Luis Guilherme Pontes Tavares*
O livro A morte de Cosme de Farias. O benfeitor da pobreza, do poeta alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante (1919-1987), é o 29º da série Literatura de Cordel publicado pela Tipografia e Livraria Baiana. Foi publicado logo após a morte do jornalista, advogado e político baiano Cosme de Farias, ocorrida em 15 de março de 1972. O autor, na quarta estrofe da primeira do folheto de oito páginas descreve a reação popular à perda do benfeitor:
“Era o sino badalando/ E o povo no sol ardendo/ Em soluços caminhando/ Cada um em si dizendo:/ ‘Ó meu Deus, Cosme morreu/ Outro igual jamais nasceu/ Morre pobre, só se vendo!…’”
Há, por certo, exemplar desse folheto em Salvador, mas localizei cópia no Acervo Raymond Cantel do Centre de Recherches Latino-Americaines da Université de Poitiers, localizada no centro oeste da França. O acervo do professor Cantel (1914-1986), com mais de quatro mil folhetos brasileiros, portugueses e espanhóis, integra a Biblioteca Virtual Cordel- https://cordel.edel.univ-poitiers.fr/collections/show/3 .
Rodolfo Cavalcante, na página sete de A morte de Cosme de Farias recomenda, como se estivesse lendo o testamento deixado pelo falecido:
“Que a infeliz meretriz/ Deixe seu caminho errado/ Pois a mulher sendo honesta/ Tem futuro iluminado,/ Meretriz foi Madalena/ Mas tornou-se uma açucena/ Perante o LÍRIO ORVALHADO.
“Que os trovadores se mirem/ Hoje em Cosme de Farias/ Lutando por nobres causas/ Através das poesias,/ Pois a poesia sã/ É o ASTRO-REI da manhã/ Que surge todos os dias!
“Que os políticos também/ Sigam ao Cosme os seus feitos,/ Em defesa dos humildes/ Desde que sejam eleitos/ Para servirem ao Povo,/ Pois é o Roteiro novo/ Dos homens que são direitos!
“Que a pobreza também/ Se mire no predicado/ Do Major Cosme Farias/ Home[m] simples, denodado, Que não mostrava fraqueza./ Seu estado de pobreza/ Deu-lhe o nome abnegado!”
O poeta encerra o folheto com reverências ao falecido e o elogio de seu exemplo ao longo de quase 97 anos de vida:
“Quinze de março hoje é/ Data jamais esquecida/ Porque Cosme de Farias/ Foi a mais sublime vida/ Pelos seus valores nobres/ Em benefício dos pobres/ E da gente desvalida!
“Aceita Cosme estes versos/ De um humilde trovador/ Como tu foste na vida/ O mais divino cantor,/ Aceitas a homenagem/ Nesta singela mensagem/ Que te escrevi com amor!
“É impossível, leitores,/ Num folheto de Cordel/ Dizer quem foi Major Cosme/ Homem bondoso e fiel,/ Que tudo fez, em verdade,/ Pra ser útil a humanidade/ E ao nosso Deus de Israel!
“Silêncio Bahia, os sinos/ Badalam nas Catedrais…/ É teu filho estremecido/ Que partiu p’ra nunca mais,/ Deixando a eterna lembrança/ No coração da criança/ Para um futuro de paz!”
Aprendi com a professora baiana Jerusa Pires Ferreira (1938-2019), de quem fui aluno em pós na ECA/USP, no final da década de 1980, a relevância da literatura de cordel. Por isso, a localização e adoção, como fonte, do folheto de Rodolfo Coelho Cavalcanti, autor, também, do Cosme de Farias: o defensor do povo baiano, obra de 1945 (http://docvirt.com/docreader.net/CordelFCRB/47701, link de exemplar da coleção de cordéis da FCRB). Encontrei a referência na página de editora europeia que anuncia o livro A construção de Cosme de Farias na narrativa poética de Rodolfo Coelho Cavalcante, da advogada Regina Costa Farias, publicado em 2018. O exemplar é oferecido por mais de R$ 350,00.
Os últimos dias de Cosme de Farias – A leitura do folheto de cordel A morte de Cosme de Farias. O benfeitor da pobreza, de Rodolfo Coelho Cavalcanti, reacendeu minha dúvida sobre a data exata do falecimento do Major. Por isso fui consultar, na hemeroteca do IGHB, as edições de março de 1972 de quatro jornais da capital que circulavam na época: DN (Diário de Notícias), Jornal da Bahia e A Tarde e Tribuna da Bahia. Não há, dúvida: a informação de Coelho Cavalcante está correta: Cosme de Farias faleceu às 4h40 de 15 de março de 1972 no Hospital Português.
Tal informação nos parecia inverídica porque o cortejo féretro foi iniciado às 16h do mesmo dia, portanto 12 horas após o passamento. Vamos então repassar o que ocorreu com Cosme de Farias entre 10 e 15 de março. Conforme nos relembrou o blog do jornalista Reynivaldo Brito, foi ele quem obteve, em 10mar1972 (uma sexta-feira), para A Tarde, a última entrevista que o Major, já moribundo e internado no Hospital Português, concedeu.
No domingo, 12, o então deputado estadual Cosme de Farias acordou e reclamou do barulho na vizinhança do Hospital. Mostrava-se bem disposto e o médico Luiz Vieira Lima (DN, 14mar1972, p. 3) deu-lhe alta. Foi para casa e, nesse mesmo dia, houve o revés do quadro e ele foi conduzido pela a unidade do Sames (Serviço de Assistência Médica Salvador), localizada na Ladeira da Fonte das Pedras (Jornal da Bahia, 14mar1972, 1ª página). Dali foi reconduzido ao Hospital Português.
O quadro de saúde dele se agravou e, na véspera (14mar1972) da morte, os médicos Jaime Câmara e Jaime Viana constataram e diagnosticaram que Cosme de Farias sofrera trombose cerebral; às 21h50, o capelão do Hospital Português ministrou a Extrema Unção no paciente, que ocupava o quarto 52 (Tribuna da Bahia, 15mar1972, 1ª página). O sofrimento prosseguiu até o último suspiro às 4h40 da madrugada de quarta-feira (Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia, 15mar1972, 1ª página). Do Hospital, após os procedimentos legais para o sepultamento, o corpo seguiu para a Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus (Pelourinho), onde Cosme de Farias mantinha o modesto e improvisado escritório de advocacia.
A cobertura da morte do criador da Liga Bahiana contra o Analfabetismo cobriu a primeira página da edição de 15 de março do vespertino A Tarde, o mesmo acontecendo com a edição de 16 de março do matutino Jornal da Bahia. A coleção do DN que consultei não tem o exemplar de 16. Repasso alguns registros que li a respeito do sepultamento: o povo – mais de 100 mil pessoas – dispensou o carro funerário e conduziu, revezando braços fortes, o caixão desde o Terreiro até o Cemitério Quinta dos Lázaros. O cortejo teve início às 16h e o trajeto foi cumprido em mais de três horas. A senhora Railda Araci Pitanga, que cuidou de Cosme de Farias desde o falecimento de Dona Semíramis, esposa dele, ocorrido oito anos antes, esteve ao lado do féretro. No mesmo dia, o Governo do Estado inaugurava a Estrada do Feijão (BA 052).
Os restos mortais do jornalista, advogado e político Cosme de Farias estão sepultados, conforme A Tarde (16mar1972, p. 3), “na cova número um da quadra de Nossa Senhora do Pilar, no Cemitério Geral de Quinta dos Lázaros, pertencente à Secretaria da Saúde [do Estado da Bahia]”. Dessa edição do jornal, destaco, para encerrar, o trecho final da crônica “A Bahia de luto” (página 4), do escritor sergipano Mário Cabral (1914-2009):
“Até os noventa anos nunca foi ao médico. Gostava de cachaça com mocotó e era doido por um vinho Clarete ao almoço e uma cerveja Brahma, casco escuro, ao cair da tarde. Quando gripado a cura vinha logo, depois de três doses de aguardente com vermute. Este foi o Cosme de Farias que toda a Bahia conheceu e admirou. Bom, simples, humano, com o seu escritório de advocacia chamado “Quitanda da Liberdade”, deputado, jornalista, vereador, major da Guarda Nacional, patente que os amigos lhe arranjaram pelo preço de trinta e cinco mil Réis. Para falar de Cosme de Farias seria necessário escrever um livro. Que o façam, sem demora, aqueles que o conheceram mais de perto, a sua vida e a sua obra. A Bahia está de luto. Porque morreu, na verdade, um dos seus maiores filhos! O homem que foi um Paladino. Um Apóstolo. Quase diria que foi um Santo… Aqui ficam estas palavras como um preito de justiça. E de saudade, também. Nada mais posso dizer…”
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
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