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A fome como arma política em Gaza e mundo afora

Por Liliana Peixinho *

A fome e a desnutriçao estão espalhadas mundo afora, e faz tempo . Quando há concentração num pequeno espaço, como Gaza, com cerca de dois milhões de pessoas em sofrimentos múltiplos, o horror chama atenção.

Utilizada como arma política de guerra, a fome e seus entornos, reflete o faz de conta que faz. A logística da distribuição de sacos de farinha e arroz, lançados por aviões nesse ambiente frágil, além de burocracia criminosa cara e ineficiente, é desumana, promove mais horror. A imagem de pessoas, em inanição, fracas, cadavéricas, andando aos tropeços, feridos, com sacos nas costas, intensifica o retrato da desumanidade, da falta de respeito à mínima dignidade de quem luta para sobreviver, às mínguas.

Quando o seu bem estar se atrela ao bem estar do outro, a vida e seus entornos exige mais que coragem para enfrentar e subverter dor em ação; exige compromisso em não querer faz de conta, blá, blá,.blá, discursos bem elaborados para serem lidos e registrados em fotos, em não aceitar mentiras como verdades, não se incomodar com injustiças que dilaceram a alma.

Os recentes arranjos burocráticos para levar alimentos a Gaza “São uma distração, cortina de fumaça. São ineficientes, caros, não resolvem”, alertam os mais atentos.

São mais de dois milhões de pessoas que enfrentam uma grave escassez de alimentos e outros produtos que possam garantir a mínima sobrevivência, depois de mais de 20 meses sem trégua.

O atual cenário de desumanidade em campo de luta com armas onde a fome é instrumento de guerra, passou a exigir mais sacrifícios de vidas desnutridas até daqueles que tentam cuidar do que restou do outro, como médicos, jornalistas, ativistas de direitos humanos

Do longe que ficou perto, temos informações do horror humanitário em Gaza. Apesar de nos abalar, também nos imobilizam. Na guerra, a comunicação também é arma em burocracias criminosas. Entre os fatos, muitas versões. E entre as muitas dores em campo minado, o poder, sem dores, de diverte, jogando bolinha em campo de golf.

Quem cuida, precisa de cuidado

Na última semana deste mês de julho mais de 100 agências e organizações humanitárias, entre elas Save the Children, Oxfam e Médicos sem Fronteiras, publicaram comunicado conjunto em que denunciam o que classificam como “fome generalizada” em Gaza. Corpos de profissionais voluntários que trabalham em ajuda humanitária também estão sendo consumidos, afirma o documento.

“A cada manhã, a mesma pergunta ecoa em Gaza: ‘Será que vou comer hoje?’.”

Um trabalhador humanitário, que presta apoio psicossocial no território, falou do impacto devastador sobre as crianças. “Elas dizem aos pais que querem ir para o céu, porque ao menos lá tem comida”, destacam as agências.

“Os palestinos estão presos em um círculo vicioso de esperança e angústia, aguardando assistência e cessar-fogo, apenas para descobrir que as condições estão piorando”, afirma o comunicado.

Sobrevivência miragem

“Não é apenas um tormento físico, mas também psicológico. A sobrevivência é apresentada como uma mera miragem.”

“Enquanto o cerco imposto pelo governo israelense mata de fome a população de Gaza, os trabalhadores humanitários se juntam às filas para receber alimentos, arriscando serem baleados, para alimentar suas famílias”;

O “cerco total” em Gaza tem “gerado caos, fome e morte”.

Há “taxas recordes” de desnutrição aguda, especialmente entre crianças e idosos.

A Oxfam compartilhou com a BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC — o testemunho de um médico em Gaza: “Nunca imaginamos que existiam países que pudessem declarar guerra contra civis — crianças, mulheres e idosos — e cortar o fornecimento de ajuda humanitária e médica. Nunca imaginamos que, 18 meses depois do início da guerra, a situação poderia piorar tanto a ponto de não encontrarmos um leito de hospital para um paciente com leucemia… nem leite em fórmula para um bebê com fome” declarou.

Na terça-feira, 22 de julho, foi informado que 33 pessoas, incluindo 12 crianças, morreram por desnutrição nas últimas 48 horas, elevando o total de mortes por desnutrição para 101, sendo 80 crianças. Na quarta-feira (23/07) foram informadas outras 10 mortes por desnutrição. Desde então, os ataques de Israel mataram pelo menos 59.029 pessoas, incluindo mais de 17 mil crianças, e feriram mais de 142 mil, segundo o Ministério da Saúde de Gaza.

Falta X ostentação

No cenário além guerra localizada, a fome, a desnutrição, a gula, a fartura, a falta, o desperdício, a ostentação, se espalham, planeta afora, sem distinção. Comportamentos entre produção, consumo e descarte escancaram a grave doença do corpo social, seja em Gaza, nos EUA, no Brasil, na India, nos países africanos e outros mundos, planeta afora.

A concentração de riqueza e seus links de desdém com a vida dos que lhe proporcionam isso, tem revelado o comportamento de anestesiamento humano. A morte em série, lenta ou gradual, o descaso com a vida, a cegueira, a degradação da matriz ambiente sob justificativas econômicas de progresso, parecem alheias às faces do retrato da banalização da miséria, da desigualdade acirrada. O comportamento do “né comigo não” , “não posso fazer nada”, “é assim mesmo”, “só deus na causa”, destroi-nos, a nós todos, uns mais e outros menos, e de forma rápida.

Sinais de um comportamento onde a humanidade não quer se aperceber que o mal que sofre um, de alguma forma, chegará ao outro. Não é praga, religião. É Ciência. É observação apurada. É fato checado. É visibilidade pública. É disseminação da realidade. É compromisso de quem quer buscar, pesquisar, se interessar em enxergar, sentir, absorver. É fato, é constatação da realidade, é observação detalhada. É olhar ampliado sobre o todo, onde tudo, exatamente tudo, está ligado, intrincado, dependente.

Origens históricas

Em meio aos fatos, podemos refletir sobre causas, origens. Se o planeta é um corpo complexo, sensível, com limitações sobre sua exploração. Assim também é o corpo humano, ou não humano, que depende de cuidados: no comer, no beber, no respirar, no abrigar, no descansar, no afeto, no movimentar, em tudo o que faz o ser vida, sadio ou doente.

O economista francês Thomas Piketty em seu último livro, lançado no Brasil, “Ideologia e Capital”, identifica modelos político-econômicos que ligam problemas, como o da desigualdade, à agenda econômica neoliberal, imposta às nações nos últimos 40 anos, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, no Reino Unido. Agenda que, segundo ele, “virou um problema para o desenvolvimento humano”.

Piketty destaca o aumento da desigualdade no Brasil como uma das nações com o maior abismo entre ricos e pobres do mundo.” Um país onde os 50% mais pobres detêm em termos de renda, apenas 10% da riqueza total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50%.” E podemos perguntar: como um país asim pode não gerar violência?

O trabalho de Piketty reforça a velha e histórica ideologia de humanidade, onde a distribuição de renda tem sido luta permanente entre civilizações. Um trabalho que sinaliza ser a distribuição da riqueza, uma política inteligente para o bem-viver coletivo.

Fico a pensar sobre os movimentos dos recursos, sejam eles públicos ou privados. E pergunto: no cotidiano, no dia a dia, observamos se os volumosos aportes financeiros vão mesmo no sentido da responsabilidade e compromisso social, de suprir problemas históricos, como fome, saneamento, prevenção a doenças?

Qual a importância de se observar esses movimentos? Será se nós, brasileiros,.por exemplo, estamos cumprindo com esse dever humano, cidadão, de acompanhar o trabalho sobre o uso dos recursos para combater a fome, para garantir atendimento preventivo em saúde, saneamento , violência?

Entendi sobre o trabalho de Piketty que se a Economia é dinâmica, a distribuição da riqueza precisa acompanhar o mesmo movimento e tempo, de forma contínua. Ele diz: “A Economia funciona com um chefe de empresa que, quando acumula alguns milhões de euros, já é imenso sucesso. Mas, nas sociedades com mais milionários e mais concentração da fortuna, não é verdade que elas têm mais inovação e mais crescimento. É o contrário. Na verdade, precisamos da redistribuição permanente da renda”.

Num país como o Brasil- um dos maiores produtores de alimentos do planeta- se observar que fome e falta, desperdício e ostentação, andam lado a lado, do termo “Sustentável”, amplamente difundido como discurso político, mas, bem distante da realidade. Os fatos poderiam ser suficientes para que o inaceitável pudesse alimentar movimentos de mudanças. Mas, a inércia é cômoda.

Seria revolucionário romper com comportamentos capitais apressados, acumuladores, onde egoísmo, ostentação, desperdício, faz de conta que faz, são facetas determinantes para vontade de promover mudanças em larga escala.

Mais triste que observar os cenários de desigualdade, violência, fome, descaso com a vida, em Gaza, Brasil, mundo afora, é a triste constatação que o Ser Humano, em pleno século XXI, ainda não se apercebe que o seu bem-viver depende do bem-viver do outro!

Liliana Peixinho * Jornalista, ativista humanitária, produtora de conteúdos em midias independentes como Movimento AMA, REAJA, Mídia Orgânica, O Outro no Eu, Cuidar de quem Cuida, Catadora de Sonhos!

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI)
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