda inédito, “De Gregório a Raul”, do professor doutor Jorge de Souza Araújo, conterá verbete a respeito do escritor e jornalista baiano Nelson [Barbosa] Gallo (1912-2000). A obra se assemelhará a dicionário biobibliográfico e o autor se dedica a ela há alguns anos. Isso, todavia, não remove Gallo do “pelotão dos invisíveis”, onde o inclui, em recente postagem do Facebook, e obtive aval para não alterar meu ponto de vista.

É bem verdade que ele foi lembrado pela escritora e acadêmica Gerana Damulakis quando o incluiu na coletânea Antologia panorâmica do conto baiano – século XX (Ilhéus: Editus, 2004. p. 281-291). Ela pinçou o conto “O pecado viaja de trem” da coletânea Histórias da Bahia (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1963), que fora organizada por comissão de escritores grapiúnas a pedido do editor Gumercindo Rocha Dórea (1924-2021).

Fato é que a lembrança recente do jornalista, escritor e servidor federal Nelson Gallo surpreendeu e animou a muitos. Mexi na saudade de pessoas que o conheceram e com os quais divido proveitoso convívio do Facebook. Isso demonstra que o personagem não foi de todo esquecido e é necessário restabelecer sua presença como escritor soteropolitano que foi admitido como membro do seleto grupo de autores grapiúnas. Repasso essa tarefa a acadêmicos de Jornalismo, Letras ou História.

Rascunho de biografia

A pandemia não permite pesquisa se não na web. Foi assim que descobri que a sete mil quilômetros (7 mil km) ou mais de onde moro há exemplar do cordel Nelson Gallo (sua vida e sua obra), publicado em 1981 pelo poeta Rodolfo Coelho Cavalcanti (1919-1986). Localizei o título no catálogo da Library of Congress (Biblioteca do Congresso Americano), em Washington DC, mas o fac-símile em PDF não está disponível. É provável que as estrofes do poeta Rodolfo Cavalcanti nutrissem o levantamento recém-iniciado.

O que sei até agora é que Nelson Gallo, de quem ouvira o nome quando fui repórter de A Tarde na primeira metade da década de 1970, fora ou era, na época, interno do Sanatório Bahia, no Largo da Soledade. Tenho dúvidas se porventura o vi algum dia. Se a internação de Gallo o tirou do foco dos contemporâneos, é provável que esse fato o distinga como objeto de interesse e alguma conclusão nos ajude a entender o enigma baiano, conceito que reúne causas misteriosas de nosso atraso e da solidariedade raquítica. 

Ele foi funcionário federal, lotado na Base Aérea de Salvador, condição que o levou a morar em Ilhéus devido à incumbência de administrar o aeroporto de lá. Essa transferência se deu por volta de 1961. Não possuo os dados oficiais, apesar das consultas que fiz. No sul da Bahia, o jornalista atuou como redator de notícias da Rádio Cultura de Ilhéus e, como escritor, foi incluído na coletânea Histórias da Bahia, já citada acima, e publicou o livro O sorriso do cacau (Itabuna: Edições Gabriela, 1964), de que trataremos mais adiante. 

Livro “O sorriso do Cacau” de Nélson Gallo

Nelson Gallo foi admitido como sócio da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) em 03mar1960. É o associado de número 1231 e os seus proponentes foram os jornalistas Ariovaldo Matos, Nelson de Azevedo Santos e Luis Humberto Viana. Ele iniciou o exercício profissional no nascente Jornal da Bahia, em 1958. Quando foi admitido na ABI, Gallo era redator de A Tarde e morava na Rua Macaúbas, 505, no Rio Vermelho. A propósito, anos depois a Prefeitura Municipal de Salvador adotou o nome do escritor numa rua próxima (logradouro 5173, valor venal do metro quadrado R$ 1403,65; cep 41940-010), no mesmo bairro.

3×4 de Nélson Gallo para ficha de admissão como associado da ABI em 1960 – Arquivo ABI

Após o retorno dele de Ilhéus para Salvador, no final da década de 1960, Nelson Gallo voltou a trabalhar e assinar crônicas em A Tarde. Disso são testemunhas o jornalista Victor Hugo Soares: “Grande Nelson! Notável cronista do cotidiano com quem tive a honra de trabalhar na redação de A Tarde, quando por lá aportei no fim dos Anos 60. Um mestre, talentoso e com a simplicidade dos sábios.” (Comentário feito no Facebook em 16abr2021); o jornalista Geraldo Vilalva: “Era dono de divertidas e inteligentes histórias e estórias que prendiam a nossa atenção entre uma pauta e outra.” (Comentário no Facebook, também em 16abr2021); jornalista Nelson Cerqueira: “Grande Nelson Galo, colega jornalista. Inteligente e de ótimo humor!” (Comentário no Facebook em 18abr2021). A jornalista Mary Weinstein recorda de Nelson Gallo porque ele mantinha o hábito de prosar com seus pais, donos da Boutique Nalva, no térreo do edifício de A Tarde, na Praça Castro Alves: “Muito amigo de meu pai e de minha mãe, vivia lá na loja.” Dispensável acentuar que ela era uma criança na época.

Crônicas de povo e costumes

Apurei nos catálogos de sebos (alfarrábios) online os seguintes títulos de livros de autoria de Nelson Gallo: Um retrato de Itapuã. Salvador: IOB, 1951; Bahia de todos as doçuras. Salvador: Progresso, 1959; O pecado viaja de trem. Salvador: Progresso, 1960; A carta indiscreta. ?, 1962; O sorriso do cacau. Ilhéus: Gabriela, 1964; Gruta dos Brejões: um deslumbramento! Salvador: Escola Gráfica N. S. do Loreto, 1965; Bahia antiga. Salvador: Progresso, 1966; O segredo da imagem de ouro. Salvador: Artes Gráficas, 1969; 13 histórias de amor. Salvador: Itapuã, 1971.

Me deterei no livro O sorriso do cacau, corajosa coleção de cerca de 200 pequenas histórias com que Gallo pretendeu traduzir a alma grapiúna e desmistificar a fama de povo violento que a lenda dos coronéis sustentava. O livro foi prefaciado pelo escritor Jorge Amado, então com 50 anos de idade e reconhecido como um dos grandes da literatura. Tinha, pois, a mesma idade do prefaciado; ambos nascidos em 1912. Gallo encerra as 122 páginas da obra com esta confissão sobre o Sul da Bahia: “A terra é fértil, a terra é boa, mas o melhor de tudo, em Ilhéus, em Itabuna, é o povo”.

Ele colocou o ponto final no texto no meado de 1963, conforme registrou na página 113: “Este livro, escrito em Pontal, Ilhéus, foi concluído no domingo 28 de julho de 1963, aniversário da Cidade de Itabuna, onde foi impresso”.

O autor, todavia, acrescentou texto (p. 111) escrito após a data assinalada e assim, conforme o registro a seguir, constata-se que a obra foi publicada após o golpe civil-militar de 1964:

“Irmão superior”

Quando, após a revolução de 1º de abril muitos cargos da Administração civil foram ocupados por militares, um ilheense gozou o episódio contando a história de dois frades, um de Ilhéus e o outro de Itabuna. Encontraram-se e, após os cumprimentos, o primeiro disse que o seu convento tinha um novo Irmão Superior. O outro olhou para os lados e perguntou, baixinho:

– E o novo Irmão Superior… é major ou coronel?”

Quanto ao prefácio de Jorge Amado (1912-2001), os primeiros parágrafos nos informam que Gallo, em 1963, tinha 12 filhos, aspirava o reconhecimento como escritor e exibia disposição e talento para alcançar o reconhecimento dos leitores. Amado registra no texto a impressão que lhe causara os originais de O sorriso do cacau:

“Hoje Nélson Gallo vive em Ilhéus, é o administrador do aeroporto local. Adaptou-se à terra do cacau, foi incorporado à sua gente, sente-se já um grapiúna. E reúne em volume uma série de histórias, casos, anedotas, através as quais deseja provar já não ser a região do cacau aquela terra bravia, de matar e morrer, que está fixada na literatura de seus romancistas e contistas. Creio que consegue provar o progresso da região, o seu crescimento, sua riqueza, sua expressão cultural. Sem que, no entanto, o passado heroico e ainda recente deixe de estar visível no livro, passado tão poderoso a se impor às histórias e ao autor.”

Gallo, agradecido pelo prefácio do autor de Gabriela, cravo e canela (romance lançado em 1958), inclui no seu livro dois textos sobre Jorge Amado, ambos com o propósito de provocar risos:

Livro

Contam que um membro da família Badaró, após ler Terras [do] sem fim, de Jorge Amado, contrariado com algumas observações ali contidas sobre os Badaró, que aparecem algumas vezes nas suas páginas, teria declarado que iria fazer o autor ‘engolir o livro’. Passaram-se os tempos e, um dia, finalmente, Jorge Amado retornou a Ilhéus. Amigos e conhecidos procuraram o sr. Badaró e, antegozando a cena, perguntaram-lhe se não estava na hora de cumprir a promessa.

– O homem está na terra – disseram-lhe. – Chegou a ora…

O interpelado pareceu refletir e, sorrindo, respondeu:

– Impossível! Esqueci o livro na fazenda…” (p. 25)

Trabalho e Capital

Quando se realizou em Ilhéus o 1º Festival de Escritores da região, com a presença de destacados escritores, inclusive Jorge Amado, um jovem de ideias socialistas bastante extremadas perguntou a um conhecido onde estava hospedado o autor de Gabriela, pois pretendia visitá-lo.

– Na residência de Ananias Dórea – respondeu o outro.

– Mas, não é possível! Jorge Amado vem a Ilhéus e se hospeda na casa de um banqueiro!

O rapaz que não era socialista bebericou o seu café, pois tudo aconteceu no interior do Bar e Café Bahia, sorriu e falou:

– Para você aprender que Capital e Trabalho podem e devem andar juntos, dormir sob o mesmo teto e confraternizar.” (p. 69)

Enfim, encerro os registros sobre o jornalista, escritor e servidor público federal Nelson Gallo. Acrescento apenas que ele é tio do também contista Mayrant Gallo, mas não é parente do jornalista, escritor e ex-deputado Wenceslau Galo (com um ele apenas), de quem não tenho informações a respeito. Consta que o parlamentar foi redator-chefe de A Tarde (conforme Maria Lúcia Alves Reis na página 25 da sua dissertação “A Cor da Notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana 1888-1937”, defendida em 2000 na FFCH/UFBA e consultada online). Pois é, sei pouco sobre Gallo com dois eles e menos ainda sobre Wenceslau Galo. Há muito que pesquisar e lançar luz sobre o imenso “pelotão de invisíveis” que aumenta a casa dia.

Coloco o ponto final com a frase que encerra o artigo do jornalista Leão Serva (“O repórter do futuro”, publicado na edição da Quatro, Cinco, Um de 01.abr.2021) sobre o fotojornalista cearense Luciano Carneiro (1926-1959), que se destacou pela cobertura de guerra:

“Sua importância se insinua apenas por frestas da memória cultural.” 

*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
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