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De ‘Zico’ a Anízio Carvalho, uma trajetória de sucesso

Jaciara Santos*

Era o ano de 1944. Após desafiar o pai, o mestre de obras Manoel Circuncisão, o menino Zico, então com 14 anos, arruma as trouxas e deixa a pequena Conceição da Feira, cidade da região metropolitana de Feira de Santana, a pouco mais de 125 km de Salvador. Na carroceria de um caminhão do tipo pau de arara, faz a primeira escala no município de Cachoeira, de onde, a bordo do navio Paraguaçu, segue em busca do sonho de ser gente grande na capital. Na “cidade da Bahia”, que era como os interioranos se referiam à Soterópolis.

Ele não se lembra de quanto tempo a viagem durou. Não exatamente. Só sabe que embarcou noite fechada e chegou ao Porto de Salvador, no ancoradouro da extinta Companhia de Navegação Bahiana, por volta das 13h do dia seguinte. Junto com a bagagem, muito medo, ansiedade, incertezas… Mas, no meio desse turbilhão de emoções, uma convicção: a de estar fazendo a coisa certa. 

Tempos difíceis. Principalmente aquela primeira semana em que tentou seguir o ofício do pai e trabalhou como ajudante de pedreiro. Uma semana. Não mais que isso. O suficiente para concluir que aquelas mãos não haviam sido feitas para lidar com cimento, cal, argamassa, tijolo.

O próximo passo rumo ao sonho de crescer na capital viria por vias transversas. Quis o destino que o menino acanhado do interior fosse trabalhar como empregado doméstico da família Rozemberg – referência no segmento de fotografia em Salvador. O patriarca, Alberto, viu que o garoto tinha potencial para além de tarefas como varrer, lavar, cuidar dos passarinhos. Então, propôs: se Zico quisesse, quando terminasse a obrigação, começaria a devoção, no caso, aprender a revelar fotografias. Ele topou. Das 4h às 9h, criado da casa; no restante do dia, aprendiz de laboratorista.

E foi pegando gosto. Logo, se enturmou com o filho do patrão, o jovem Leão, que lhe ensinou a arte de fotografar. Começou registrando cenas associadas à baianidade como a puxada de xaréu, na praia de Itapuã. Os turistas adoravam. Pagavam bem pelas imagens. 

Embora já ganhasse dinheiro com fotografia, a atividade principal de Zico ainda era a de laboratorista.

Guinada – Foi em 1957 que a vida deu uma guinada de 180 graus. O Jornal da Bahia, localizado no Largo da Barroquinha, finalzinho da Rua J.J. Seabra – a Baixa dos Sapateiros –, estava em fase de implantação. Garimpava no mercado os melhores profissionais do ramo. Aos 27 anos, Zico, àquela altura já conhecido como Anízio Carvalho, ganhara fama como laboratorista. O selo Rozemberg era um passaporte que lhe abria os caminhos, mas seu talento natural era a maior das garantias de bons serviços.

Chamado a entrar no time do JBa, não titubeou. Sabia que era hora de dar um passo à frente. E fez bonito.Com o domínio da bola, foi com tudo. Era a chance de fazer o mais bonito gol de sua vida. Falou com Leão Rozemberg, àquela altura, à frente dos negócios da família. Não houve resistência à sua saída, mas havia um porém: a empresa não dispunha de fundos para bancar a rescisão contratual.

Como indenização pelo tempo de serviço, Anízio recebeu uma câmera Rolleiflex. A mesma máquina fotográfica que lhe acompanhou vida afora e simboliza o seu sucesso profissional. “Tudo que consegui na vida foi com meu trabalho. Um trabalho feito com esta Rolleiflex”, costuma repetir.

Mas a entrada para o Jornal da Bahia como laboratorista é apenas mais um capítulo da saga de Zico. No íntimo, ele sabia, tudo era uma questão de tempo. A oportunidade para mostrar sua arte, sair do escuro do laboratório para os holofotes da primeira página, haveria de chegar. E chegou de forma enviesada – aliás como quase tudo na vida do garoto de Conceição da Feira.

A data ele não lembra com exatidão. Só sabe com certeza: tinha menos de um ano no jornal. Era meio de semana. O diretor-presidente e fundador do JBa., João Falcão, acabara de ser eleito presidente do Rotary Club da Bahia. A cerimônia de posse estava marcada para aquela noite, no Yatch Club da Bahia, um dos espaços mais elegantes daquela Salvador do final dos anos 1950. Pauta prioritária. Ou IP (interesse do patrão), no jargão das redações. Ocorre que a chefia de reportagem esquecera de escalar um fotógrafo para cobrir o evento. E agora? Foi um deus nos acuda. Até que alguém lembrou: “O rapaz do laboratório tem uma Rolleiflex. O jeito é mandar ele”.  

Um paletó foi arrumado às pressas. E lá se foi o jovem Anízio para a noite do high society baiano. Deixando a timidez de lado, o laboratorista mandou ver. Como aprendera com Leão, o antigo patrão, puxou uma cadeira e subiu em busca do melhor ângulo. Dali em diante, era só click click clik…

A façanha rendeu não apenas boas fotos, mas a tão sonhada ascensão profissional. Satisfeito com a performance do laboratorista, Falcão decreta: Anízio Carvalho seria o novo fotógrafo da casa. O JBa. acabava de perder um excelente laboratorista. O jornalismo ganhava o melhor repórter fotográfico daquela geração.

Humildade – O resto dessa história é por demais conhecido. Promovido a fotojornalista, o jovem de Conceição da Feira desabrocha para o mundo. Acanhado no dia a dia, esbanjava audácia e coragem quando no exercício profissional. Driblou seguranças e guarda-costas – como no inesquecível novembro de 1968, ao capturar imagens inusitadas da rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Registrou cenas emblemáticas como o teatro de operações que resultou na execução sumária do líder revolucionário Carlos Lamarca e de seu companheiro de luta José Campos Barreto (Zequinha), em 17 de setembro de 1971, na comunidade de Pintada, município de Ipupiara, interior da Bahia.

Registrou incêndios memoráveis – Feira de Água de Meninos, Mercado Modelo, Shopping Iguatemi -, inundações, deslizamentos de terras, explosões, festas populares. Mergulhou nas religiões de matriz africana, como fotógrafo e como seguidor – cumpre as obrigações com Obaluaê e Oxóssi (seus guias) e mantém em casa um espaço sagrado de culto, onde busca energia e a força ancestral necessária a seguir em frente.  

Ao mesmo tempo em que crescia profissionalmente, Anízio aumentava a prole. Só com Terezinha – um casamento de 67 anos – foram seis: Iguatemi, Itamar, Juarez, Jussara, Jucivalda, Jucimara. Antes, já era pai de Francisco. Embora somente o primogênito tenha se profissionalizado como fotógrafo, todos os Carvalho amam a fotografia. Está no DNA.

Após quase meio século de atuação como repórter fotográfico, Anízio aposentou a velha Rolleiflex em 1994, quando o Jornal da Bahia fechou as portas. Mas sua obra fala por si. Obteve a consagração entre os próprios colegas. Ensinou gerações de jovens recém-saídos da faculdade a serem jornalistas no mundo real. Tudo isso, sem perder a humildade.

É a memória viva de um jornalismo autêntico que se pauta no compromisso, na dignidade, no profissionalismo. Anízio Carvalho é um ícone do fotojornalismo. Gerações e gerações de jornalistas só têm a lhe dizer: “Muito obrigado, mestre.”

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*Jaciara Santos é jornalista, diretora de Comunicação da ABI e membra da Comissão de Ética do Sinjorba.

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI)

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