Quando pensamos em cuidar da saúde, a primeira coisa que vem à mente é realizar exames físicos, mas, os conflitos emocionais podem intensificar o impacto do diagnóstico de câncer. Se por um lado a doença causa, entre outros efeitos, fadiga, náusea, alopecia, perda ou ganho de peso, por outro, o isolamento social, abandono de atividades de lazer, ansiedade e depressão costumam fazer parte do dia a dia do paciente oncológico. Por isso, cada vez mais profissionais consideram o cuidado com a saúde mental um poderoso aliado das novas demandas e trajetórias a serem percorridas por quem enfrenta o tratamento.
De acordo com a OMS – Organização Mundial de Saúde, a epidemia global de câncer tende a aumentar nos próximos anos. Atualmente, 7,6 milhões de pessoas no planeta morrem em decorrência da doença a cada ano. Dessas, 4 milhões têm entre 30 e 69 anos. A previsão para 2025 é de 6 milhões de mortes prematuras por ano. Estima-se que 1,5 milhão de mortes anuais por câncer poderiam ser evitadas com medidas adequadas.
Este ano, o Dia Mundial de Combate ao Câncer – 4 de fevereiro – comemora duas décadas. Para celebrar a data, o INCA lançou ontem a publicação Estimativa 2020: Incidência de Câncer no Brasil. O documento traz a projeção de casos novos de câncer para o triênio 2020-2022. De acordo com a publicação, ocorrerão 625 mil casos novos de câncer (450 mil, excluindo os casos de câncer de pele não melanoma). O câncer de pele não melanoma será o mais incidente (177 mil), seguido pelos cânceres de mama e próstata (66 mil cada), cólon e reto (41 mil), pulmão (30 mil) e estômago (21 mil).
O tipo de câncer mais frequente em homens, de próstata (29,2%), e o mais frequente em mulheres, de mama (29,7%), apresentaram as maiores taxas ajustadas para todas as regiões geográficas do país e sua magnitude é cerca de duas a três vezes maior que a segunda mais frequente. O número expressivo alerta para a necessidade de disseminar informações sobre prevenção e controle, aumentando a exposição e o engajamento social em torno da temática.
Para Lívia Castelo Branco, especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria, a assistência psicológica é importante desde o momento da investigação de um nódulo. “O risco de um diagnóstico de câncer causa bastante apreensão. O medo da morte, as mudanças de rotina com relação ao trabalho, o olhar do outro e as incertezas com relação ao futuro são questões que precisam ser trabalhadas desde o início”, justifica.
Autoestima e bem estar – No caso de mulheres que passam pela mastectomia – retirada parcial ou total da mama –, por exemplo, o pós-operatório pode vir acompanhado por inseguranças e medos. “Quando ocorre um adoecimento grave na família, toda a dinâmica dela se altera. O suporte psicológico pode evitar transtornos ansiosos, depressivos e o abandono familiar. Durante o acompanhamento, se trabalha as expectativas de cada um e a forma de lidar com o sofrimento do outro, abrandando os conflitos”, explica a médica da clínica Holiste Psiquiatria, em Salvador.
Segundo ela, as mulheres ficam propensas a ter redução da autoestima e se sentirem mutiladas, menos atraentes. “No pós-operatório, é importante ressignificar a relação com o corpo e com a própria sexualidade, além de retomar a vida para além da doença. Do ponto de vista emocional o impacto pode ser enorme, considerando que as mamas são um símbolo de feminilidade”, aponta. O diálogo entre o casal, o apoio psicológico do companheiro, e, em alguns casos, a terapia de casal são apontados pela psiquiatra como aliados para resgatar a autoestima e a qualidade de vida de mulheres que enfrentam um câncer de mama.
“Diante do diagnóstico do câncer de mama na parceira, o homem se vê fragilizado, inseguro e tem dificuldades de lidar com essa situação. Para apoiar a paciente e conseguir estruturar a família, é interessante que o parceiro também faça algum tipo de acompanhamento psicológico”, defende Renata Cangussu, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (regional Bahia). Ela é especializada em tumores femininos e atua no Núcleo de Oncologia da Bahia (NOB). “Ainda não dispomos de um serviço específico para mulheres mastectomizadas. Existe uma rede de apoio psicológico pelo SUS e existe uma política estadual de atenção integrada à saúde das mulheres na Bahia”, lembra.
Ressignificar – A psicóloga clínica Sabrina Costa, especialista em psico-oncologia, afirma que muitas de suas pacientes ressignificam o câncer e passam a enxergá-lo como oportunidade de renascimento e de crescimento. “A mulher sofre um impacto com grande repercussão emocional. A perda da mama envolve tristezas, rupturas, frustrações, ansiedades, dentre outros sentimentos, mas esse sofrimento pode ser superado. O acompanhamento psicológico é útil nesse processo, pois representa um espaço com privacidade, sigilo, diante de um profissional para ouvir, acolher e tratar o sofrimento”, ressalta.
“Hoje em dia, a maioria dos hospitais com serviço de oncologia tem psicólogo na equipe. Isso nem sempre foi uma realidade”, reflete Costa. Segundo ela, é importante que seja uma psicóloga especialista em oncologia. “É alguém que a temática, histórias, e que pode oferecer olhar e escuta empática, um atendimento mais respeitoso”, afirma a psicóloga.
“O difícil foi aceitar a mastectomia. Eu entrei chorando, porque realmente não queria fazer, mas foi necessário. Pedi a Deus que me fortalecesse. Me olhei no espelho e chorei por dias. Depois disso, eu estava me achando linda”, confessou a relações públicas Angélica Criss. Há dois anos, o aparecimento de um hematoma na mama direita acendeu o alerta e ela correu para realizar exames. “Curiosamente, eu tinha problemas de autoestima antes do câncer. Desde antes da doença, eu já tinha acompanhamento psicológico com o objetivo de crescimento e amadurecimento”, revela. “Com a queda do cabelo, perda de 16 kg, e todo o processo, aprendi a me amar da maneira que eu estava. Foi um período de muito movimento em minha vida. Só tenho gratidão, foi um momento de muito aprendizado, conheci minha força interior e capacidade de superação”, afirma a pernambucana.
Por iniciativa do marido, o jornalista Antonio Nelson, ela montou um bazar para ajudar com o próprio tratamento. A movimentação reuniu muitas doações e fez surgir o Phinos Trapos Brechó. Um casal de amigos embarcou com Angélica e Nelson no Projeto Itinerante Roda Viva, onde ela realiza palestra sobre câncer de mama (“Em Rosa e Bom Tom”) e até já protagonizou a exposição fotográfica “O Amuleto”, da fotógrafa Alice Souza. O projeto cultural reúne as mais diversas manifestações artísticas. “Tive a força de Nelson, que estava comigo o tempo todo. Nas palestras, inclusive, eu enfatizo a importância do companheiro durante o processo de cura”, salienta ela, que também é cantora e compositora.
Sabrina Costa afirma que a sobrecarga emocional do cuidador não deve ser desconsiderada. Segundo ela, se ele consegue lidar bem com a situação, pode contribuir para reduzir o sofrimento da pessoa em tratamento. “Ela contou com o estímulo da família e amigos. Tudo isso é essencial para fortalecer a cura. É um olhar holístico”, afirma Antonio Nelson. “Ela está curada, dialoga sobre sua experiência com o câncer, o aprendizado. Fomos juntos para as sessões de quimioterapia e radioterapia. A retirada da mama não interferiu na nossa relação”, garante.
Em novembro passado, Angélica Criss passou pela cirurgia de reconstrução da mama, mas o procedimento teve complicações e a prótese de silicone foi removida no início de janeiro, às vésperas do seu aniversário de 41 anos e após tentativas frustradas de manter o resultado conseguido. A segunda parte desta reportagem traz detalhes sobre o processo de reconstrução da mama e outras histórias inspiradoras.
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