Que Nelson Rodrigues nos perdoe, mas algumas unanimidades possuem suas razões de serem. É o que se confirma no caso de Florisvaldo Mattos. Nesta semana, em que completa 90 anos nesta sexta-feira, o poeta, jornalista, professor de jornalismo, membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) e 2° vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) é celebrado, homenageado e entrevistado. Ainda não se conhece alguém que questione o legado e a importância desse grande intelectual baiano.
“Tem gente que é cíclico. Florisvaldo é constante. Ele tem energia para estar sempre rendendo”, comenta o jornalista Valber Carvalho, membro do Conselho Consultivo da ABI. Entre 2018 e 2019, o jornalista produziu, na sede da Associação, o documentário “Memórias da Imprensa – A História do Jornalismo Contada Por Quem Viveu”. Curiosamente, quando gravou o episódio com Florisvaldo Mattos, ele dividiu-o em duas partes: o jornalista e o poeta. De fato, sobre essas duas facetas do autor, muito se pode dizer.
Natural de Uruçuca (que, na época, era o distrito ilheense de Água Preta), Florisvaldo teve uma trajetória de sucesso na escola e no ginásio. As lembranças carinhosas dos professores e das lições deixam entrever, também, os primeiros vislumbres da sua vocação literária. “Comecei a me interessar por leitura ainda no primário. Estudando no grupo escolar Carneiro Ribeiro, a professora Dadá adotava livros para leitura que havia poesias e contos ”, recorda o poeta no documentário “Memórias da Imprensa”. A partir dali, Florisvaldo passa a ler Gonçalves Dias, Fagundes Varela e Castro Alves e, depois, os poetas parnasianos.
Ao terminar os estudos no colégio, a escolha sobre qual caminho tomar na vida o chamou: poderia ir para uma escola militar ou seguir para o ensino superior. Decidido a estudar Direito na capital, Florisvaldo recebeu um único conselho da mãe antes de sair de casa: “Minha mãe me disse assim: ‘Meu filho, vá para a Bahia (Salvador era chamada assim no interior). Faça tudo que você queira fazer, só não se meta com gente ruim’. Ruim com acento no i”.
Conselho aprendido, Florisvaldo andou com gente da mais alta estima, mesmo quando ainda estudava em Itabuna, quando mantinha comunicação com o poeta Sosígenes Costa. Foi por intermédio dele que Mattos conheceu Walter da Silveira e, posteriormente, Glauber Rocha. Suas relações se intensificaram em 1956, quando o então estudante envia para publicação na Revista Ângulos o seu poema “Composição de Ferrovia”. Até então, seus poemas eram publicados em revistas das cidades de Ilhéus e Itabuna, com circulação mais reduzida.
“Eu estava sentado no pátio da faculdade (a antiga faculdade de direito que ficava onde é hoje o prédio da OAB) e o porteiro veio me chamar. Disse que tinha uns rapazes no portão querendo conhecer Florisvaldo Mattos. Quando eu cheguei lá, estavam quatro jovens: Glauber Rocha – que eu já conhecia de vista -,Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor e Antônio Guerra Lima. Aí, Glauber começou a falar dizendo ‘Viemos aqui para conhecer o melhor poeta modernista da Bahia. Nós lemos hoje o poema que você publicou na Revista Ângulos. É uma maravilha’”, lembra Florisvaldo, sorrindo. “Aí começou toda a saga que seria a Geração Mapa”.
A Geração Mapa e o jornalismo
Nos anos 50, o cenário sócio-cultural de Salvador – e de toda a Bahia até – era de provincianismo. Como descreve a jornalista, escritora e doutora em Letras Kátia Borges, os jovens do grupo que vão compor a Geração Mapa desejavam “vencer a província sem sair da província”, como dizia Glauber Rocha. Eram garotos, ainda adolescentes, estudantes do Colégio Central”, afirma.
No grupo, houve, obviamente, a presença intensa do cineasta, junto com Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Myriam Fraga, Guido Araújo, João Ubaldo Ribeiro. Apenas as companhias que a mãe de Florisvaldo pediu para que ele escolhesse estar próximo. Eram interessados em poesia, literatura, artes plásticas e jornalismo. “A ideia era que cada um pudesse falar da sua especialidade”, afirma Florisvaldo.
Florisvaldo era alguns anos mais velho do que seus amigos, que ainda estavam no colégio secundarista. Como coloca Kátia Borges, ele foi praticamente intimado a entrar no grupo por Glauber. Mas dessa relação surgiram bons frutos. “Suas contribuições são muitas e diversas: criaram as jogralescas (com interpretação naturalistas antes da Escola de Teatro da UFBA), a revista literária Mapa, a editora Macunaíma, que editou vários livros e a produtora de cinema Yemanjá Filmes. Seus integrantes formaram a primeira redação de jornalismo com feição moderna (norte-americana) no Jornal da Bahia”, conta a pesquisadora. É pela editora Macunaíma que Florisvaldo publica o seu primeiro livro: Reverdor.
Na época poderia não ter parecido ao Florisvaldo graduando em Direito mas, ali começava também a sua relação com o jornalismo, que rendeu a ambos ótimos momentos. Com passagem pelo Jornal da Bahia e pelo Diário de Notícias, extinto em 79, sob a pena de Inácio Alencar. Talvez tenha sido no A Tarde o lugar onde o jornalista Florisvaldo foi mais ousado, trabalhando como editor do suplemento literário do jornal na década de 90. Foi ele quem implantou uma nova linha editorial no caderno, mais aberto a experimentações e com o objetivo de divulgar os artistas baianos.
“O Cultural era resultado de vários acertos. Além do planejamento com folga, da visão de humanista e esteta, experiência por veículos como editor-chefe do Jornal do Brasil e chefe do Diário de Notícias, o trânsito do jornalista, professor e ex-gestor da Fundação Cultural do Estado com fontes múltiplas dava-lhe a liberdade para descolar a pauta do hard news, solicitar a custo zero artigos nas fases de penúria da empresa e pautar reportagens raras”, recorda a jornalista Simone Ribeiro, diretora de Divulgação da ABI. Ribeiro também foi aluna de Mattos e sua substituta na edição do caderno.
Kátia Borges escreveu sobre a virada proposta por Florisvaldo em sua tese sobre o caderno cultural de A Tarde. “Mattos resume em uma frase seu projeto para renovar o caderno: ‘Valorização da criação artística e da reflexão crítica’. É interessante notar observar como este editor se refere ao Modernismo baiano como um processo único e contínuo do qual faz farte”.
O poeta
Do moderno jornalista ao poeta modernista é apenas um passo. “Poesia, para mim, é uma vocação como qualquer arte. O cara pode se aperfeiçoar na sua arte, mas não pode ser um artista sem vocação”, declara Florisvaldo.
Se a vocação é inata ou não, ainda não se sabe. Decerto que Florisvaldo a manifestou muito cedo, tendo escrito seus primeiros versos ainda na escola. Ele, que experimentou do parnasianismo ao simbolismo, foi apresentado à poesia moderna por Sosígenes Costa que, segundo Mattos, lhe abriu “os olhos e mente”. “Eu comecei a focar na realidade circundante que a poesia tem de encarar”.
A realidade que o poeta busca retratar tem vestígios do mundo agrário onde viveu, que via, atônito, a chegada das primeiras tecnologias, como a ferrovia que lhe inspirou o poema pelo qual veio a se tornar conhecido. Um dos seus contemporâneos, o escritor Ruy Espinheira Filho, também membro da ALB, afirma que a poesia de Florisvaldo é dotada de “uma grande carga lírica”. “Florisvaldo Mattos é um poeta importante não apenas para a Bahia, mas ele tem renome nacional. É um estudioso também”, afirma Ruy.
Na década de 70, quando inicia o seu mestrado em Ciências Sociais, Florisvaldo se propõe a estudar a Revolta dos Búzios, também por conta do seu interesse no livro do pesquisador e professor Luís Henrique Dias Tavares. A pesquisa se tornou um livro, que teve bastante repercussão por conta do foco de análise dado à revolução. Não sendo um historiador, mas um jornalista, Florisvaldo interessava-se bastante pelos meios de comunicação social usados pelos revoltosos. O episódio tornou-se fato citado como uma das contribuições intelectuais de Mattos e conquistou até o professor Tavares, que lhe disse achar a tese magnífica.
Além do livro de sua tese, Florisvaldo possui 10 obras publicadas, em sua maioria obras poéticas. No verso de seu livro Reverdor, encontra-se a carta remetida pelo amigo e colega de profissão Glauber, uma das mais sinceras e comoventes análises da poesia de Florisvaldo Mattos.
“O melhor presente que recebi foi o teu livro de poesia Fábula Civil. (…) Olha aqui, teu livro não me surpreende, que fui um dos primeiros a descobrir a pura mágica da tua poesia. O livro me agrada que vejo que o poeta cresceu de grande que era para ser o maior poeta brasileiro da geração pós 45 (…). Porque você é o melhor, depois de Jango Cabral de Melo Neto e o melhor antes que outro apareça. Mas na poesia o compromisso histórico se revela e todos reconhecem serenidade, amor, lirismo, teoria, prática. Meu velho Flori, Is, Valdo, Mattos. Teu nome tem flor, tem mato, tem is, que quer dizer: ‘é certo’”.
*Sob supervisão de Simone Ribeiro.