Inaldo da Paixão Santos Araújo*
Há um silêncio que fala mais alto do que qualquer discurso. Um silêncio que ecoa, por exemplo, pelas paredes do Edifício Ranulfo Oliveira, no coração do Centro Histórico de Salvador. Quem já subiu até lá — com os olhos atentos e o coração curioso e se encantou com a vista de 360° graus da Cidade-Mãe que somente ele proporciona — sabe que aquele espaço não é apenas concreto, vidro e aço. É memória. É vida. É história.
Ali é a sede da nossa Associação Bahiana de Imprensa (ABI), que foi fundada por 73 jornalistas, em 17/8/1930, com o objetivo de defender a liberdade de expressão e zelar pelo respeito às leis.
Durante 13 anos, foi ali que pulsou o centro do debate democrático da Bahia. A antiga sede da Assembleia Legislativa, entre 1960 e 1973, ocupava o plenário cuidadosamente adaptado pelo arquiteto Diógenes Rebouças, um dos nomes mais inspirados da arquitetura modernista brasileira. Ele transformou o auditório Ruy Barbosa em uma caixa de ressonância para as ideias, as divergências e, claro, para as vozes que buscavam representar um povo inteiro.
Ali, por certo, foi o espaço que viu a primeira mulher presidir uma sessão legislativa. Ali ouviram-se discursos inflamados, testemunharam-se decisões marcantes e até silêncios carregados de medo nos tempos duros. Ali também se calaram vozes à força. Ali foi onde 13 deputados foram cassados pelo AI-5 dos tempos trevosos. Ali há um chão carregado de significados.
É uma memória viva, ou, pelo menos, assim deveria ser.
O projeto era ousado desde a origem. A ABI, sob a liderança visionária de Ranulfo Oliveira, pensou um edifício que unisse o jornalismo à sustentabilidade: onde se pudesse locar espaços para garantir a autonomia financeira. Assim, projetado entre 1945 e 1951 por Hélio Duarte e pelo engenheiro civil Ernesto de Carvalho Mange, o edifício foi erguido graças à mobilização popular e às doações provenientes da “Campanha do Tijolo”. Ele foi o primeiro prédio da Cidade Alta projetado de acordo com os novos parâmetros urbanísticos da arquitetura moderna.
O Legislativo baiano foi o primeiro inquilino, saindo das limitações de um velho casarão para um espaço à altura de sua missão.
O edifício foi pensado para ser um espaço vivo, uma fonte de autonomia para a nossa ABI. E por décadas foi. A Assembleia, a Prefeitura, entre tantos inquilinos, passaram por ali, adaptando-se à estrutura sem apagá-la. Hoje ocupam parte do espaço repartições da Prefeitura da Cidade Primeira.
Assim, hoje, o que se vê é outra coisa. Um “almoxarifado” instalado no mesmo local onde, um dia, se discutiu o futuro da Bahia. Os sanitários, assim soube, estão interditados, o foyer virou um abrigo de sucatas, e a sala atrás da antiga mesa diretora — onde tantos destinos foram debatidos — virou um depósito de lixo. O painel de Mário Cravo Jr., que um dia foi o orgulho de um concurso disputado, agora observa tudo em silêncio.
Há também o golpe invisível, o que vem pelas contas atrasadas, pelos pagamentos não atualizados que nunca caem, pelos números frios que decretam, sem alarde, o fim de um ciclo. Esses fatos atuam, assim penso, contra o patrimônio da ABI, contra a história do nosso Estado, contra a cultura que deveria estar sendo reverenciada, não empilhada em meio a garrafões de água e móveis quebrados.
A ABI tem feito sua parte em busca de uma proposta sensata: resolver o impasse do aluguel, sim, mas tendo como o mais importante a preservação do espaço sagrado da memória política baiana. Quanto admiro o velho Clarindo e sua luta!
A esperança agora repousa sobre a sensibilidade do Alcaide Bruno Reis, que já foi deputado estadual e com certeza, entre as atribulações do Executivo, não se esqueceu do lugar onde um dia o poder se sentou.
Mas há tempo. O que foi construído com dignidade pode ser reconstruído com respeito. O sexto andar ainda está lá, esperando por vozes que o honrem. Ainda há história a ser contada — e, quem sabe, continuada.
A cidade muda, se transforma, se reinventa. Mas esquecer suas próprias pegadas é um risco. Porque a história ignorada, um dia, cobra seu preço, e a nossa ABI não pode pagar a conta.
>> Texto originalmente publicado pelo jornal Tribuna da Bahia, no dia 18 de agosto de 2025.

*Inaldo da Paixão Santos Araújo é Mestre em Contabilidade, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, Professor da Universidade do Estado da Bahia, Vice-presidente de Auditoria do Instituto Rui Barbosa, Escritor. <[email protected]>
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