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Em 1890, Tarquínio e Ruy Barbosa duelaram

Você sabia que eles foram vizinhos no Centro de Salvador? Confira essa história no artigo de Luis Guilherme Pontes Tavares!

Luis Guilherme Pontes Tavares*

O livro Direitos de importação em ouro. Cartas do Ministro da Fazenda, Cons. Ruy Barbosa e do Dr. Aristides Galvão de Queiroz seguidas de considerações sobre as tarifas do Brasil e da União Americana (Salvador: Imprensa Popular, 1890), organizado e patrocinado pelo empresário Luiz Tarquinio (1844-1903), reclama nova edição, quiçá comentada por economista que transite bem na ficção. A obra tem 292 páginas e documenta a polêmica do empresário com o ministro em torno da política econômica do início da República.

Capa da coletânea de artigos publicada em 1890

Tarquinio publicou as cartas dele no Jornal de Notícias, as oito primeiras sob o pseudônimo W. As respostas atribuídas ao ministro Ruy Barbosa foram publicadas no Diário da Bahia, assinadas sob o pseudônimo de Z., que, na verdade, encobria o engenheiro, médico, professor, doutor em Matemática e político soteropolitano Aristides Galvão de Queiroz (1845-1925), colaborador daquele que, em 1907, seria conhecido com o aposto de “O Águia de Haia”. O duelo foi marcado pelo propósito de desqualificar as argumentações um do outro, mas ele mantém roupagem elegante e culta. Tarquinio, na primeira carta, carimba a proposta econômica do ministro da Fazenda com esta sentença: “… infelizmente, de sua leitura ficou-me ainda uma vez a convicção de que aos vossos informantes, sobre matéria comercial, falece idoneidade ou boa fé”. p. 1

Há exemplar do livro na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris. O que li, no início de setembro passado, pertenceu à Associação Typographica Bahiana, instituição criada em 1871, de que participavam gráficos, jornalistas e figuras públicas. Foi impresso pela Imprensa Popular, tipografia que funcionava no número 42 da Rua Coberto Grande, depois denominada de Rua Rodrigues Alves, localizada no Comércio. Desconheço informações sobre essa tipografia, mas sei que Tarquinio estreitou, na segunda metade da década de 1890, colaboração com o gráfico e editor Cincinnato José Melchiades (Cachoeira, 1858-Salvador, 1920), proprietário da Typographia Bahiana.

Os vizinhos da Rua dos Capitães

A diferença de idade de Tarquinio e Ruy é de cinco anos; ambos nasceram na mesma rua, denominada Ruy Barbosa desde 1903, no centro de Salvador. Ainda não há informações sobre algum convívio dos dois e sequer cheguei a alguma foto dos dois ilustres brasileiros juntos, na fase adulta. A citada rua, na primeira metade do século XIX, já apresentava os maus tratos que se acentuam até os dias de hoje. Não se pode comparar o berço dos dois; Ruy nasceu em lar modesto, mas tinha parentes com posses e prestígio. Luiz nasceu em lar situado numa viela estreita e enladeirada, perpendicular à rua na qual Ruy nasceria em 05 de novembro de 1849. O futuro empresário é filho de mãe solteira, negra, lavadeira e bonequeira, a quem ele auxiliaria desde menino e a quem jamais abandonaria. Desconheço se ela, dona Maria Luiza dos Santos, teve alguma aproximação com dona Maria Adélia, mãe de Ruy, que produzia bolos para vender e, assim, auxiliar nas despesas da família.

Ruy Barbosa estudou Direito em Recife e em São Paulo, enquanto Luiz, que aos 10 anos, com a autorização da mãe, que ajudou a alfabetizá-lo, adotaria do sobrenome Tarquinio, cursou apenas três séries do primário, mas, na altura da querela com o ministro da Fazenda, era leitor incansável, poliglota e transitava com conforto nos campos do Direito e da Economia. Viajara para a Europa em mais de 20 ocasiões e fora sócio de empresa importadora de tecidos, onde contribuíra também como designer têxtil. Em 1890, ele estava às véspera de fundar a Companhia Empório Industrial do Norte (CEIN), dona da Fábrica da Boa Viagem, na Península Itapagipana. Se a proposta de Ruy visava incentivar a industrialização do Brasil, por que Tarquinio mostrou-se contra? Porque ele entendia que a proposta de Ruy era açodada.

Isso está patente no 2º parágrafo da p. 203 do livro: “Não será raciocinar como criança supor  que basta uma lei restritiva da importação para fazer baixar instantaneamente uma indústria nacional capaz de suprir o déficit produzido por tal lei?” Tarquinio, pois, questionara: se não havia fábrica no país, por que, então, dificultar a importação de produtos?

A bibliografia sobre Luiz Tarquinio tem publicações relevantes e inclui preciosidades como o texto do escritor Péricles Madureira de Pinho (1908-1978), que publicou seu Luiz Tarquinio (Salvador: Companhia Empório Industrial do Norte, 1944) no ano do centenário de nascimento do empresário. Há, todavia, muito o que pesquisar a fim de entender o personagem exemplar desta nossa Bahia e deste nosso Brasil. Um dos aspectos curiosos é o exercício do jornalismo por Tarquinio. Contribuiu até mesmo na nascente (final do século XIX) comunicação empresarial com os periódicos O Operário e Cidade do Bem, ambos destinados aos operários  da sua fábrica de tecidos e os residentes da Vila Operária da Boa Viagem. A sugestão está colocada!

Entre as publicações de Tarquinio, muitas das quais folhetos reunindo textos jornalísticos, incluem-se. O elemento escravo e as questões econômicas do Brasil  (Salvador: Typ. Dos Dois Mundos, s.d.). Em 1892, reuniu artigos publicados na Capital Federal (Rio de Janeiro) sob o título de Auxilio ás industrias (Salvador: Imprensa Popular), a única obra em PDF que encontrei – https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/222327 ). A solução da crise (Salvador: Imprensa Popular, 1892) e Apelo aos ilustres representantes da nação (Rio de Janeiro: Litho-tipographia de Pinheiro, 1895).

Mais de 30 cartas de lá para cá

Foi Luiz Tarquinio quem publicou a primeira carta e, duelo iniciado, seguiram-se outras sete, assinadas com o pseudônimo de W. e contraditadas por Z., o escritor Aristides Galvão de Queiroz, distinguido pelo ministro Ruy Barbosa para a tarefa. O debate prossegue com a troca cerca de mais oito cartas de cada lado e à coletânea se somou o arrazoado final de Tarquinio submetendo ao exame públkico se o seu ponto de vista era o correto.

Selecionei trechos do livro, inclusive a apresentação, e atualizei a ortografia. Eis o primeiro texto:

“Combatendo o alvitre tomado pelo Governo de mandar cobrar integralmente em ouro os direitos de importação, publiquei no Jornal de Notícias deste Estado, com ao pseudônimo de W., as oito primeiras cartas que se seguem, dirigidas ao Ministro da Fazenda, o preclaro Sr. Cons. Ruy Barbosa.

A essas cartas, primeiramente sob o pseudônimo X. e depois com sua assinatura, respondeu o ilustrado Sr. Dr. Aristides Galvão de Queiroz, a quem pedi venia para inserir neste volume os artigos que tão cortesmente opôs aos meus.

Cabe agora ao público, analisando os escritos que submeto ao seu esclarecido juízo, apreciar de que lado está a razão”.

Esse primeiro trecho está datado de novembro de 1890 e, no final, estampa a assinatura de Tarquinio. O próximo trecho, publicado na página 45 do livro, revela que ele se surpreenderia, após a oitava carta, com o prosseguimento da querela:

“Terminando esta série de cartas, peço-vos desculpa se de qualquer modo involuntariamente vos magoei. Citando-vos contra vós mesmo, não tive em mira salientar a divergência de vossas próprias ideias para desmerecer-vos no talento e no tão ilustre nome. O meu fim foi antes mostrar que não vos faltam habilitações para bem desempenhardes o importante cargo de ministro das finanças; mas que a diversidade de trabalhos a que vos entregais, a pouca prática dos negócios econômicos e financeiros e o açodamento com que procurais promover o nosso engrandecimento vos levam a apresentar falhas em trabalhos, que seriam perfeitos se lhes destinásseis tempo para refletido estudo.”

A propósito, na 10ª carta (p. 91 do livro), o representante do ministro da Fazenda anuncia sua disposição de prosseguir a querela:

“Volto a ela com um novo estimulo produzido pela vossa extraordinária habilidade em desencavar contradições onde realmente não existem, apresentando-as aos nossos leitores desatentos, que, lendo um jornal e não um livro ou uma revista cientifica, não se acham dispostos nem se dão ao trabalho de examinar o verdadeiro sentido e significação especial de cada palavra empregada nos trechos ou expressões aparentemente contraditórios.”

Na página 182, após a troca de novas cartas, o elegante Luiz Tarquinio propõe ao representante do ministro:

“E’ bem possível que tenhais razão, e nesse caso quero adotar o meio fácil de habilitar o público a um julgamento seguro, impondo ao mesmo tempo a mim próprio tudo o que facilite a minha condenação. Este meio é reunir quanto tenho escrito, e publicar em um volume que farei distribuir não só neste como nos outros estados da República. Se quiserdes fazer o mesmo quanto aos vossos escritos, nada tenho a opor; entretanto, prefiro que me permitais publicá-los conjuntamente com os meus, a fim de tornar mais fácil ao público a sua acareação.

Creio dar com isto a prova mais cabal de que não é intenção minha armar à superficialidade de uma leitura rápida.”

Em nenhuma das cartas de Tarquinio há protesto dele pelo fato do ministro não lhe responder, de pena própria, as cartas a ele dirigidas. Faz, no entanto, de conta que é o próprio Ruy o autor, de modo que ele o mantém no texto como o único e qualificado interlocutor, como demonstra este trecho da p. 221:

“Quem na melhor boa fé, e fundado na justa nomeada que tem S.S. de talentoso, erudito e aplicado, não lhe daria o voto para que dirigisse as finanças do país? Ninguém por certo. Entretanto o que faria com todo seu talento, quando de cada frase, de cada palavra sua transuda a maior negação para assuntos econômicos, financeiros e comerciais?”

Ao final do livro, na p. 282, o qualificado e admirável Luiz Tarquinio, o filho do povo que ascendeu à riqueza, escreve:

“Terminando este trabalho, que foi além dos limites que tinha-lhe traçado, peço ainda uma vez ao ilustrado ministro da Fazenda que não veja em minhas palavras o desejo de lhe ser hostil. Prende-me a si os sentimentos da mais forte simpatia por sua pessoa e de admiração ao seu privilegiado talento.

O meu fim foi apenas prestar um serviço ao meu país, orientando-o em questões sobre as quais a maioria da população tem ideias completamente falsas.”

Viva o Brasil e os brasileiros decentes!

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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
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