Ernesto Marques*
Não, não absorvi a gramática carioca: não falo DE Ranulfo Oliveira, jornalista e presidente da Associação Bahiana de Imprensa por 39 anos. Escrevo sobre os dilemas da geração DO Ranulfo Oliveira, edifício-sede da ABI, batizado com o nome de quem o construiu.
O Ranulfo é destaque naquela ilha de arquitetura modernista, circundada por um mar de barroco que transborda para o Comércio, onde os casarões sobreviventes vivem contidos há décadas pelos edifícios ao lado e entre as avenidas Miguel Calmon e Estados Unidos, construídos há 50 ou 60 anos em cima de onde um dia foi o cais do porto, repleto de armazéns e comércios.
Ele, o Ranulfo, geminado com o irmão-vizinho do INSS, é contemporâneo, portanto, dos também vizinhos Baía de Todos os Santos, Churchill e do legendário Têmis. Contemporâneo do Martins Catharino, onde Jorge Santos montou os Estúdios Chama para o imortal Gilberto Gil defender o l’arjent gravando jingles, enquanto estudava administração. E também do belíssimo Sulamérica e outros tantos, entre as ruas D’Ajuda e Chile.
O Ranulfo Oliveira tem mais ou menos a mesma idade do Sulacap e dos edifícios da Rua Carlos Gomes da Avenida Sete. Mais ou menos a mesma idade dos prédios residenciais da Barra, Graça, Corredor da Vitória, Canela, Garcia, Nazaré…
Isso não é apenas um “nariz de cera”, como se dizia no jargão do jornalismo das antigas, para definir a popular conversa de cerca-lourenço aplicada aos textos dos jornais de antanho. Aqui é um recurso retórico para localizar o problema/desafio e dar uma ideia da sua dimensão nesta secular cidade portuária, que subiu os setenta e poucos metros da falha geológica, escorreu pelo subúrbio e por onde mais o mar deixou terra firme e se transformou na caótica e encantadora Soterópolis.
A ABI pratica o cuidado que prega e cobra de proprietários de imóveis e autoridades responsáveis pela cidade monumento que nos faz patrimônio da humanidade. Entram na fase final, obras de atualização das instalações elétrica e hidráulicas do Ranulfo Oliveira. Reduziremos drasticamente o consumo de água fornecida pela Embasa porque passaremos a armazenar, tratar e reutilizar águas servidas e faremos o mesmo com a água da chuva recolhida no mesmo telhado de onde vamos gerar praticamente toda a energia que precisamos.
Em paralelo, finalizam-se também as obras do sistema de Prevenção e Combate a Incêndios (PCI) e do Sistema de Proteção Contra Descargas Atmosféricas (SPDA). A meta é aproximar ao máximo uma edificação projetada nos anos 1950, em uso ininterrupto desde 1960, dos padrões de sustentabilidade e segurança exigidos para quem vai começar a construir já sob os parâmetros de hoje.
Marco trágico do jeitinho brasileiro de se relacionar com esse tipo de norma, a falta de cumprimento e fiscalização das regras antigas levou à tragédia da Boate Kiss – Santa Maria (RS) jan/2013, 242 jovens mortos, 636 feridos). No nível legislativo, do Chuí ao Oiapoque, os estados cuidaram de dar boas respostas que, se colocadas em prática, diminuem drasticamente a chance de tragédias reeditadas.
Mas é preciso ler a Lei 12.929/2013 (atualizada em 2021) e o Decreto 16.302/2015 dando aos artigos que definem os parâmetros mínimos de segurança contra incêndio e pânico, o mesmo peso merecido pelos artigos dedicados às edificações construídas antes desta legislação.
O Corpo de Bombeiros Militares, responsável pela análise e homologação desse tipo de projeto, aprova quase tudo que estamos fazendo no Edifício Ranulfo Oliveira. Quase…
Cobra-nos uma escada enclausurada, com ante-câmara e portas corta-fogo. A única hipótese de atender a esta exigência, mutilaria o projeto dos arquitetos Hélio Duarte, Zenon Lotufo e Abelardo de Souza, vencedores de um concurso nacional, promovido pela ABI, nos anos 1950. E se o Ranulfo fosse tombado?
Cancelaremos uma grande parte da Salvador edificada até os anos 1960/70? Claro que não! A ABI oferece o caso do Ranulfo Oliveira para produzir um conhecimento útil para a cidade. Parte disso envolverá, inclusive, na Casa dos Jornalistas, disseminar e cultivar a cultura da prevenção – que envolve condutas coletivas de segurança, necessariamente continuadas.
O custo para adequação dos nossos prédios sessentões e mais velhos não pode ser a sua desfiguração, mesmo sendo impossível ter impacto zero. Tampouco se pode admitir a hipótese de perdermos os avanços da nova legislação, justo na hora de fazê-la sair do papel para as nossas vidas. Se uma legislação tão importante virar letra morta, em algum momento mais vidas poderão se perder. Se tal ocorreresse, seria em nome da lei.
Futuro do pretérito? Que assim não seja. Que a tragédia não se repita como nossa história.
_Texto originalmente publicado no jornal Correio, no dia 11 de junho.
*Ernesto Marques é jornalista e radialista. Presidente da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).