Quando e como publicar uma notícia sobre suicídio? Perguntas como essas fazem parte do cotidiano da atividade jornalística, diante de situações que obrigam os profissionais a acionar e exercitar a empatia, para além de obedecer recomendações do Código de Ética dos Jornalistas. Debater as dificuldades e a complexidade do trabalho da imprensa nesses casos foi o objetivo do Sinjorba – Sindicato dos Jornalistas da Bahia, ao promover o evento “A cobertura do Suicídio pela Imprensa”, na manhã desta sexta-feira (25). Com o apoio da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA), o encontro ocorreu no auditório da instituição e reuniu jornalistas, estudantes e profissionais das áreas de saúde e segurança.
O mediador Washington Souza filho, professor da Facom, analisou a contribuição das instituições de ensino na formação dos jornalistas. De acordo com ele, o suicídio foi e continua sendo um tabu para a maioria das pessoas, mas o jornalismo, enquanto agente construtor do imaginário coletivo, precisa lidar com o tema. “Estamos no papel de mediadores sociais, de profissionais que atuam na reconstrução de uma realidade. É importante compreendermos a função que podemos desempenhar como jornalistas e como cidadãos”, ressaltou.
Entre os jornalistas, impera um acordo extraoficial que estabelece a não publicização de suicídios pela grande imprensa. Curiosamente, suicídios são cada vez mais publicados e de maneira não respeitosa, com superficialidade, enquanto as empresas de comunicação afirmam não noticiar. O fato é que os índices de suicídio no mundo também não param de crescer. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que ocorram cerca de 800 mil suicídios anualmente, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos. No Brasil, a taxa de mortes por suicídio cresceu 7% em 2016 (último ano da pesquisa feita pela OMS), com 6,1 casos a cada 100 mil habitantes (eram 5,7 por 100 mil em 2010).
A palestrante Malu Fontes, jornalista e professora da Facom, refletiu sobre a cobertura e sugeriu mudanças no trabalho não apenas dos profissionais da imprensa, mas também de quem produz os dados que vão para as matérias. “Não encontramos informações sobre suicídio nem no DATASUS [Departamento de Informática do SUS]”, observa. Para ela, as instâncias competentes precisam produzir e divulgar dados para que os jornalistas cubram melhor a temática. “Do CVV [Centro de Valorização da Vida] à polícia, é preciso que disponibilizem protocolos e informações que ajudem os jornalistas”, avaliou a docente.
Por outro lado, Fontes não tirou a responsabilidade dos jornalistas. Ela propôs discussões sobre as notícias que promovem a exposição da pessoa que tira a própria vida. Como exemplo, usou a capa de um jornal publicado no ano passado. A foto estampada naquela edição retratava um jovem sendo impedido de se atirar de um viaduto, em Salvador. O texto, por sua vez, trazia todas as informações do sobrevivente, como nome completo, unidade acadêmica, bairro de residência etc. De acordo com a professora, é provável que a equipe não tenha analisado suficientemente o caso antes de noticiar.
“O suicídio gera um luto diferente de qualquer outro. Contar a história dessas pessoas é mexer numa dor muito grande. Precisamos falar do suicídio como fenômeno, suas causas, as doenças relacionadas, formas de prevenção e apoio às famílias. Não há necessidade de centrar a cobertura na pessoa, principalmente se não é alguém com vida pública”, defendeu. “Se for para fazer reportagens sensacionalistas, que revirem a intimidade de pessoas comuns, é melhor que o tema siga sendo tabu”, disse.
Quando a vida não é mais uma possibilidade
Segundo a OMS, o suicídio é a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 e 29 anos, perdendo apenas para acidentes de carros. A psiquiatra Lívia Castelo Branco, da clínica Holiste Psiquiatria, falou sobre as principais motivações de quem comete ou tenta suicídio. De acordo com ela, muitas vezes, essa pessoa vivencia dualidade, se sente desamparada, angustiada e não encontra pertencimento no mundo. “O suicídio está diretamente ligado a transtornos mentais. Mesmo assim, a saúde mental é negligenciada. A maioria dos suicídios é evitável”, constatou. “Quando a gente fala dos cuidados que a imprensa precisa ter com o assunto, é sobre não descrever, por exemplo, fatos e cenas chocantes. Cobrir com foco na solução do problema e na evitabilidade do suicídio”, afirmou.
A médica fez uma reflexão sobre “13 Reasons Why”, a polêmica série da Netflix que fez sucesso entre o público adolescente. A produção abordou temas que afetam muitos jovens, como depressão, bullying, isolamento, abuso sexual e suicídio. Mas a forma como tratou os assuntos a tornou alvo de controvérsias. Um das cenas mostra explícita e detalhadamente como a protagonista morreu. “Ao mesmo tempo em que impulsionou a procura por informações, houve a romantização do suicídio e um aumento significativo no número de casos”, ponderou Lívia Castelo Branco. Ela se prepara para a segunda edição da Jornada de Saúde Mental, um evento promovido pela Holiste com o intuito de dialogar sobre a importância do trabalho multidisciplinar no trato com os transtornos mentais. Sob o tema “O Mal-estar no nosso tempo”, o evento acontece nos dias 8 e 9 de novembro, em Salvador (inscrição aqui).
Privacidade e respeito pelo outro
O cirurgião geral Ivan Paiva, do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU, relatou experiências do seu dia a dia como emergencista e ressaltou seu incômodo com o desrespeito na hora dos atendimentos. Segundo ele, houve um acidente na cidade de Madre de Deus (BA) no qual a vítima foi decapitada. Nem a cena chocante evitou que as pessoas fizessem imagens do corpo. “Hoje, qualquer pessoa posta uma foto, não se tem respeito. Quando tentamos impedir registros dessa natureza, somos acusados, inclusive, de cercear o trabalho da imprensa. Mas não é isso. Tentamos preservar a privacidade e a dignidade das pessoas”, explicou.
O capitão PM José Carlos Muniz, representante do Departamento de Comunicação Social da Polícia Militar da Bahia, disse que muitas vezes os familiares das vítimas sabem da ocorrência através da mídia ou de vídeos feitos por populares. “Não raro, é um policial quem tem o primeiro contato com a situação. Temos que esquecer nossas dores para tentar resolver o caso”, afirmou. Ele admitiu dificuldades na relação com a imprensa. “Como eu faço essa interlocução? Alguns repórteres ligam 11h30 para uma matéria que sairá às 11h45. Não há tempo sequer para revisar uma nota sobre um tema tão sério. Vamos informar, tendo o carinho, o zelo e a preocupação. A imprensa tem que fazer o seu trabalho, mas precisamos nos colocar no lugar do outro”, recomendou.
E foi se colocando do outro lado que Marjorie Moura, diretora de Relações Institucionais e Jurídicas do Sinjorba, sugeriu o debate de hoje. “Essa pauta nasceu por causa de um incômodo antigo, pois fui repórter de segurança durante mais de dez anos. Tive a ideia de fazer esse evento depois da morte de um policial. Infelizmente, na ocasião, um colega noticiou nome, batalhão, detalhes dispensáveis mesmo para uma ocorrência em via pública”, contou. Para ela, noticiar que alguém se matou não acrescenta. “Por que falar do indivíduo? A família tem que ser preservada. Norma básica do jornalismo é se preocupar com o outro”, afirmou.
De acordo com Gabriela de Paula, diretora de Saúde, Previdência e Assistência Social do Sinjorba, a entidade queria visibilizar o tema, iniciar a discussão, como tem feito nos eventos realizados desde que a nova gestão assumiu. “Essa diretoria entrou há dois meses e esse é o quarto debate que a gente realiza, sempre sobre assuntos importantes para a nossa atuação”, lembrou. “Vamos elaborar no formato de reportagem, uma espécie de relatório com o resultado do debate, mas eu pretendo provocar para fazermos tópicos de orientação. Sabemos que já existem bons documentos, principalmente o da OMS, a gente tendo críticas a ele ou não. É uma baliza bastante interessante sobre essa reflexão. Também não temos a pretensão de fazer uma normativa, temos o Código de Ética. Se ele fosse seguido, já seria um grande avanço”, completou a jornalista.
- Confira as recomendações da OMS (completo aqui):
Instruções do que fazer quando cobrir suicídio
- Trabalhar em conjunto com autoridades de saúde na apresentação dos fatos.
- Referir-se aos casos de suicídio como “consumado”, não como “bem sucedido”.
- Apresentar somente dados relevantes, em páginas internas de veículos impressos.
- Destacar as alternativas ao suicídio.
- Fornecer informações sobre números de telefones e endereços de grupos de apoio e serviços onde se possa obter ajuda.
- Mostrar indicadores de risco e sinais de alerta sobre comportamento suicida.
Instruções do que NÃO fazer ao cobrir suicídio
- Não publicar fotografias do falecido ou cartas suicidas.
- Não informar detalhes específicos do método utilizado.
- Não fornecer explicações simplistas.
- Não glorificar ou fazer sensacionalismo sobre o caso.
- Não usar estereótipos religiosos ou culturais.
- Não atribuir culpas.
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O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.