ABI BAHIANA

A Semana de Arte Moderna revisitada

100 anos depois do evento que marcou a cultura brasileira, a ABI convida especialistas para refletirem sobre o legado dos modernistas

Larissa Costa*

Há cem anos ocorria a Semana de Arte Moderna, no Theatro Municipal de São Paulo. Foi necessário certo tempo após a mostra para que se entendesse sua dimensão para a cultura e a arte brasileiras. Chegado o centenário, o evento que movimentou a capital paulista em fevereiro de 1922, “oficializando” o modernismo no país, pede revisões. Qual o seu legado? Por que, dentre todas as manifestações artísticas no Brasil, essa é tão reconhecida? O que era o moderno para os modernistas, afinal?

“Esse foi o primeiro, e 100 anos depois, o maior, mais radical e completo movimento cultural do Brasil. Inicialmente, na literatura (poesia e prosa), pintura, escultura e música. Mais tarde, sua influência se estendeu a outras áreas, como o cinema, outros ramos das artes plásticas e o teatro”, afirma o jornalista e pesquisador Jorge Ramos, diretor do Museu Casa de Ruy Barbosa, da Associação Bahiana de Imprensa. 

Entre os artistas do movimento, era pautada a busca pela renovação da linguagem, pelo abandono da forma rígida imposta às expressões artísticas da época. São notórias até hoje as caricaturas feitas do movimento parnasiano. Além do esforço em criar – ou talvez abrir mão – uma nova forma estética, os artistas queriam voltar às suas raízes, abandonar a influência europeia e repensar o Brasil. “Todos os movimentos de ruptura cultural e artística  com os padrões estabelecidos são frutos da ‘Semana de 22’. A busca por renovação estética é também uma herança do modernismo”, afirma Jorge Ramos.

“Mário de Andrade foi quem mais estudou a formação cultural do Brasil. Ele e outros modernistas olharam para dentro do Brasil e ‘descobriram’ e estudaram a arte barroca, as lendas amazônicas, a música sacra, as canções indígenas, os vaqueiros, o samba, o carnaval e uma série de outras manifestações culturais brasileiras foram reveladas para o próprio Brasil”, destaca o pesquisador. 

Mas as primeiras badaladas do movimento surgiram um tanto antes. Entre os artistas que encabeçaram a Semana havia alguns com condições para realizar viagens ao exterior, como Oswald de Andrade e Anita Malfatti. A experiência deles na Europa e nos Estados Unidos, onde estavam em voga as vanguardas, foi crucial para o rompimento com as linguagens mais tradicionais. 

Ao voltar de viagem, Anita Malfatti exibe o quadro “O homem amarelo”. Ali estava expresso um dos primeiros desafios à forma como as artes plásticas eram executadas no Brasil. O resultado, sabemos, foi a crítica devastadora, “Paranóia ou mistificação”, de Monteiro Lobato, que ressoa até hoje.

“Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes.(…) Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura”, condena Lobato. Como efeito, a crítica reacendeu entre os modernistas o desejo de causar mais impacto. 

O evento no Theatro

“Modernismo é sobretudo a expressão cultural das grandes metrópoles”, afirma o professor, poeta e ensaísta Aleilton Fonseca. Não à toa o centro escolhido foi o Theatro Municipal da capital paulista. A mostra ocorreu entre os dias 13 a 18 de fevereiro, com espaço para cada linguagem: literatura, música, artes visuais e escultura. 

Alguns momentos marcaram o tumulto que foi a mostra. Como recorda o poeta e escritor Ruy Espinheira Filho, o burburinho foi proposital. Oswald de Andrade, com seus contatos, acionou a imprensa e jornalistas para que fossem ao Theatro vaiar os modernistas. A intenção de causar barulho surtiu efeito e cada vaia era considerada um sucesso.

E foram muitas as vaias. Não podendo comparecer, Manuel Bandeira enviou um poema chamado “Os sapos”, que foi declamado por Ronald de Carvalho. Ali, mais uma crítica ao parnasianismo, bem mal recebida: “O sapo-tanoeiro,/ Parnasiano aguado,/ Diz: – “Meu cancioneiro/ É bem martelado./ Vede como primo / Em comer os hiatos!”. Em outro momento, o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos aparece em sua apresentação calçando um chinelo em um pé e um sapato no outro. Interpretando o gesto como uma afronta, o público responde com mais vaias, porém Villa-Lobos possuía apenas um machucado em um dos dedos. 

Outros nomes contribuíram com a Semana, todos igualmente reconhecíveis. Além de Mário de Andrade e Oswald, o poeta Menotti Del Picchia também encabeçou o movimento. Os artistas Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. As mulheres, aliás, marcaram presença, apesar de não terem tido grande divulgação, mesmo atualmente. Juntando-se às artistas mais conhecidas, há nomes como a pintora Zina Aita e, na música, Guiomar Novaes, Paulina D’Ambrosio e Lucília Guimarães Villa-Lobos.

Heloísa Prazeres, professora, poeta e escritora, avalia o impacto da mostra. “Não há dúvida que o entusiasmo dos futuristas pela velocidade e tecnologia das capitais modernas favoreceu os estímulos aos modernistas inaugurais, e que se criou no grupo um estreito contato com as vanguardas europeias”, coloca. Apesar dessa aproximação com as vanguardas, a ensaísta diz que foi através desse movimento que se construiu o reconhecimento das culturas autóctones e afro-brasileiras – formadas a partir de elementos da cultura de povos africanos que foram trazidos como escravos durante o período colonial.

Segundo ela, a própria data programada para o evento foi pensada para coincidir com a comemoração dos cem anos de independência do Brasil (declarada em 1822). Pela proposta, a Semana representaria também o processo de independência das artes.

“Tal esforço de redefinição da linguagem artística se articulou com um forte interesse pelas questões nacionais, que ganhou acento destacado a partir da década de 1930, quando os ideais de 1922 se difundiram e foram absorvidos. Nesta época, começaram a surgir as grandes interpretações históricas e sociológicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr”, finaliza.

As contradições

Aleilton Fonseca também explica o cenário cultural onde o movimento foi construído. “(…) São momentos de transformação das grandes cidades em grandes metrópoles modernas, atendendo às necessidades de uma nova estrutura social, política e econômica resultante das revoluções industriais e do desenvolvimento do capitalismo no mundo ocidental”, analisa. 

O movimento modernista nasce e cresce entre oposições e o embate entre o novo e as tradições, o moderno e o atraso, é somente um deles. Havia diferenças de classes entre os artistas do movimento, mas havia também diferenças de cunho político e ideológico. 

De acordo com Jorge Ramos, os modernistas de 22 formavam um papel eclético de personalidades e tendências ideológicas, filosóficas, religiosas e políticas. “Uns mais tarde evoluíram para o pensamento político de esquerda (caso de Oswald); outros, para a extrema-direita e o integralismo (caso de Plínio Salgado). A maioria era formada por liberais. Muitos romperam amizades para sempre e passaram a criticar e até ofender os próprios colegas de jornada”, relata. 

Havia ainda a relação com as oligarquias paulistas da época. É notório o envolvimento de Paulo Prado como um dos financiadores da exibição – afinal a Semana foi realizada em um dos museus mais importantes da capital. Prado era um escritor e descendente de uma das mais importantes famílias paulistanas no ramo da cafeicultura. Mas, como ressalta Heloísa Prazeres, os artistas do movimento não deixam a dever em nada no rompimento com as tradições estéticas. 

“Houve uma uma mudança da maneira como os escritores, os artistas se relacionam com a vida artística, a vida acadêmica com as instituições, com a imprensa houve uma mudança de mentalidade. É um marco que merece ser lembrado, com as discussões, com os debates, com as críticas porque nenhum movimento estético no seu tempo deixou também de ter suas limitações e seus equívocos”, acrescenta o professor Aleilton. “Não se trata de esquecer as contradições que os intelectuais apresentaram na sua época. Mas o nosso raciocínio tem cem anos de vantagem, de reflexão e de leitura e análise das obras e do legado modernista”.

As influências posteriores

“O interessante é que na época a Semana de Arte Moderna não interessou muito. Depois foi crescendo com o tempo”, recorda Ruy Espinheira Filho. O escritor comenta que após a publicação do segundo manifesto de Oswald de Andrade, Mário de Andrade havia dito entre amigos que aquele não era um momento para manifestos e sim para fazer arte e cultura. A Semana já havia terminado. 

É esse sentimento que está expresso em parte nas correspondências trocadas entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, em 1924. Drummond, ainda muito jovem, provoca o outro escritor. “Drummond escreve que não via como fazer arte no Brasil, que o Brasil era muito pobre, não tinha tradição, nem riqueza cultural e, portanto, achava uma perda de tempo as pessoas se dedicarem a querer criar cultura em um país como esse. E Mário de Andrade dá um puxão de orelha nele e diz que Drummond estava desanimado, mas que ele não estava. E que achava que a razão do Brasil ser um país novo ainda era fundamental, pois a partir dali o Brasil poderia realizar as coisas. Para ele, o Brasil tinha tudo para vir a fazer uma grande arte”, conta Ruy Espinheira Filho. 

Talvez a maior contribuição feita pelo evento tenha sido o que veio após ele. Mesmo que os artistas tenham começado a produzir bem antes de 22 – Mário de Andrade já havia publicado livros naquela altura – a intenção era a partir dali continuar a produzir cada vez mais. “A partir daí o Brasil ganhou outra dimensão artística e cultural também. (…) Essa é a importância do movimento de 1922. Foi o marco inicial de tudo isso que transformou o século 20 no Brasil em um século riquíssimo para a cultura”, analisa o escritor. 

Além da contribuição para as ideias trabalhadas depois pelos ensaístas de 30, a influência do movimento começa a se espraiar para outros lugares. Na Bahia, essa influência – ainda que tardiamente – se faz sentir principalmente em escritores como Jorge Amado, o poeta e jornalista Sosígenes Costa e artistas como Carlos Bastos e Mário Cravo. “Nos anos 40 foi organizado em Salvador um evento de obras modernistas e Carlos Bastos teve uma tela cortada a navalha. Era um protesto de alguma mente retrógrada e avessa às novas ideias”, lembra Jorge Ramos, para quem o Tropicalismo também aparece como o “mais vigoroso filho” da Semana de Arte Moderna. 

Heloísa Prazeres resgata outros nomes, como a geração em torno da revista “Arco & Flexa”, com Carlos Chiacchio, Carvalho Filho e Eurico Alves. “No artigo de abertura do primeiro número, seu líder Carlos Chiacchio esclareceu que toda cultura preserva a tradição para encontrar novos caminhos, partindo do regional para o alcance do universal.(…) Duas são, portanto, as vertentes baianas modernistas, a dos citados representantes do Arco & Flexa e a Academia dos Rebeldes, cujo veículo difusor foi a revista Samba, da qual participaram representantes como Pinheiro Viegas e Jorge Amado”.

A Semana encerra apresentando ao país uma nova forma de se pensar a arte, menos afeita às grandes fôrmas e mais voltada às ideias e sentimentos. “Eu gosto muito de uma frase de Mário de Andrade em uma carta para Anita Malfatti. ‘Arte se faz com carne, sangue espírito e tumulto de amor’. Fora disso, não há arte”, sublinha Ruy Espinheira.

*Estagiária de Jornalismo da ABI, sob a supervisão de Joseanne Guedes.

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