Por I’sis Almeida e Joseanne Guedes
“Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Com essa manchete, o jornal Folha Universal protagonizou um dos mais famosos casos de racismo religioso no Brasil. A capa publicada em outubro de 1999 trazia a foto de uma mulher vestida com trajes de sacerdotisa e tendo aos pés uma oferenda. Era a Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, do terreiro Axé Abassá de Ogum. Mãe Gilda, como era conhecida, teve sua casa invadida e foi agredida por representantes de outra religião. Ela faleceu três meses depois da publicação da matéria: a disputa contra o veículo de comunicação piorou o seu quadro de saúde. O episódio levantou debates sobre diversidade e pluralidade de vozes em circulação no sistema brasileiro de mídia – fortemente marcado pela presença religiosa desde os anos 1980 –, e profissionais da comunicação têm conquistado cada vez mais espaços para pautar conteúdos relativos às religiões de matriz africana.
Um estudo realizado pela Ancine – Agência Nacional de Cinema, em 2016, mostra que a programação religiosa é o principal gênero transmitido pelas redes de TV aberta do país, ocupando 21% do total de programação. A campeã é a Rede TV!, que teve 43,41% do seu tempo destinado a programas religiosos naquele ano. Em seguida, vieram a RecordTV, com 21,75%, a Band, com 16,4%, a TV Brasil, com 1,66%, e a Globo, com 0,58%.
O Media Ownership Monitor Brasil (MOM), um serviço de mapeamento e base de dados sobre comunicação (mídia impressa, rádio, televisão e online), descobriu que apenas cinco famílias controlam os 50 veículos de maior audiência no Brasil. Dos 50, nove são de propriedade de lideranças religiosas – todas cristãs. O Grupo Record, formado hoje pela RecordTV, a RecordNews, o Portal R7 e o jornal Correio do Povo, entre outros veículos não listados na pesquisa, pertence desde 1989 ao bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Os bispos da IURD possuem também, desde 1995, emissoras de rádio, como as que formam a Rede Aleluia, também incluída na pesquisa pelo seu alcance e audiência. O grupo, inclusive, é dono da Folha Universal, responsável pelos ataques sofridos por Mãe Gilda de Ogum e sua família. O jornal tem tiragem de 1,8 milhão de exemplares, muito acima dos jornais diários de grande circulação, como a Folha de S. Paulo, com cerca de 300 mil exemplares/dia.
Outros veículos evangélicos listados na pesquisa são a Rede Gospel de televisão, cujos responsáveis são o apóstolo Estevam e a bispa Sônia Hernandes, líderes da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, desde 1996, e a Rede Novo Tempo de rádio, lançada pela Igreja Adventista do Sétimo Dia em 1989. Já a Igreja Católica aparece na pesquisa associada a duas redes: a Rede Católica de Rádio (RCR), fundada em 1997 a partir da união de sete outras redes de rádio já existentes pertencentes a instituições e leigos católicos, e a Rede Vida, concessão dada em 1990 mas que começou a transmitir em 1995, sob gestão do INBRAC – Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã.
De acordo com o MOM, “as minorias religiosas do país, como as religiões de matriz africana (umbanda e candomblé), não têm voz no sistema brasileiro de mídia de maior audiência”. A análise realizada pela Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras, afirma que “a forte presença de igrejas evangélicas e católicas nos cinquenta veículos de comunicação de maior audiência, representa um risco ao pluralismo e à diversidade no país”, diz trecho da pesquisa.
Novas vozes
Na capital baiana, o rádio e a televisão sempre foram marcados por produções que tratam abertamente ou são especificamente sobre alguma religião, mas a predominância é da religião católica e das igrejas evangélicas pentecostais ou neopentecostais. Entre as poucas iniciativas que não se enquadram nessas crenças, estão o programa “Sintonia”, do líder espírita José Medrado, produzido pela Rádio Metrópole há mais de 15 anos, e o programa “Axé com Aritana – Silvio França”, da TV Band. Esta última atração reivindica o status de “primeiro programa da diversidade religiosa e matriz africana na história da televisão baiana”. Assim como a maioria da programação veiculada pelos canais com conteúdo católico ou evangélico, “Sintonia” e “Axé com Aritana” são comandados por líderes religiosos e não por profissionais da comunicação.
Surpreendentemente, nos últimos anos, vem surgindo iniciativas que descaracterizam a antiga realidade do rádio e TV, até mesmo da rede aberta, que demarcam espaço com outros olhares, pensamentos e ideias relacionadas às religiões na Bahia e no Brasil. Esse é o caso do programa Mojubá, apresentado na Rádio Metrópole FM pela jornalista Cristiele França. A trajetória dela esteve marcada pela religiosidade desde os tempos de seu primeiro estágio. Ela é ekedi [cargo feminino de quem “zela” pelos orixás], confirmada há 25 anos no candomblé, no entanto, sua primeira experiência profissional se deu numa rádio evangélica. Alguns anos depois, quando entrou na Metrópole surgiu a oportunidade de escrever e projetar um programa que falasse diretamente sobre a religião de matriz africana.
Cristiele França
O Mojubá foi lançado em 2018, no dia 12 de maio e trata especificamente do candomblé, uma religião formada por três nações, com costumes e tradições diferentes: ketu, jeje e angola. O programa foi escrito por Cristiele e a aprovação para estrear, além de uma surpresa, foi a confirmação da confiança do Grupo Metrópole em seu trabalho. “Tive o ‘start’, resolvi escrever sem consultar muitas pessoas. Apresentei para a direção da rádio e pronto!”, exclamou a jornalista. Ela só não esperava que o aval da diretoria acontecesse tão rápido. Mário Kértesz, gestor da Metrópole, recebeu a proposta em mãos e ligou avisando quatro dias antes de iniciar o programa. Segundo ela, foi exatamente assim que recebeu o feedback: “Olhe, no dia 12 seu programa vai ao ar, se prepare aí”, disse Kértesz.
De acordo com Cristiele, “o Mojubá tem como propósito desmistificar e quebrar paradigmas que estão ligados ao candomblé, como a frequente associação com o ‘demônio”, conta. “Nossos ouvintes já sabem mais ou menos o perfil do programa, a gente não quer convencer ninguém a entrar na religião, a gente quer mostrar o que faz parte da nossa cultura, que não existe nenhuma adoração ao diabo. Isso não tem nada a ver com a gente, é uma visão muito católica”, explica França. O programa Mojubá da Rádio Metrópole é transmitido todos os sábados pela FM, às 8h.
Existem também iniciativas que não fazem parte do horizonte da televisão e do rádio, como a produção audiovisual da diretora Carla Nogueira, que escreveu e produziu o documentário “Cem anos do Bate Folha” sobre o terreiro localizado no bairro da Mata Escura, em Salvador. “Programas como o Mojubá surpreendem, mesmo no estado mais negro do Brasil”, afirma. “A minha mãe [de santo], Nengua Guanguacesse, escuta o Mojubá todos os sábados”, contou Nogueira, ao saber que uma das entrevistadas para essa reportagem se tratava de Cristiele França.
A realização do curta rendeu a Carla premiação no concurso “Comunidades Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”, do programa de cooperação intergovernamental IberCultura Viva da UNESCO. A produção foi uma proposta de Carla, que é formada em Letras pela Universidade Federal da Bahia e doutoranda em Cultura e Sociedade (Pós-Cult) da UFBA, ao Programa à Agência Experimental Em Comunicação e Cultura (AECC) e ao Laboratório de Audiovisual (LabAV) da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Carla Nogueira
O documentário conta a história do Bate Folha e possui traços sobre a vivência em comunidade, partilha, humildade e fé, características que, segundo Carla, “ficam nitidamente explícitas nas falas dos mais velhos do terreiro”. A produção acabou se tornando um importante marco na relação entre o terreiro e a universidade, e serviu para mostrar como foi possível, sem qualquer apoio ou recurso governamental, o povo de santo da Mata Escura ter preservado uma área remanescente de Mata Atlântica durante muitos anos. “O processo de produção foi muito natural e o documentário se transformou em uma forma de proteger a memória do terreiro. Precisamos ouvir os ensinamentos dos mais velhos e as religiões de matriz africana precisam ser escutadas através de sua própria perspectiva”, destaca a diretora.
Outro exemplo de iniciativa audiovisual com essa temática é o longa “Àkàrà: no fogo da intolerância”, com produção executiva de Fabíola Aquino, sócia-diretora da Oba Cacauê Produções. Apesar de não ter como centro das atenções o candomblé, trata de uma importante figura para a religião: o àkàrà, mais conhecido no Brasil como acarajé. O filme de 72 minutos de duração tem como objetivo promover um debate em relação à nova e conflitante realidade de um dos pratos mais populares da culinária baiana. Além do acarajé, três personagens são importantes para a trama: Dadai, Cida e Liu, três baianas de acarajé com traços de história e personalidades completamente distintos, sendo duas delas evangélicas.
“O enredo de Àkàrà foi muito bem articulado com a diretora peruana Cláudia Cháves”, conta a produtora. Elas pensaram exatamente em três personagens que dessem conta, através de suas histórias, de conduzir o público à reflexão sobre o que Aquino considera como uma “doença social”, ou uma possível “vivência às margens do colonizador”, explica. “Eu tenho feito alguns filmes em torno do patrimônio histórico, mas Àkàrà vai trazer especificamente a pauta sobre o título de patrimônio imaterial que as baianas receberam do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e a ameaça da perda desse título por causa da descaracterização da vestimenta”. O filme traz um trecho em que uma das baianas evangélicas diz que não pode se vestir “com as vestes do satanás”. De acordo com Fabíola, essa foi a motivação para fazer o filme, que começou como a reportagem especial “Acarajé é Fogo”, para o Canal Futura. “Ali, a gente já apresentava as personagens centrais do que é o nosso longa”, conta.
Fabíola Aquino
Diferente de Carla e Cristiele, ambas mulheres negras, Aquino é uma mulher branca que apresenta em sua história uma extensa relação com o candomblé. Questionada sobre seu lugar de fala, diante de uma sociedade intolerante e racista, Fabíola responde o que, para ela, devia ser um princípio da sociedade e dos comunicadores como um todo. “Ser antirracista tem que ser o mantra diário de toda a população. Isso não tem que estar motivado pela cor da minha pele, mas pelo sentimento de empatia e justiça social” defende. “Se não tivermos esses valores movendo a nossa vida, a humanidade está fadada ao fim”, completa a Aquino.
Desinformação e intolerância
“A cobertura jornalística nacional sobre as religiões de matriz africana peca em focar apenas nos ataques que ocorrem a casas de culto ao candomblé e umbanda”, é o que diz a jornalista carioca Isabela Reis, podcaster do Angu de Grilo, programa que ela apresenta junto com sua mãe, a jornalista Flávia Oliveira. A cada episódio, mãe e filha consideram diversos assuntos relacionados à atualidade e, muitas vezes, discutem sobre intolerância religiosa. Não à toa, o Angu foi reconhecido pelo prêmio Ubuntu de Cultura Negra 2019, na categoria Melhor Podcast. Isabela afirma que nos últimos anos, com o crescimento de ataques a terreiros, os veículos do Rio de Janeiro têm noticiado mais crimes de intolerância. “Dentro dessas reportagens, eu sinto falta de conteúdo aprofundado e que tenha um viés educativo”, reclama.
Isabela Reis
A jovem comunicadora utiliza as redes sociais para combater a desinformação. Seu primeiro vídeo no IGTV, do Instagram, foi sobre candomblé. “Eu quis gravar o vídeo para desmistificar questões sobre a religião que eu pratico e eu consegui explicar vários conceitos. Recebo mensagens de pessoas que passaram a rever sua própria intolerância a partir do conhecimento sobre a religião, principalmente em seu viés histórico”, conta. “Tem pouca informação sobre o que são esses cultos e as pessoas têm preguiça de procurar. Entender as religiões de matriz africana é absolutamente importante para entender a história do Brasil. Acredito que a desinformação leva a altas doses de intolerância”, analisa.
Dos nove veículos de propriedade de lideranças religiosas listados na pesquisa do MOM, cinco direcionam todo o seu conteúdo para a defesa dos valores de sua religiosidade: as redes de rádio Aleluia, Novo Tempo e RCR e as emissoras de TV da Rede Gospel e da Rede Vida. Mas a grade não é formada exclusivamente por programas definidos formalmente como religiosos, como transmissão de missas, cultos e outras cerimônias. Diversos programas de jornalismo, entretenimento e entrevistas são produzidos a partir de valores que esses grupos definem como cristãos.
Para Isabela, a propriedade cruzada de meios de comunicação é uma dimensão central na discussão. O domínio de muitos grupos religiosos da rede aberta de televisão, segundo ela, acaba influenciando o modo como a sociedade enxerga o candomblé e a umbanda. “Não influenciaria se essas redes de televisão e essas plataformas de comunicação de famílias e de grupos pentecostais ou neopentecostais não usassem as emissoras, jornais, páginas e afins para falar a partir da visão de uma única religião”, afirma a jornalista. Ela lembra que o Grupo Record já foi condenado por diversos casos de intolerância.
Em 2019, a TV Record e a Record News, ambas controladas pelo fundador da igreja Universal, Edir Macedo, foi condenada e obrigada a transmitir quatro programas sobre religiões de matriz africana. A decisão foi tomada 15 anos após realizada uma ação do Ministério Público, do Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira (Itecab) e do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Outro caso em que a Rede Record se mostrou intolerante foi quando a emissora decidiu não veicular a canonização de Irmã Dulce, agora Santa Dulce dos Pobres, a primeira santa brasileira para a Igreja Católica.
A Igreja Universal também foi processada e condenada a pagar o valor de R$ 1,372 milhão de indenização à família da líder religiosa Mãe Gilda de Ogum. De acordo com informações do jornal Correio*, em matéria publicada no dia 21 de janeiro de 2019 pelo jornalista Gil Santos, o processo ficou 10 anos em curso. A igreja recorreu e conseguiu reduzir o valor para R$ 600 mil. Logo após, a Justiça concedeu uma nova redução que acabou em R$ 260 mil, aproximadamente, R$ 36 mil por filho. O “Caso Mãe Gilda” motivou a criação, em 2007, do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado em 21 de janeiro, data na qual a religiosa sofreu um ataque cardíaco fulminante.
Apesar de o Brasil possuir uma data que marca o combate à intolerância religiosa, somente em 2019, as denúncias aumentaram em 56% de acordo com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). A maioria dos casos foi contra religiões de matriz africana. Desde 2011, o Disque 100, número do governo que funciona 24h por dia e recebe denúncias de violações de direitos humanos, passou a contabilizar os casos de intolerância religiosa. No primeiro ano, foram reportados 15 casos. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2018, foram 1.729 casos registrados.