José de Jesus Barreto*
Sobrevive no leito de um quarto de apartamento em Recife um mito da esquerda brasileira: Theodomiro Romeiro dos Santos, 70 anos, devastado por seguidos AVCs, já deslembrado de tudo e esquecido por quase todos, sob os cuidados da sua atual e devotada companheira (há 32 anos) Virgínia, o carinho de familiares e amigos próximos.
Há 51 anos, em março de 1971, Teodomiro foi condenado a pena de morte por um tribunal militar, em Salvador, e sua imagem à época, aos 19 anos, comoveu a opinião pública, dentro e fora do país, mexeu nas entranhas do poder e tornou-se uma poderosa bandeira na luta contra a ditadura militar.
Em abril de 1979, dentro de sua cela na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, de onde fugiria quatro meses depois de forma intrigante, Theo concedeu uma longa entrevista, que nunca foi publicada, inédita. Nela, num certo momento, ele diz:
– Depois de preso, o primeiro momento que tive a certeza de que não seria morto foi quando ouvi a sentença de morte.
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Nesses tempos de redes, fakes, patrulhas, identitarismos e cancelamentos, vale lembrar quem foi, o que fez e a relevância histórica que teve esse personagem único, que deu seu recado com exemplos de destemor e sonhos num mundo melhor, mais justo.
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Reavivando a memória
Theodomiro Romeiro dos Santos foi o mais importante e o mais embaraçoso preso político da ditadura militar no Brasil (1964-1984). Por tudo. Desde a sua prisão cinematográfica, aos 18 anos, numa noite primaveril de 1970, às margens do bucólico Dique do Tororó, em Salvador, que resultou na morte do sargento da aeronáutica Walder Xavier, 35 anos, agente do Doi-Codi baiano, baleado. O corpo do militar restou estendido e abandonado no asfalto da rua que margeia o Dique, por mais de duas horas.
Quem atirou foi Theodomiro, quando já estava detido e algemado com o companheiro Paulo Pontes, dentro de um jipe. Por conta disso, foi condenado em 23 de março de 1971 pelo Conselho Especial da Aeronáutica a pena de morte. Primeiro e único com essa punição.
A decisão, inusitada e surpreendente, aliada à imagem de um Theo com rosto de bom garoto, ainda imberbe, no julgamento, comoveu a nação e ganhou repercussão internacional. Seu nome virou signo de resistência contra o governo dos generais.
Vivíamos, no Brasil, os anos mais brutais do regime, então sob a presidência do general Emílio Garrastazu Médici, época do “ame-o ou deixe-o”, um clima de guerra fratricida, urros nos porões e, nas manchetes, ufanismos, a propagação do “milagre brasileiro”.
Theodomiro sofreu torturas indescritíveis ainda na PF e depois no Quartel do Barbalho, em Salvador. Resistiu, sobreviveu numa cela do Corpo 4, a chamada Galeria F, da Penitenciária Lemos de Brito, por quase nove anos. Nesse período, com o denodo de advogados abnegados, o arrefecimento lento e gradual do regime e a pressão dos que lutavam por respeito aos direitos humanos e liberdades democráticas, dentro e fora do país, sua pena de morte foi transformada em prisão perpétua e depois reduzida a trinta anos de reclusão. Além da acusação de assassinato do sargento, Theodomiro respondia a mais dois processos: um por assalto a um banco, no bairro da Liberdade, em Salvador, quando ele tinha apenas 17 anos, e outro por tentativa de reorganização de partido clandestino, o PCBR.
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Para amarrar o quanto Theo foi importante e incômodo para o regime militar, na quase primavera de 1979, prestes a ser agraciado com uma possível liberdade condicional, ou ser anistiado dentro das leis então vigentes, mas ciente de que era um homem marcado para morrer, ele fugiu, numa ação bem tramada, planejada, que deixou aturdidas, desmoralizadas mesmo as forças da repressão, os quartéis e as autoridades políticas do país. Vivíamos, então, já os estertores do regime, sob a presidência do general João Baptista Figueiredo, ele próprio um quadro do SNI – o Serviço Nacional de Informações, que vasculhava tudo e todos -, naqueles tensos e assustadores anos de atentados ousados e violentos cometidos por radicais de direita em várias capitais do país. Tempos também, diga-se, de uma prometida abertura, ou distensão ‘lenta e gradual’, preconizada desde os tempos de Geisel, o sisudo general ‘Alemão’, sucessor de Médici. O poderoso e autoritário Antônio Carlos Magalhães governava a Bahia. Todos comeram mosca na fuga do mais precioso prisioneiro do regime.
Theodomiro passou uns anos exilado em Paris, até que a redemocratização fosse consolidada, já na segunda metade dos anos 80 do século XX. Voltou, tornou-se Juiz do Trabalho, em Pernambuco. Nesses últimos anos, pena solitário e esquecido, em Olinda.
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No começo de abril de 1979 fomos conhecer de perto um Theo envelhecido, aos 27 anos, com um filho de cinco anos e um outro encomendado, na barriga da mulher com quem se casou na prisão, onde leu muito, estudou línguas, fez artesanatos, e, cativante, criou laços com companheiros de cela e de luta, presos comuns e agentes penitenciários.
Sabedor da necessidade de ter de escapar para não morrer, um Theo magro e maduro, com voz e gestos pausados, recebeu o então repórter José de Jesus Barreto em sua cela limpa, bem arrumada, sentado numa rede, fumando cigarros Arizona, às vezes roendo unhas, e falou de um tudo por quase quatro horas seguidas, relembrando, relatando, dando nome aos bois, refletindo sobre o Brasil, o futuro e até fazendo autocríticas.
Foi a primeira entrevista dele nesse formato, desde que fora preso. Um ping-pong inédito, até aqui (histórico), como segue:
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- A entrevista
Abrindo o peito
– De repente, de condenado à morte você pode tornar-se um homem livre, com a anistia ou comutação de penas. Que tipo de emoção está sentindo?
Theo – As expectativas de morte e da liberdade criam tensão, ambas. Mas são tensões diferentes, não dá pra explicar. Eu tenho feito uma força muito grande para não me iludir. Como prática ou mecanismo de defesa, estou me preparando para o pior, para ficar. Tenho ocupado todo o meu tempo fazendo almofadas, artesanatos de couro, arrumando um laboratório fotográfico. Tudo como se fosse ficar ainda por muito tempo por aqui. Isso tem me ajudado a diminuir a tensão.
– Nalgum momento você acreditou que seria mesmo morto ou tinha sempre esperanças?
Theo – Depois de preso, o primeiro momento que tive a certeza de que não seria morto foi quando ouvi a sentença de morte.
– Como assim?
Theo – Logo que soube que o sargento tinha morrido temi pela minha vida. Até acho que foi a divulgação e repercussão de minha prisão que me salvou. Minha condenação à morte, eu senti, iria assumir uma dimensão muito grande; o que, de fato, aconteceu.
Aliás, eu acho que a minha condenação à morte foi uma tolice muito grande do governo. Veio provocar a primeira grande campanha e mobilização contra o regime depois de 1968, do AI-5, e repercutiu negativamente até no plano internacional.
– Além da repercussão, a condenação não o transformou também numa espécie de mito, símbolo?
Theo – Eu senti isso também. E foi um peso muito grande. Eu, na verdade, não tinha estrutura política ou emocional para suportar a ampliação que meu nome e minha imagem alcançaram. Tive que me mobilizar muito, estudar muito, refletir muito para criar condições de responder a essas novas experiências.
– E isso tudo você conseguiu na prisão?
Theo – Quando eu fui preso, na verdade, eu não tinha uma base política muito grande. Tinha lido no máximo uns dez livros sobre o marxismo. O meu ativismo era mais fruto do entusiasmo. Eu via como uma luta contra as injustiças e a violência. Foi aqui na cadeia que comecei a rever coisas, estudar, discutir, aprofundar minha formação política.
– Então você começou sua atividade política bem cedo; como foi?
Theo – Fiz meus primeiros contatos com a esquerda aos 14 anos. Estudava no Colégio Maristas de Natal e, além de estudar, fazíamos trabalhos assistenciais nos bairros pobres da cidade. Chegamos a montar uma escolinha numa fábrica, a Guararapes, de tecidos. Aí conheci as primeiras pessoas do partido, o Partidão.
– E sua família, tinha alguém envolvido em atividades políticas?
Theo – Nada. Venho de uma família extremamente católica, cheia de freiras, militares e padres (risos). Uma família relativamente pobre. Meu pai, Modesto Ferreira dos Santos, chegou a capitão do Exército. Combateu e foi preso na revolução de 1932, em São Paulo. Morreu aos 52 anos, em 1960. Meus familiares gostam muito de mim, sempre me deram todo apoio, mas nunca concordaram com as minhas posições e atividades políticas.
– E como você veio parar na Bahia?
Theo – Bem, eu saí de Natal com 17 anos. Já estava vinculado ao partido e tinha alguns probleminhas com minha atividade no movimento estudantil. Estive em São José dos Campos, Brasília e depois Salvador.
– Você já era conhecido, já estava sendo procurado nessa época?
Theo – Não tinham nada contra mim. Mas eu vivia clandestinamente em Salvador, até porque morava com gente do PCBR, inclusive o Paulo Pontes, que estava sendo acompanhado pelos órgãos de repressão.
(Paulo Pontes foi preso com Theo e condenado, no mesmo processo, inicialmente a prisão perpétua. Beneficiado, então, pela nova Lei de Segurança Nacional, obteve a soltura, antes da fuga de Theo)
– Agora nos conte como se deu a sua prisão …
Theo – Estávamos eu, o Paulo Pontes e o Getúlio Cabral, já era noite, num ponto de ônibus junto ao posto de gasolina São Jorge, próximo ao Dique do Tororó, onde tínhamos marcado um ponto, encontro. Eu e Paulo estávamos de costas para a rua, discutíamos os últimos detalhes de nossa retirada da cidade, obedecendo orientação do partido. Sabíamos que estávamos sendo seguidos e devíamos sair da cidade. Neste instante, foi-se aproximando lentamente de nós um jipe e o Cabral falou “cuidado com esse jipe aí!”. Tentei olhar mas nem deu tempo. Fomos, eu e Paulo, agarrados por trás, algemados e jogados dentro do jipe, no banco traseiro. Mas o Getúlio escapou, atirando, e correu em direção ao Dique, com um agente no seu encalço, ambos atirando. O Jipe fez uma manobra brusca e seguiu atrás do Getúlio.
(Getúlio Cabral conseguiu escapar nessa ocasião, mas foi morto pela repressão um ano depois, no Rio de Janeiro)
– Sim, e como você entrou nesse tiroteio?
Theo – Veja, no banco da frente do jipe estavam o motorista, à minha frente, um agente da Polícia Federal e, do lado direito, junto à porta, o sargento Walder. Quando me apanharam, eu tinha uma pasta de plástico que eles tomaram ao me algemar mas, inadvertidamente, sem olhar o que nela continha, me devolveram, jogaram no meu colo logo que o jipe pôs-se em movimento na perseguição a Getúlio. A pasta ficou ao alcance da minha mão esquerda – a direita estava algemada ao pulso esquerdo de Paulo Pontes -, e dentro dela estava um revólver. Quando o jipe parou, mais adiante, o sargento Walder ameaçou descer, de arma em punho, para ajudar na perseguição de Getúlio, que tentava alcançar a margem oposta do Dique por uma ponte, um pontilhão estreito de madeira. Aí, com a mão esquerda, atirei contra o sargento e tentei ainda alvejar o agente e o motorista, mas fui dominado…
– Você tinha apenas 18 anos, o que se passou pela cabeça naquele momento?
Theo – Foi tudo muito, muito rápido, mas se passa muita coisa pela cabeça em segundos. Vem primeiro a consciência de que você caiu, foi apanhado de surpresa pelo inimigo e que a desgraça tá feita. De pronto você procura reagir à prisão, tanto como instinto mesmo de sobrevivência como também pelo dever de cumprir as determinações do partido. O clima, na época, era o pior possível, a gente sabia do que acontecia quando alguém era preso… das torturas, das mortes. Depois da morte de Mário Alves, o partido tinha determinado que todo militante com certo nível de responsabilidade deveria andar armado e resistir à prisão. A ordem era essa, era um clima de guerra, de medo. E houve um tiroteio …
– Você teve consciência de ter matado o sargento?
Theo – Eu sabia que o tiro o atingira, mas não sabia que ele tinha morrido. Só soube depois, por testemunhas do processo, e que somente o socorreram duas horas depois de ter levado o tiro, e que ainda o encontraram vivo, agonizante.
– Então deixaram o corpo do sargento largado no meio da rua …
Theo – Pra eles, naquele momento, a preocupação maior era conosco, eu e o Pontes. O motorista, mesmo ferido, conseguiu levar o jipe até a Polícia Federal (a sede da PF ficava na Cidade Baixa, entre o Elevador Lacerda e o porto, a cerca de 5/7 km do local), enquanto o agente federal me espancava com socos e coronhadas. O soldado do Exército que tinha saído em perseguição ao Getúlio foi para no quartel general, às carreiras. Ninguém, pois, se lembrou mais do Walder, que ficara gravemente ferido.
(o corpo estendido na rua que beira o Dique foi fotografado e as pessoas que passavam e viam imaginavam que se tratava de mais uma vítima de briga de rua, da violência urbana)
– Como foi a recepção na Polícia Federal?
Theo – O coronel Luis Artur estava à nossa espera com mais de 20 homens. Eu tinha dois cortes profundos na cabeça, fruto das coronhadas, e sangrava abundantemente. O Luis Artur mandou que um enfermeiro jogasse éter na minha cabeça. Pensei que ia ficar louco. A partir daí, ainda algemados, eu e Paulo, apanhamos toda a noite. Tive medo de morrer. Desmaiei e só acordei no dia seguinte, à noite.
(O coronel Luis Artur de Carvalho era, então, o delegado regional da PF. Depois, foi secretário de Segurança Pública, no governo Roberto Santos, segunda metade dos anos setenta)
– Foram interrogados ainda na Polícia Federal?
Theo – No outro dia me puseram no pau-de-arara e começaram o interrogatório. Nas primeiras 48 horas não disse nem o meu nome. Aí começaram as sessões de choque, comandadas pelo major Bião de Cerqueira e pelo próprio Luis Artur. Só então lavraram o flagrante. Quando estava depondo, o Luis Artur me perguntou se eu era a favor da violência; respondi que sim e ele retrucou: “Pois você vai ver o que é violência!”. Em seguida me pediu pra fazer uma defesa política da violência, da luta armada, e eu fiz um discurso. Consta no meu depoimento.
– As torturas terminaram ali?
Theo – Apenas tinham começado. Fomos levados para o Quartel do Barbalho, que era a central de torturas da época. Lá, foram 12 dias seguidos de torturas bárbaras comandadas pelo capitão Hemetério Chaves, os três turnos. A barra era tão pesada que eu até gostava quando me punham no pau-de-arara, de cabeça pra baixo, porque eu fazia ioga, sempre fui bem magro, e até relaxava um pouco entre uma sessão e outra de choques e outras barbaridades.
– Você conseguiu manter algum tipo de diálogo, algum relacionamento humano com seus algozes?
Theo – Não. Não posso dizer que todo torturador seja intrinsicamente mau. Nada de maniqueísmos. Mas também não podemos desculpar os crimes que cometeram. Acho que eles devem sim ser responsabilizados por esses crimes. São, na maioria, indivíduos com uma série de deformações psíquicas e que constituem uma ameaça a qualquer coletividade em que vivam. Mas não posso esquecer ou omitir gestos de solidariedade de vários soldados e até sargentos que nos guardavam. Eles nos traziam, às vezes, comidas às escondidas; deixavam o rádio ligado pra gente ouvir e tentavam conversar, tinham dó do nosso estado.
– O julgamento de seu processo ocorreu velozmente. Previam o desfecho?
Theo – Em 26 de janeiro de 1971 fomos transferidos para a Penitenciária Lemos de Brito, no bairro de Mara Escura. Ali começamos a ser informados e, de logo, dava para perceber que o julgamento seria um jogo de cartas marcadas. Eu sabia que seria condenado à morte.
– Por que a certeza?
Theo – Não tivemos defesa. Nas sessões, os militares dormiam. E a situação política da época não deixava dúvidas. Só para ilustrar, a sessão secreta, para o veredicto, durou apenas 40 minutos. Resultado: eu fui condenado a morte e o Paulo Pontes a prisão perpétua.
– Você não esteve presente no dia do julgamento…
Theo – Eu estava muito doente. Eu sempre tive problemas hepáticos que se agravaram com a comida literalmente podre da penitenciária. Quando a escolta chegou, o médico perguntou se me levariam para o hospital. Disseram, “não, ele vai pra auditoria”. O julgamento durou das nove da manhã até 11 da noite. O advogado de ofício, ao ver o meu estado, pediu que me dispensassem.
– Depois, a cadeia. Que visão se tem da prisão oito depois, dentro dela?
Theo – Gramsci, numa de suas cartas, faz imagem bela mas real do que representa a cadeia: “É uma ampulheta gigante”, diz ele. Toda hora cai um grãozinho de areia, que é um nada, você quase não percebe, mas de repente você pode estar sendo esmagado, enterrado por esses milhares de grãozinhos. Cada dia novo, cada rotina diária vai te desgastando, minando sua resistência em todos os níveis, eliminando a tua vitalidade. Você vai se distanciando, sem se aperceber, de tudo, da realidade, da vida, dos amigos, da atividade. Sua prática política se modifica totalmente. A cadeia tem uma capacidade grande de induzir à degeneração, a desagregação de pessoas. Muita gente pensa em estudar na cadeia, mas dispersão é grande e a teoria pura, isolada, tende a ficar dissociada da realidade. Fica acadêmica.
– A sua imagem de equilíbrio é comentada por todos os companheiros da prisão. É difícil, de fora, entender como um garoto como você conseguiu amadurecer dentro de uma cadeia, sem um grande amargor, com uma certa tranquilidade…
Theo – Aqui se aprende a viver realmente em comunidade, a repartir, dividir as coisas. Essa imagem de equilíbrio não pode ser separada da vida em comum, da influência dos companheiros. Claro que há o desgaste também da vida coletiva, da diferença de personalidades. Mas tudo isso se reduz diante de uma prática política que nos obriga a nos unir e lutar para ter uma alimentação melhor, para usar uma roupa digna, para ter um banho de sol, para ir a um médico, receber visitas. Essas coisas menores tomam uma dimensão vital aqui dentro. O contato com os chamados “marginais”, os presos comuns, são também, enriquecedores…
– E a vida afetiva?
Theo – É muito difícil. Dentro, há a amizade com os companheiros. Mas a relação com pessoas de fora é complicada. As preocupações são diversas. A base material do relacionamento é diferente. Aqui, por exemplo, a gente não se preocupa com a sobrevivência. E isso é um dado que conta profundamente no relacionamento entre as pessoas.
– Nove anos de prisão, mais velho, emoções violentas experimentadas, você acha que valeu a pena o envolvimento e sacrifício de toda uma geração na luta armada?
Theo – Numa avaliação, uma autocrítica da luta armada de há dez anos, temos de destacar duas coisas fundamentais. A primeira e mais séria autocrítica é de que foi uma ação puramente de vanguarda, sem a participação do povo. Para mim, do ponto de vista pessoal, valeu a pena, foi uma experiência rica. De um ponto de vista mais global, entretanto, foi uma experiência negativa. A luta armada, no Brasil, provocou o aniquilamento da esquerda revolucionária, o retraimento da luta de massas e, o mais grave, favoreceu o fortalecimento dos setores mais retrógrados do sistema.
– Algum aspecto positivo?
Theo – Foi, sem dúvida, o primeiro grande questionamento ao reformismo, em primeiro lugar. Entendo também que a atuação da esquerda revolucionária foi que permitiu, criou espaço político para toda essa movimentação política de agora. Provocou um desgaste muito grande no sistema, na ditadura, abrindo brechas para os movimentos de massa.
– Como você tem visto, acompanhado esses movimentos de massa?
Theo – Entendo que eles têm um importante papel na luta principal do povo brasileiro, hoje. E a luta maior, agora, é pelas liberdades democráticas, o que implica na extinção da ditadura em todos os níveis. A luta pelas liberdades democráticas tem basicamente duas frentes:
– Uma, a anistia geral, ampla, irrestrita e não recíproca; a segunda, uma constituinte livremente eleita, onde participem todas as tendências políticas do país.
– Essas tendências implicariam na formação de novos partidos?
Theo – Sou contra a formação de novos partidos agora. O MDB é uma frente de oposições que deve ser fortalecida até que se conquiste o objetivo da redemocratização total.
– E a redemocratização, através da abertura lenta e gradual preconizada pelo governo?
Theo – Ela veio no bojo de um processo irreversível; em função das dificuldades econômicas do sistema, da falência do modelo exportador e, sobretudo, da rearticulação dos movimentos de massa, da reorganização das classes fundamentais, dos movimentos liberais, de entidades. Tudo isso tem sido importante como forma de pressão.
– E o que há de novo nisso tudo?
Theo – Muita coisa. A realidade é realmente outra. Veja, por exemplo, a influência marcante da Igreja Católica no movimento operário. Veja o surgimento de lideranças que não são comprometidas com nenhum projeto tradicional de esquerda, nem acoplado ao sistema. Essas coisas são lições históricas para todos. Afinal, é nas lutas concretas que a classe operária trava que ela conquista uma consciência mais elevada.
– E o papel dos intelectuais?
Theo – A minha posição é a de Kautski. Ele diz, “a consciência política revolucionária não surge espontaneamente entre as classes fundamentais”. Os intelectuais devem se integrar à classe operária e, através de uma prática conjunta, elevar, influir no nível de suas atividades. Atualmente, no Brasil, os intelectuais têm um papel fundamental na luta pelas liberdades democráticas.
– Recebendo amanhã a notícia de sua soltura… o que você fará?
Theo – A única coisa que eu tenho em mente é tomar um banho de sol e mar. Eu nem tenho documentos, agora é que estou providenciando.
– Voltaria a estudar? De que forma pensa em se engajar politicamente?
Theo – Sinceramente… não pensei nisso, não quero pensar. Somente depois de uma situação concreta. Estou tirando meus documentos pensando em fazer o vestibular de medicina na Universidade Católica, agora no meio do ano, se estiver ainda preso. Se sair, tenho de rever tudo, pensar tudo de novo.
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A fuga do condenado
Na manhã de uma sexta-feira, dia 17 de agosto de 1979, o presidiário Theodomiro Romeiro dos Santos, aquele que fora (e estava) condenado à morte, saiu caminhando pelos portões da frente da Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, para não mais voltar. Tranquilo, sem problemas. Bem comportado, na manha, Theo tinha criado uma relação de amizade e confiança com alguns carcereiros. Às vezes saía, dava umas voltas pela redondeza e retornava.
Nesse dia, passou pelo portão, foi num mato fora dos muros onde tinha escondido um espelho e um barbeador, fez a barba, mudou de feições e pegou um táxi.
Em 5 de junho, antes pois, talvez já como uma estratégia, tinha conseguido uma autorização para fazer tratamento dentário, dois dias por semana, numa clínica odontológica localizada no centro da capital, a uns 10 km da penitenciária. Escalaram, para acompanhá-lo nessas saídas, um agente penitenciário conhecido como “Seu Bahia”, gente boa. Theo “ganhou” seu acompanhante no papo, na confiança: o guarda ficava liberado para descansar, ir pra casa, ver a família, resolver alguma pendenga pessoal e Theo ia para a dentista, uma amiga, e às vezes passava num hotel do Pelourinho onde estava hospedada a mulher, Maria Conceição Gontijo de Lacerda, com quem casou-se na prisão e teve dois filhos. Depois, na hora e local combinados, os dois, prisioneiro e guarda, se encontravam e voltavam juntos para a penitenciária. Tudo de boa, nenhuma suspeita.
Mas, naquele dia agosto, Theo não voltou e nem deram fé. Só dois dias depois o governador ACM ficou sabendo, através de um repórter, que lhe mostrou no palácio a carta pública de despedida de Theo, com autorização escrita e divulgada – dois dias passados da fuga, como fora acertado – pelo seu (ex) companheiro de cela Haroldo Lima, depois deputado eleito pela Bahia.
O governador ficou enfurecido por ter sido ludibriado, logo ele que se gabava de tudo saber, e cobrou responsabilidades, exigiu providências, ordenando uma caça ao fugitivo em cada canto do território baiano. Mas é fato que o próprio ACM já pressentia a possibilidade dessa fuga, até tinha confessado a jornalistas sua preocupação com a sobrevivência do prisioneiro Theodomiro, jurado de morte pelos amigos do tenente assassinado Walder Xavier. Com a saída dos outros presos políticos da Galeria F, por cumprimento de pena ou anistiados, Theo restaria só e à mercê dos vingadores.
Isso era um assunto corrente, naqueles dias, até o Cardeal Avelar Brandão Vilela já deixara escapar sua preocupação com a vida do moço. Padre Renzo, um italiano que cuidava da Pastoral dos Presídios e que se tornara amigo de Theo, deixava o cardeal a par de tudo. E o governador ACM não desejava que uma desgraça de vingança criminosa daquela acontecesse no seu governo, pois a repercussão seria enorme, extrapolaria fronteiras e de algum modo respingaria nele, prejudicaria seus projetos políticos pessoais.
– Isso prova o quanto os comunistas estão organizados -, disse um injuriado ACM aos jornalistas, ainda sem saber o paradeiro do fugitivo que escapara nas suas fuças.
A trama da fuga foi bem urdida, planejada com antecedência e esmero. E, na sequência, muito bem costurada por narrativas e disfarces plantados pelo(s) partido(s) envolvidos na ação, pelos militantes, por amigos e todos aqueles que, conscientemente ou não, ajudaram no despiste das “forças da repressão”.
A Veja, revista de maior circulação e credibilidade do país à época, soltou em sua edição de 29 de agosto:
“Num plano articulado por membros do PCBR na Bahia, no Rio de Janeiro e no exterior, Theodomiro teria saído do país no vôo 704 da Varig que decolou do aeroporto de Salvador aos 20 minutos de sábado, dia 18, com destino a Paris e escala em Lisboa. Teria se utilizado de passaporte francês, falso – ele e o militante comunista que provavelmente trouxe seu passaporte do exterior devem ser os donos dos dois nomes falsos já detectados pela Polícia Federal na lista de 74 passageiros que embarcaram em Salvador no voo 704. Além disso, uma recepcionista da Varig garantiu ter visto embarcar naquele dia um rapaz extremamente parecido com Theodomiro. A versão definitiva, porém, só poderá ser dada pelo próprio fugitivo”.
Ao mesmo tempo, baratinando mais as buscas e as cabeças dos ‘poderosos de plantão’, o tradicional Estadão de São Paulo garantia que Theodomiro estava ou teria passado pela capital paulista. Depois, soube-se que nada disso era verdade.
Os dois dias obscuros após a fuga, sem que ninguém soubesse o ocorrido, foram fundamentais para Theo conseguir escapar são e salvo rumo a Brasília, de carro, disfarçado e ao lado de um motorista de extrema confiança do partido, passando por Vitória da Conquista. Na noite do dia da fuga, Theo teria dormido, acoitado, na Igrejinha dos Alagados, depois de ter se encontrado com um ‘ponto’ amigo nas proximidades do cemitério do Campo Santo. Outra narrativa?
O fato é que … já com todos os olhos do mundo arregalados de espanto, Theo apareceu são e salvo na Nunciatura Apostólica de Brasília, Distrito Federal, onde foi acolhido pelas assustadas autoridades da Igreja Católica Apostólica e Romana. Lá plantou-se um forte esquema de proteção ao fugitivo e aconteceram tensas tratativas diplomáticas para que o fugitivo fosse exilado sem riscos num país europeu, de preferência.
O surpreendente, inesperado aparecimento de Theodomiro na Nunciatura (território diplomático livre do Vaticano, da Igreja Romana) mobilizou o noticiário, lideranças, poderes – políticos, militares, jurídicos, diplomáticos – e a alta cúpula da Igreja. Afinal, em junho de 1980 viria ao Brasil, para uma visita apoteótica de 12 dias, o Papa João Paulo II, no auge de sua popularidade. Carismático, o papa João Paulo II, que hoje é santo canonizado, arrastou multidões por onde passou:
– Brasília, Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Aparecida, Porto Alegre, Vitória, Curitiba, Manaus, Recife, Belém, Teresina, Fortaleza e Salvador, onde se encontrou com Irmã Dulce e foi conhecer, ver de perto o que era Alagados (a Igrejinha está lá, até hoje).
A visita do Papa tinha muito peso, o governo Figueiredo sabia, os olhos do mundo focados no Brasil. Assim, nesse clima e circunstâncias, tudo negociado e costurado, a França tornou-se o asilo, o destino de Theo, em total segurança exilado em Paris.
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O retorno ansiado
De Paris, em 1985, por telefone, Theodomiro falou sobre seu desejo de voltar ao Brasil ao repórter David Souza, do alternativo Jornal da Pituba, de Salvador. Vivíamos então a efervescência e expectativas das mudanças, o começo do processo de redemocratização do país, já no governo Sarney.
Trechos da reportagem, sob o título “O Último Exilado”:
– São duas horas da manhã, em Paris. Theodomiro acaba de chegar em casa, depois da batalha na fábrica, onde é fresador, numa indústria de armamentos bélicos. Confessa: “As esquerdas levaram o processo político – referindo-se à época em que foi preso – muito além da capacidade de avanço do povo”.
– Volto no dia 4 de setembro, diz. “Não volto antes porque esse é o primeiro voo Paris-Salvador, depois da prescrição da minha pena. Volto sem medo de ameaças, eu me preocupava era quando estava preso. Estou disposto a garantir uma vida normal. Aceito empregos”.
– Nova República? Ele diz que ainda não crê em suas intenções. Defende a legalização dos partidos de esquerda, mas aconselha o PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário a não fazer o mesmo, “porque não temos bases sólidas”.
– É a favor da Constituinte (que aconteceria em 1988): “deve-se aproveitar todos os espaços políticos conseguidos… mas sem outras concessões”.
– Quais seriam? Ele responde: “Os crimes de tortura são internacionalmente imprescritíveis e o governa da Nova República tem a obrigação de punir os torturadores e prestar contas dos desaparecidos”.
(Texto originalmente publicado no site Bahia Já, no dia 23 de março de 2022)
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*José de Jesus Barreto, jornalista e escritor baiano.
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).