Discurso de Ruy Barbosa na Bahia, em 1919

Tudo, na Bahia, é grande, tudo, menos os que a governam. Esses, tão pequenos diante dela se sentem, que, neste momento, quando ela se revela toda na maior expansão conhecida até agora de sua grandeza, a evitam, a fogem, a distanciam de si, mais que nunca, receando-lhe a vista, não ousando encarar-lhe a majestade, e temendo-lhe os movimentos.

Não, senhores; ninguém jamais viu esta cidade inteira nas ruas, com essa intensidade ondulosa das grandes marés em crescente, como neste dia de inundação popular, em que todos os logradouros públicos se enchem de vagas humanas; em que as artérias da sua circulação lhe intumescem, como se estivessem a romper-se de supertensão que as dilatam; (….) Em que diríeis ver a Bahia toda respirando, pulsando, existindo numa só vontade, numa só consciência, num só coração, na harmonia de todos os seus em um espírito de harmonia divina. (…)

Esta mesma reunião de intelectuais, na qual “não entram paixões inferiores”, como bem disse, há pouco, o ilustre catedrático, que me acaba de falar em nome dos corpos docentes, esta mesma reunião da flor da nossa intelectualidade, não encontraria lugar, onde exercesse seus direitos, se o oficialismo, que lhe cerrou as portas, lograsse obstar a que se nos achassem abertas as desta Faculdade, pelo espírito liberal de seu diretor (….)

É, senhores, que a ciência e a liberdade são irmãs. A ciência não prospera senão à sombra da liberdade. A liberdade não prevalece, a verdadeira liberdade, senão estribada na ciência, alumiada pela ciência, e com a ciência consorciada na mútua aliança dos valores de ambas.

A opressão, pelo contrário, não subsiste senão graças à união forte da ignorância com a estupidez. Essa união pode ocupar tronos e ser conduzida em carros triunfais. Mas esses carros de triunfo, quem os tira, é a parelha do analfabetismo com a brutalidade. Mas esses tronos, onde assentam, é nos capachos da imbecilidade e do servilismo.

Ela não tolera o merecimento e a superioridade, não suporta a competência e o saber. Sua inconciliabilidade absoluta com a luz, com a limpeza, com a lisura, com a legalidade a condena a viver nas trevas, a detestar a instrução, a excluir a capacidade, a cevar a baixeza, a incitar o ódio, a se apoiar na violência, a desenvolver a selvageria, a chafurdar na imoralidade. Invejosa e malquerente, voraz e insaciável, libertina e concubinária, ostenta, nos seus paços a lascívia e a mancebia, pratica, nos seus atos, a espoliação e o latrocínio, cultiva, nas suas relações, a intriga e a mentira, converte, em suma, o poder público no espojadouro dos instintos mais ruins da besta humana e na proscrição das nossas qualidades superiores.

Ainda ontem, senhores, nesta capital, a vitoriosa atitude do povo bahiano se viu grosseiramente maculada pelas alarvarias da capangagem, que o governo atrela, o governo desaçama, o governo assoldada a expensas do tesouro público, notória, clamorosa, e cinicamente roubado pelos seus guardas.

Ainda ontem, eleitores, transeuntes e, até mulheres, experimentavam nas seções eleitorais as agressões dos sicários da polícia, e seus delegados. Assim, ontem, nas mesas eleitorais, se ostentava o escândalo da insolente prepotência das armas do jagunço em franca hostilidade ao eleitorado. (…)

Ainda ontem, por toda a parte, na superfície do Brasil, eram rejeitados os meus fiscais, era negada a consignação nas atas aos seus protestos, e milhares de eleitores nossos deixavam de votar, porque, sendo conhecida a cor de seus sufrágios, não se reuniam as mesas, para lhos receber.

Que posso eu, que valho eu, que sou eu, senhores, para servir de barreira a esses embates da força, desencadeadas pelo elemento oficial e garantida por ele nos seus crimes? (…)

Nossa reação, que a não estar próxima, já chegará tarde, grande papel vos reserva, homens da inteligência e do saber, homens da palavra e da tribuna, homens do ensino e da pena, grande papel vos reserva a natureza das energias, que, profissionalmente, vos devem caracterizar. (…)

Acima de todos os elementos da organização, de administração de regeneração, acima de todos se acha, evidentemente, como a mais política de todas as forças políticas, a inteligência, a cultura, a ciência. (…)

Se disto ainda vos não sentísseis cabalmente certos, bastaria atentardes no exemplo de agora. Todo este movimento nacional, que, em só quarenta e cinco dias de trabalho, ou nos terá dado também a vitória material, ou com a vitória moral, já obtida, deixará ferida mortalmente a vitória de nossos adversários, todo esse movimento é obra das forças imateriais, das forças intelectuais, das forças morais da nossa terra, em luta contra este obscurantismo, com essa incompetência, com essa amoralidade, que reinam sobre o Brasil.

publicidade
publicidade