Luis Guilherme Pontes Tavares*
Permaneço ignorando se o saudoso jornalista, jurista, político, diplomata e abolicionista baiano Ruy Barbosa (1849-1923) tomava banho frio no raiar do dia enquanto viveu na Vila Maria Augusta, em Botafogo. Fui até lá, em junho passado, para conferir de perto o chuveiro instalado no quiosque localizado, próximo da residência, no amplo jardim da propriedade; área verde e os imóveis ocupam mais de 10 mil metros quadrados.
Fato é que a vasta literatura a respeito do ilustre baiano não sustenta essa informação e há páginas que dão conta de que ele acordava por volta das 4h30 e que a higiene era feita com água morna, num banheiro da casa, um tanto afastado do quarto de dormir do casal. A fartura de informações sobre Ruy Barbosa recomenda prudência quanto a afirmações categóricas. Li na página 125 do livro Museu Casa de Rui Barbosa (São Paulo: Banco Safra, 2013), por exemplo, que ele ia “cotidianamente” ao cinema. Como?! Havia, assim, muitas salas exibindo diversas películas no Rio de Janeiro das décadas de 1900, 1910 e 1920?
VILA MARIA AUGUSTA
Dona Maria Augusta e o seu esposo Ruy Barbosa não usufruíram da ampla e bela propriedade da Rua São Clemente, 134 (outrora número 104, 98 e 66), quando a adquiriram em 1893. A família seguiu para o exílio – Argentina, Portugal, Espanha, França e Inglaterra – e só retornou ao Brasil em 1895. Amigos e parentes do casal, guiados pelas correspondências trocadas com Ruy, tomaram as providências para ajustar a casa ao gosto dos novos donos. A Vila Maria Augusta seria, então, a morada de Ruy até o início de 1923. Ali ampliou a biblioteca, recebeu autoridades e amigos, cultivou rosas, viu os netos nascerem. Foram quase 28 anos de conexão deles com cada milímetro daquele lugar.
Há muitos livros sobre Ruy Barbosa e a Vila Maria Augusta, mas me servirei sobretudo da publicação de 2013 do Banco Safra, citada acima. A propósito, a série de perfis ilustrados de museus brasileiros patrocinada pelo banco incluía, até 2013, três museus baianos: Arte Sacra da UFBA, MAB e MAM-BA. O livro sobre a morada de Ruy Barbosa em Botafogo reúne artigos e fotografias que cobrem 360 páginas. Acrescente-se que, no final, constam as bibliografias utilizadas pelos autores dos textos.
O casal Ruy Barbosa é o quarto proprietário do imóvel. No meado do século XIX, quem edificou o imóvel foi o empreendedor português Bernardo Casimiro de Freitas (1813-1894). O imóvel foi vendido em 1877 ao comendador português Albino de Oliveira Guimarães (1833-1908). Ele empreendeu reforma que ampliou e enriqueceu o imóvel da São Clemente, tanto o sobrado residencial como o imenso jardim. Quando resolveu retornar a Portugal, em 1886, o vendeu, em 1890, ao comerciante inglês John Roscoe Allen (de quem não se tem outras informações) por Cem contos de Réis. Ruy Barbosa, que morara de aluguel em quatro endereços no Rio, adquire a propriedade por 130 contos de Réis, tendo pago, pois, em 1893, cerca de 30 por cento a mais do valor pago pelo inglês em 1890. A compra de Ruy foi dividida em prestações.
Após o falecimento dele, a viúva e família são convencidos a vender o imóvel para o Governo brasileiro, cuja a oferta fica aquém do que ofereciam outros interessados. Em 1924, o presidente Arthur Bernardes (mineiro, 1875-1955) manda pagar pelo acervo da biblioteca, o mais valioso da época, e pelo imóvel mais de Dois mil contos de Réis. A família, em paralelo, vende boa parte dos objetos que compunha a residência. Foi o presidente Washington Luiz (carioca, 1869-1957) quem movimentou o Estado brasileiro para transformar a residência que fora de Ruy Barbosa na primeira casa-museu do país. Isso ocorreu em 1927. Ele então autoriza a recompra de objetos que foram vendidos a terceiros, assim como autorizou as reformas necessárias no prédio e no jardim. A Casa Rui Barbosa foi inaugurada, por ele, em 13 de agosto de 1930, data escolhida porque em 1918 se comemorou, nesse dia, o Jubileu Cívico do grande orador. Em 19 de maio de 1938, o então SPHAN promove o tombamento da casa de Ruy Barbosa no Rio de Janeiro.
A CASA DE 24 CÔMODOS
Foi o próprio Ruy Barbosa quem denominou a propriedade da família com o nome de Vila Maria Augusta. Homenageava assim sua amada de toda a vida, a bela prima baiana com quem casara em 23 de novembro de 1876. Viveram juntos 46 anos. Eles tiveram cinco filhos – três mulheres e dois homens. Dona Maria Augusta (1855-1948) conduzia o dia-a-dia da casa com o auxílio de empregados e do mordomo Antonio Joaquim da Costa. O amplo sobrado, sem contar os anexos, tinha 24 cômodos e a família adotou itens da modernidade tão logo surgiam. A casa teve telefone.
Após a adaptação do imóvel da Rua São Clemente para casa-museu, cada cômodo ganhou denominação própria conforme o roteiro de visita (foto ao lado, p. 60 do livro do Banco Safra): “01-Escritório/Sala de Haia; 02- Banheiro; 03-Quarto do Casal/Sala Habeas Corpus; 04-Quarto de Vestir de Maria Augusta/Sala Maria Augusta; 05-Sala de Visitas/Sala Pró-Aliados; 06-Sala de Festa/Sala Federação; 07-Sala de Música/Sala Buenos Aires; 08-Gabinete Gótico/Sala Civilista; 09-Corredor Ruiano; 10- Biblioteca/Sala Constituição; 11-Quarto de Vestir de Rui Barbosa/Sala Casamento; 12-Aposento Particular de Rui Barbosa/Sala Código Civil; 13-Sala Intima/Sala João Barbosa; 14-Sala de Jantar/Sala Bahia; 15-Sala de Almoço/Sala Questão Religiosa; 16-Copa; 17-Banheiro; 18-Refeitório; 19-Quarto da Babá/Sala Queda do Império; 20-Sala Dreyfus; 21-Cozinha; 22-Sala Estado de Sitio; 23-Quarto dos Filhos do Casal Batista Pereira/Sala Instrução Pública; 24-Quarto do Casal Batista Pereira/Sala Abolição”.
O roteiro da casa revela um pormenor raro: o genro de Ruy Barbosa, o intelectual Antonio Batista Pereira (1880-1960), casado com Maria Adélia, a filha mais velha do casal, ocupava, com os dois filhos, cômodos no segundo piso da residência. O livro do mordomo Antonio Joaquim da Costa – Rui Barbosa na intimidade (Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949) –, que ainda não li, talvez revele como era a relação das duas famílias vivendo sob o mesmo teto. Acrescento que, além do corpo principal, a residência tinha anexos, que prosseguem preservados e funcionam para exposições – o módulo maior é ocupado pelos veículos que pertenceram a Ruy Barbosa – e atividades de pesquisa e extensão, inclusive com programação voltada para crianças e adolescentes.
O QUE VI E SENTI QUANDO ESTIVE LÁ
Confesso o entusiasmo que me conduziu à Vila Maria Augusta e a satisfação que tive nas seguidas visitas que fizemos. Chegamos ao Rio na noite de 13 de junho, Dia de Santo Antônio. Todavia, toda minha reverência era para Ruy Barbosa! Instalados em hotel na mesma rua, fomos ver o imóvel. Fotografei a fachada e exibi para minha mulher a alegria de ter chegado ali. Constatei, nessa breve visita, que o conjunto de imóveis da Vila Maria Augusta será acrescido, conforme placa, de mais um prédio.
Cumprimos o roteiro de visita à casa de Ruy no dia 14, tão logo foi permitida. Eram 10h e devo ter concluído por volta das 11h30. Havia poucos visitantes na ocasião e fomos guiados pelo segurança, que, despachado e bem informado, funcionou bem como monitor. Permaneci na Vila Maria Augusta para contatar pesquisadores e bibliotecários, que nos trataram como velhos amigos. Ademais fui surpreendido com a convocação para breve audiência com a presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), a jornalista Letícia Dornelles, a quem informei sobre as providências que 15 instituições baianas estão tomando para reverenciar Ruy Barbosa pelo primeiro centenário de morte, que transcorre em 01 de março de 2023. Informei, ademais, que a comissão executiva da efeméride pretende visitar a FCRB nos próximos meses.
No dia seguinte, 15, refiz parte do roteiro nos cômodos a fim de fotografar as duas ilustrações (fotos abaixo) alusivas à casa natal de Ruy em Salvador. Aproveitei, em seguida, para dedicar maior atenção ao jardim e itens externos. Do lado direito da fachada do sobradão da Rua São Clemente fotografei a herma que o Governo da Bahia mandou colocar ali com o busto de Ruy e os seguintes dizeres: “A Ruy Barbosa. Herma oferecida em nome da Bahia pelo seu interventor Cap. Juracy Magalhães. 11 de agosto, 1933”. O busto, esculpido em mármore de Carrara em 1918, é obra do artista português Roberto Pinto Couto (1888-1945).
O jardim da Vila Maria Augusta tem árvores nativas e importadas, pequenos lagos e muitas esculturas; tem até um parreiral. Entusiasmou-me muito a presença dos sapotizeiros e o grande número de crianças brincando.
No fundo da área verde está a sede, inaugurada em 1978, da FCRB. São quatro andares amplos que abrigam estudiosos da vida e da obra de Ruy, ministram cursos e cuidam da documentação. Em breve, haverá novo anexo que abrigará o Centro Rui Barbosa de Preservação de Bens Culturais, desdobramento da proposta do poeta e cronista mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) que, outrora, propôs que a Fundação abrisse espaço para o Museu da Literatura Brasileira. Desde então, ela já recebeu mais de 150 acervos de escritores brasileiros.
Na sua próxima viagem ao Rio, não deixe de conhecer a Vila Maria Augusta e agradecer a deferência que os cariocas têm com o nosso brasileiro exemplar Ruy Barbosa!
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
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