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É grande o nosso amor por Cosme de Farias


Luis Guilherme Pontes Tavares*

O jornalista, advogado, servidor público e político baiano Cosme de Farias (1875-1972) ficou ainda maior na minha vida por causa de um trote que recebi após a publicação, há 22 anos, de artigo sobre seu livro Lama & sangue (1.ed. Salvador: e.a., 1926). Essa lembrança se acentuou nos dias atuais por causa da proximidade do 14 de março, data em que a Associação Bahiana de Imprensa (ABI), assim como outras instituições, o homenageará devido à passagem do cinquentenário de sua morte. Vou contar tim-tim por tim-tim o que ocorreu em 2000.

No final de outubro daquele ano, encaminhei ao editor do caderno “Cultural” de A Tarde, jornalista e professor Florisvaldo Mattos, as três laudas do artigo “Biografia de Cosme de Farias”. Em 11 de novembro, portanto dias depois da minha remessa, o artigo, na íntegra, foi publicado (página 2 e parte da página 3) sob novo título: “Ataques a Góes Calmon”. Ao texto, acrescentou-se o box intitulado “Fotógrafo do povo”, em que agradecia a cessão de retrato do biografado pelo amável e venerado profissional Anizio Carvalho, agora com 92 anos (completados no dia 23 de fevereiro).

Box do artigo de 11nov2000 no Cultural de A Tarde, p. 3

Em dia posterior à publicação, no início da noite, alguém (quem?) ligou para o nosso número de telefone fixo e estabeleceu-se o seguinte e constrangedor diálogo:

– É aí que mora o filho da p* do Luis Guilherme?

– Quem está falando?

– Li seu artigo n’A Tarde, seu filho da p*.

Lembro que desliguei. Em seguida, especulei sobre quem poderia ter levantado meu número de telefone pessoal e ligado, movido pelo furibundo propósito de derramar sobre o receptor sua ácida e massacrante ira. Quem? Algum parente do ex-governador e banqueiro Francisco Marques de Góes Calmon (1874-1932)?

Enfim, pouco importa, até porque o desrespeitoso me situou como partidário de Cosme de Farias e não errou de que lado me encontraria!

Pescoço e colarinho – Nas lembranças mais recuadas que tenho de Cosme de Farias, o vejo no alto de caminhãozinho a divulgar a Liga Bahiana contra o Analfabetismo. Ele repetia isso, até o início da década de 1970, nos desfiles cívicos do Dois de Julho e do Sete de Setembro. O público o aplaudia, enquanto, no asfalto, amigos dele distribuíam exemplares da Cartilha do ABI. Mais adiante, em 1971, o vi de perto no térreo do Edifício Ranulpho Oliveira, enquanto esperávamos o elevador. Ele, deputado estadual; eu, funcionário da Assembleia Legislativa que, então, funcionava no prédio-sede da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), vizinho à Praça da Sé.

Ver Cosme de Farias, em 1971, de tão perto, permitiu constatar que o colarinho da camisa dele não era justo e isso permitia que, na altura dos 95 anos, faltasse pescoço para preencher o traje. Recordo de também tê-lo visto no escritório improvisado que mantinha num dos acessos da Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus, e num restaurante da Rua Alfredo Brito, no Pelourinho, almoçando e bebendo cerveja. O Pelô era o território do seu dia-a-dia e era ali que atendia as demandas populares que resolvia junto aos três poderes.

Em finais da década de 1990, 18 anos após a morte dele, voltei a encontrar o jornalista Cosme de Farias na condição de colega do gráfico e editor Arthur Arezio da Fonseca (1873-1940) na Imprensa Oficial do Estado (IOE) e na Associação Typographica Bahiana (ATB). Constatei esse vínculo quando pesquisava para sustentar a tese “Nome para compor em caixa alta: ARTHUR AREZIO DA FONSECA”, que defendi na FFLCH/USP em 2000.

Mais adiante, em 2007, ainda no âmbito acadêmico, auxiliei na edição e publicação do livro Cosme de Farias, sexto volume da Coleção Perfil do Parlamentar da Bahia, criada pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. O livro da professora Mônica Celestino resume a dissertação “Réus, analfabetos, trabalhadores e um major: a inserção social e política do parlamentar Cosme de Farias”, defendida pela então mestranda em 2005.

Para quem, por ventura, tem poucas informações sobre Cosme de Farias, ofereço o breve perfil que acompanhava o texto que encaminhei ao A Tarde em outubro de 2000:

“Fiscal externo da Recebedoria das Rendas do Estado, jornalista e rábula, Cosme de Farias (02.04.1875-15.03.1972) não era militar; a patente de major foi adquirida da extinta Guarda Nacional. Ele foi colega de Arthur Arezio no Jornal de Notícias (1894) e na IOE, onde esteve à disposição nos anos de 1930 e 1940. Era sócio honorário da Associação Typographica Bahiana. Orador cívico prestigiado pelo povo humilde de Salvador, foi deputado estadual nos anos de 1910 e, outra vez, de janeiro de 1971 até a sua morte. Cosme de Farias criou em 1915 a Liga Bahiana contra o Analfabetismo, através da qual distribuiu milhares de cartilhas do ABC.”

Lama & Sangue – Li o exemplar da primeira edição na então Biblioteca Ruy Barbosa da Associação dos Empregados no Comércio do Estado da Bahia (acervo de mais de 10 mil volumes). É necessário lembrar que essa biblioteca desapareceu no bojo da comercialização de imóveis da Rua Chile. O prédio da Associação, também denominado Palacete Tira-Chapéu, prossegue em obras para receber cerca de oito restaurantes temáticos. Apreciaria reencontrar aquele volume que me rendeu mais identificação com Cosme de Farias. Da resenha que escrevi em 2000, seguem mais adiante alguns parágrafos relativos aos capítulos do livro.

Antes desses anunciados parágrafos, registro que há, desde 2018, a 2ª edição de Lama & Sangue. Veio a público com o selo editorial da EDUFBA e prólogo, introdução e notas do advogado Bruno Rodrigues de Lima, paulista formado pela UNEB e pós-graduado na Unicamp, na UnB e no Max-Planck-Institut (Alemanha), com prefácio da professora doutora Wlamyra Albuquerque, da FFCH/UFBA, e apresentação do advogado Adailton Pires Costa, na ocasião cursando doutorado na UFSC. Desconheço as tratativas para a publicação da obra, tendo em vista que ela ainda não caíra em domínio público, o que só ocorrerá em 2042. De todo modo, louve-se a iniciativa.

Vamos, pois, ao resultado da leitura que fiz em 2000 em exemplar da 1ª edição:

“O prefácio, ‘Vômito negro’, é do jurista Carlos Ribeiro. [O livro] tem 21 capítulos e fotografias de políticos e correligionários de Seabra que foram perseguidos por Góes Calmon. O tom geral é o mesmo que se lê na página 48: ‘A Bahia, em tempo algum, teve um governador tão cobarde e tão perverso como o tristemente celebre bacharel Francisco Marques de Góes Calmon que pelo nome não se perca…’

“‘Na Força Pública’ (primeiro capítulo), o autor denuncia: dias após a posse, Góes Calmon demitiu 40 oficiais simpatizantes de Seabra. No segundo capítulo, ‘De foice em punho’, outra denúncia, a demissão do diretor da Biblioteca Pública, ex-deputado federal Francisco Luiz da Costa Drummond, que, por isso, teria morrido ‘victima de traumatismo moral’. No terceiro capítulo, ‘Vingança de Pyrrho’, transcreve o artigo ‘A casa de loucos’, publicado no Correio do Povo (27.06.1924), assinado por José Vicente, mas atribuído por Cosme de Farias ao jornalista Israel Ribeiro. A propósito, Ribeiro publicou em 1926 o livro Minhas prisões, no qual não reconhece a autoria.

“Os capítulos 4 e 5, ‘Um retrato: mysticismo e cangaço’ e ‘A sanguera de Lençoes’, tratam da luta de Góes Calmon contra o poder do coronel Horácio de Mattos na Chapada Diamantina. Na versão de Cosme de Farias, Mattos ganha. Após o banho de sangue nos comandados do tenente coronel PM João da Motta Coelho, que o atacaram, Horácio de Mattos foi nomeado intendente. No capítulo 6, ‘Nas mãos de bandidos’, o autor denuncia que a PM não prestou homenagem póstuma ao tenente coronel Motta Coelho, morto em 17 de fevereiro de 1925 em Lençóis.

“Em ‘Mystificador & mystificações’, sétimo capítulo de Lama & sangue, Cosme de Farias denuncia a propaganda enganosa do governo, a exemplo da estrada Muritiba-Castro Alves, festivamente inaugurada, mas que era apenas para carroças. Em ‘Usurpador de votos & magarefe da lei’, oitavo capítulo, salienta fraudes eleitorais em Jaguaquara (11.11.1923) e Salvador (01.02.1925), sendo que nessa ele próprio foi prejudicado. No capítulo nono, ‘Outras victimas’, detalha como se deu a prisão do jornalista e ex-funcionário do Tribunal de Contas Israel Ribeiro. O capítulo 10, ‘Folha negra’, relaciona os nomes dos que Cosme de Farias considerava traidores de J. J. Seabra.

“No 11º capítulo, ‘Mais uma infâmia’, denuncia a demissão do escrivão Euripides Gomes de Menezes, do distrito de Tartaruga, em Amargosa, porque não quis falsificar uma ata eleitoral. ‘Subsídio para a história’, 12º capítulo, relaciona a série de decretos de Estado de Sítio que atingiram a Bahia no governo Góes Calmon. Em ‘Alma de chacal’, 13º capítulo, o autor relata suas desditas, desde a prisão em 12 de julho de 1924, seguida da deportação para o Rio de Janeiro, onde permaneceu preso até 28 de fevereiro de 1925. “De volta a Salvador, [Cosme de Farias] foi mais uma vez preso em 5 de abril de 1925 e levado para cela na Secretaria de Segurança. Ali ouviu os gritos que o chefe de polícia, Pedro de Azevedo Gordilho, arrancava dos presos: ‘Quando as mãos inchavam e começavam a gotejar sangue dos cantos das unhas, mandava dar bolos na palma dos pés.’ (Página 91 de Sangue & lama [Salvador: e.a., 1926]).”

“No 14º capítulo, ‘A bolsa ou a vida’, Cosme de Farias denuncia a extorsão do Tesouro estadual na selagem de tributos em valores superiores ao devido. No capítulo 15º, ‘Correligionário de ladrões e protetor de sebaças’ denuncia a transferência da sede municipal de Sento-Sé para o distrito de Aldeia por motivos políticos. ‘Um gesto nobre’, 16º capítulo, elogia a iniciativa do coronel Marcelino Figueiredo, de assinar artigo contra Góes Calmon no Diário de Notícias (06.04.1925). No capítulo 17, ‘A delação de um pústula e o granir da cobardia’, relata a tentativa de atentado de Fernando de Luna Freire contra a Góes Calmon em 9 de março de 1925.

“O 18º capítulo, ‘Cabotinismo & cabotinagens’, é dedicado aos gastos do Governo Góes Calmon com a propaganda oficial. No 19º capítulo, ‘Um rol de bandalheiras e o grito de justiça’, Cosme de Farias relata como foi a dilapidação da herança de Cecília Mendes pelo coronel José Rodrigues Mendes. Em ‘Villanias & tropeços’, 20º capítulo, o autor denuncia que a subvenção de seis contos de Réis que destinara como deputado ao Asylo de Mendicidade fora suspensa pelo governo.

O 21º capítulo, “Última pá de cal”, contém a sentença final de Cosme de Farias: ‘Maldito seja, pois, o nome delle pelos seculos a fóra…’”

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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

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