*Alfredo Matta
Na história dos tribunais baianos, poucos nomes ressoam com tanta força e humanidade quanto o de Cosme de Farias. Rábula de origem popular, autodidata e militante incansável da justiça social, Cosme ficou nacionalmente conhecido como “o Defensor dos Pobres” — título que não apenas aceitou, mas honrou por quase meio século nos salões do júri.
Em um tempo em que o acesso à justiça era privilégio de poucos, Cosme ocupou uma trincheira improvável: a tribuna. Lá, sua fala simples e contundente conquistava jurados, juízes e multidões. Não era raro ver as galerias lotadas para assistir aos seus julgamentos — espetáculos de oratória popular em que a emoção e o senso de justiça se impunham com força devastadora.
Homem das ruas, dos subúrbios e dos mercados de Salvador, Cosme nunca teve diploma de Direito. Atuava como rábula, figura permitida pela legislação da época para advogar sem formação acadêmica. Mas o que lhe faltava em titulação, sobrava em talento, coragem e reputação. Chegou a impetrar dezenas de habeas corpus em defesa de presos pobres e perseguidos políticos, inclusive durante o Estado Novo e o regime militar. Seus autos de defesa, muitas vezes manuscritos com grafia irregular, tornaram-se documentos históricos — testemunhos de um tempo em que a justiça encontrava eco na voz dos excluídos.
Ao longo da década de 1940, sua atuação ganhou ainda mais força ao lado de dois nomes igualmente marcantes: Edgard Matta e Dorival Passos. Juntos, formaram o que a imprensa da época e o imaginário popular consagraram como a “Trindade de Ouro do Júri na Bahia”.
O trio protagonizou julgamentos célebres, nos quais a defesa ganhava contornos épicos. Enquanto Edgard Matta trazia sua voz firme, conhecimento jurídico apurado e uma retórica digna dos maiores tribunos, e Dorival Passos atuava com erudição humanista e elegância discursiva, Cosme de Farias tocava diretamente o coração do júri. Era o advogado do povo, da lavadeira, do operário, do desempregado. E era por eles que subia à tribuna, muitas vezes sem cobrar um centavo sequer.
Cosme não se intimidava diante de promotores ou juízes. Sua autoridade vinha da vida real — das feiras, das igrejas, das rodas de capoeira. Seus argumentos não estavam nos livros de doutrina, mas nas experiências de quem sofre a injustiça na pele. Por isso, era ouvido com atenção. Por isso, era amado.
A amizade entre Cosme e Edgard Matta, avô deste autor, remonta a 1914, quando se conheceram em uma solenidade em Salvador, durante as homenagens aos heróis da Batalha de Pirajá. Na ocasião, Cosme declamou uma poesia patriótica, enquanto Edgard, então jovem promissor, carregava a bandeira dos heróis. O encontro se tornaria o início de uma amizade que atravessaria décadas — e várias sessões do júri.
As audiências em que o trio atuava podiam atravessar a madrugada, tamanha a atenção que despertavam. O público disputava as senhas de entrada como se fossem ingressos de teatro. E de certa forma eram: os discursos eram envolventes, dramáticos, e frequentemente encerravam-se com aplausos emocionados.
Cosme era também um orador astuto e um estrategista do riso. Em um dos júris mais lembrados, Edgard Matta, exaltado, autoproclamou-se “um leão na defesa da verdade”. Sem perder o ritmo, Cosme interrompeu: “Sossega, leão!” — arrancando gargalhadas e quebrando o clima tenso do julgamento. Vale lembrar que a expressão fazia parte de um sucesso recente na voz de Carmen Miranda, a música Camisa Listrada. A presença de espírito de Cosme pegou Edgard de surpresa. O próprio Edgard dizia que até ele sorriu, reconhecendo o talento do amigo, naquele momento em lados opostos do júri.
Mas se a verve lhe garantia simpatia, era a firmeza que lhe consolidava a autoridade. Atuando por décadas sem remuneração em inúmeros processos, Cosme personificou a ideia de que a justiça deve ser um bem comum, e não um privilégio dos letrados ou endinheirados. Muitas de suas defesas tinham como pano de fundo o preconceito racial, a miséria urbana ou a truculência policial — temas que ele transformava em denúncia comovente diante do júri.
A atuação jurídica de Cosme não se restringia às salas de audiência. Ele também foi parlamentar por várias legislaturas, sempre eleito com votos das classes populares. Da tribuna da Assembleia Legislativa da Bahia, defendeu causas como a erradicação do analfabetismo, a valorização do trabalho digno e o respeito às liberdades civis. Nunca deixou de mencionar que a justiça verdadeira começa pelo direito de existir com dignidade — com nome, moradia, alimento e instrução.
Em 1967, o reconhecimento oficial veio: o Grande Salão do Júri do Tribunal de Justiça da Bahia recebeu o nome de Cosme de Farias. Na cerimônia, Edgard Matta fez um discurso emocionado, exaltando o amigo e parceiro de tantas lutas. Pouco antes de falecer, em 1972, Cosme enviaria a Edgard um bilhete afetuoso, reafirmando os laços de amizade que uniram os dois gigantes do júri baiano ao longo de toda uma vida dedicada à defesa da justiça.
Cosme também deixou sua marca em Nazaré das Farinhas, terra natal de Edgard. Após a morte do pai deste, o médico e político Eurico Matta, em 1936, Cosme escreveu um artigo sugerindo que fosse construída uma escola em sua homenagem. Anos depois, a ideia se concretizou com a fundação da Escola Municipal Doutor Eurico Matta, no distrito de Onha. É importante lembrar que Cosme foi o criador e maior defensor da Liga Baiana Contra o Analfabetismo. A escola foi criada para alfabetizar — e assim atua até hoje.
O enterro de Cosme, em 1972, parou Salvador. Cerca de 100 mil pessoas — advogados, lavadeiras, jornalistas, prostitutas, intelectuais — acompanharam o cortejo de um homem que, mesmo sem diploma, escreveu seu nome entre os maiores da história jurídica brasileira. Cosme de Farias foi, acima de tudo, um símbolo. Um homem que ensinou que a justiça não é monopólio das leis, mas pode falar a linguagem dos humildes — e vencer. Além disso, como mulato claro — homem negro em uma época de intenso racismo — Cosme foi também um pensador popular e negro, um verdadeiro herói baiano, cuja memória devemos sempre cultuar.
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