Saúde, engenharia, química, tecnologia. Cientistas e inventores negros foram silenciados por uma narrativa que sempre retratou o continente africano como lugar de sofrimento, de miséria, impondo a seus descendentes a invisibilidade nos diversos campos do saber. Aos poucos, intelectuais pretos emergem e buscam descortinar a história preta.
Para fortalecer o diálogo antirracista e o empoderamento negro, a Associação Bahiana de Imprensa promoveu em sua sede o especial “Vozes da Negritude”. O ciclo de palestras recebeu, nos dias 22 e 23, jornalistas, professores, estudantes, funcionários e diretores da ABI, em uma potente celebração do mês da Consciência Negra.
O evento foi organizado pelas equipes da Biblioteca de Comunicação Jorge Calmon e do Museu de Imprensa, espaços culturais da ABI, como forma de popularizar o debate sobre diversidade e representatividade preta. A iniciativa reforça o compromisso cultural, social e político da Associação como uma ferramenta de divulgação e promoção do debate público.
VOZES
No primeiro dia, a mesa “Vivências e Empoderamento Negro” abordou os desafios da juventude negra nos âmbitos social, educacional, profissional e político no Brasil.
A atividade contou com Carlos Sacramento, professor de História, participante do curso de História da Arte Africana e Afro-Brasileira pelo Centro de Memória da Bahia; Carlos Victor Pereira, mestrando em História da Arte e professor de Artes Visuais; a publicitária e jornalista Regina Moura, gestora de Produção Executiva e Comunicação do Projeto Axé; e Amanda Soares, ativista social, uma das idealizadoras do grupo “Roda de Samba de Mulheres de Itapuã.
Os palestrantes estabeleceram importantes trocas com os jovens do Projeto Axé, ao contarem um pouco da sua trajetória, entre conselhos e orientações.
O professor Carlos Sacramento relatou ter sido vítima de abordagens violentas por parte da polícia, quando era adolescente. Ele enfatizou que, para jovens negros, estar na rua já era um ato de perigo e pouca coisa mudou. Sacramento também externou o seu incômodo com a cobertura midiática acerca de indivíduos negros. “A gente precisa de uma imprensa libertadora”, defendeu Carlos Sacramento.
Para Amanda Soares, a imprensa precisa se perguntar que tipo de jornalismo ela está fazendo, quando aborda o povo preto. “Ela tem que contar a nossa história, porque precisamos nos ver de outra forma na televisão. Quando falamos de vozes negras, em novembro ou em qualquer mês, devemos falar de nossas conquistas. Sentamos muito para falar de nossas dores. Estar nessa casa agora falando é uma conquista para mim”, ressaltou.
Aos 12 anos, Amanda Soares atravessou uma fase difícil. Mas teve a vida transformada depois de assistir a uma peça no Espaço Xisto Bahia, a convite de uma professora. “Ela transformou a minha vida com um passeio de escola”, lembra.
Ela também veio do ensino público, foi aluna de projetos sociais. “Eu ia pela manhã para a escola e ficava para a aula de teatro, computação e tudo o que fosse ofertado. Eu sou filha desses projetos”. Hoje, trabalha com música. “Tive que romper muitas barreiras. O ‘não’ é a minha motivação. Diziam ‘mulher não rege bateria de escola de samba’, eu virei regente. ‘Mulher não dirige grupo’, eu me tornei diretora”, ela ri.
A jornalista e publicitária Regina Moura fez um resgate da história do Projeto Axé, desde a sua criação, em 1990, pelo italiano Cesare La Rocca, passando por suas principais realizações. De acordo com a jornalista, a instituição incentiva os educandos a acreditarem nos seus sonhos. “Desejem realizar sonhos. É isso que significa resistir e persistir”.
“Persistência” poderia ser o sobrenome do professor de Artes Visuais do Projeto Axé. “Por mais que preguem que a universidade não é o nosso lugar, através da educação eu consegui estar aqui. Através dela, podemos ver que essa narrativa que nos foi imposta não é verdadeira. Precisamos criar novas narrativas e quebrar o sistema”, afirmou Carlos Victor.
Estudante do Axé há cerca de cinco anos, Gerson Mário, de 16 anos, ouvia atentamente as histórias inspiradoras dos convidados. Em certo momento, ele confessou que às vezes é tomado pelo medo de não realizar o seu maior sonho, que é ser um grande artista. “Para mim, esse sonho é grande demais. Algumas vezes, eu duvido. Vêm aqueles pensamentos ‘será que eu vou alcançar?’. Aí, eu fico com medo de não dar certo”, disse o jovem.
Carlos Victor aproveitou para encorajar Gerson. “Na sua idade, eu também tinha esse sonho. E todos os dias quando acordo, eu ainda penso ‘será que vou conseguir?’. Mesmo hoje, já tendo livros publicados. O lugar onde estou ainda não é o que eu quero. É difícil. Nós precisamos fazer o triplo do esforço. Estudar, trabalhar, sustentar a família, muitas vezes. Existem outras perspectivas, como a busca por potências que estão dentro da gente”, comentou o designer.
“Tudo que a gente admira quando está desse lado [o de aluno] a gente é. Para todos os nossos sonhos existem caminhos. É difícil, mas a gente também é potência. Somos o legado dos nossos ancestrais. A gente pode tudo. A força, a inteligência estão com a gente. Nossa memória é ferramenta potente”, incentivou Amanda Soares. “Não tem fórmula para pular e dar no grande sonho. É uma conquista a ser construída e nenhuma construção é fácil. Você vai colocar sua energia, animação, profissionalismo e um dia ele chega”, conclui a professora.
Luã Figueredo, de 17 anos, quer dar prosseguimento aos estudos. Para ele, já é uma conquista o fato de estarem estudando, buscando uma vida melhor.
Assistente da Biblioteca da ABI e graduanda em História pela Universidade Federal da Bahia, Débora Muniz foi uma das idealizadoras do evento. “A palestra teve um papel muito importante para entender o quanto fomos silenciados. O Vozes da Negritude cumpriu esse papel de ajudar a romper esse silenciamento, ao não falar só das mazelas, mas das conquistas”. Bastante emocionada, ela narrou as dificuldades que enfrentou na busca por cursar uma universidade pública.
“Eu cheguei a ter preconceito com a Lei de Cotas, não queria entrar por ela, achava que aquilo me diminuía. Só depois que vim tomar consciência do seu potencial de reparação histórica. Existe todo um sistema que trabalha para te fazer achar que a universidade não é o seu lugar”, disse a mediadora.
Ao final da mesa, foi exibido o vídeo “Cota não é esmola”, da cantora Bia Ferreira.
No último dia, a mesa “Por uma educação antirracista” discutiu a importância da formação docente e o papel da educação antirracista no último país a abolir a escravidão. O debate trouxe à ABI a professora Edinelia Maria Oliveira Souza, Dra. em História Social e professora de História da UNEB; e Kleber Amâncio, professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e docente do Mestrado Profissional em História da África da Diáspora e dos Povos Indígenas na mesma instituição.
De acordo com a professora Edinelia Souza, a sociedade passa longe de reconhecer que o racismo é um problema estrutural. “A questão do racismo não é um problema do negro, é um problema do branco. Então, é necessário praticar uma educação antirracista, não apenas abordar. Desde o ensino infantil, trazendo as personalidades negras e desconstruindo a imagem dos heróis brancos como inventores da história”, defendeu. “Nossos intelectuais negros ficaram silenciados. Foi para a mulher negra, por exemplo, que a educação chegou mais tarde”. Edinélia falou da importância das políticas afirmativas para oportunizar essa parcela excluída.
O professor Kleber Amâncio falou dos prejuízos causados pela noção eurocêntrica no ensino. “A questão é estrutural. Aquilo que é branco é considerado normal e aquilo que não é branco é considerado exceção”, constatou. “Se você colocar essa exceção em um dia do ano, uma vez no currículo, se torna insustentável, não é suficiente para enfrentar o problema de uma forma radical”, disse.
Ele lembrou que, embora o Brasil não tenha uma lei com o Apartheid, por exemplo, a contravenção prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941 – conhecida como “lei da vadiagem” serviu para perseguir pessoas negras, no período de Estado Novo liderado por Getúlio Vargas. Em suas pesquisas, Amâncio notou que 100% das pessoas autuadas com base nessa lei, que tem raízes no Código Criminal do Império, eram negras.
“Precisamos decolonizar os currículos. Educar a população negra é a única forma de ascender. Os intelectuais negros estão nas universidades fazendo o resgate da nossa história. Isso se deve também às cotas. A Lei de Cotas foi o primeiro motivo para o povo negro se afirmar como tal, se reconhecer”, destacou Amâncio.
O debate foi mediado por Pablo Sousa, pesquisador e graduando em História, que atua também como estagiário do Museu de Imprensa e da Fundação Pedro Calmon. Para ele, as falas dos palestrantes possibilitam enxergar um futuro melhor. “Historicamente estamos centrados em uma educação branca, europeia. Trazer professores negros analisando essa temática faz com que seja possível quebrar essa antiga estrutura e valorizar as pessoas negras que vêm construindo a história deste país. Precisamos, sim, de representatividade”.
O evento foi encerrado uma apresentação do Grupo de Teatro da Polícia Militar da Bahia. No espetáculo “África, um conto cantado”, encenado na ABI, o grupo contou com os sargentos Luis Anselmo, Zuleica Gonçalves, PedroTeles, Jeã Paulo, Milena Celina, o Cabo PM Lima Santos e o Sd. PM J. Machado.
“É a polícia militar acreditando em uma nova tecnologia de segurança pública, que é a arte. Porque nós entendemos que ela tem esse poder de chegar onde, muitas vezes, qualquer outra coisa não chega. Onde nos convidarem, onde nos chamarem, nós iremos”, garantiu o autor da peça “África, um conto cantado”, o Cabo PM Lima Santos.
Durante o espetáculo, os artistas cantaram as grandezas de grandes reinos do continente africano, como a história do imperador Mansa Musa, destacado como a pessoa mais rica que o mundo conheceu. O rei esteve à frente do Império de Mali (na região noroeste), no início do século 14, e presenteava em ouro. Para lembrar os feitos de Musa, o grupo distribuiu saquinhos de glitter dourado, simbolizando o estoque de barras de ouro daquele reino. E cada um trazia uma tirinha de papel com uma invenção científica de autoria negra, a exemplo dos travões de automóvel, criados em 1872 por John V. Smith.
“Entendemos que distribuir o nosso ouro é distribuir o conhecimento. Precisamos conhecer a nossa história de potência. A gente abre a geladeira de manhã, bebe uma água e não sabe que quem criou foi o nosso povo. A gente passa pelo semáforo e não sabe que quem criou foi gente nossa. E saibamos de uma vez por todas: a história da África não começa na escravidão. A história da África foi interrompida pela escravidão”, sinaliza o professor.
Para a Sgt. PM Zuleica Gonçalves, a peça é uma aula de história que pode ser apresentada o ano todo. Com o apoio da Secretária de Educação, o grupo se prepara para rodar as escolas da rede pública de ensino, levando os espetáculos.
Segundo ela, o Grupo de Teatro, criado em 1998, segue firme no seu objetivo de ser um elo entre a corporação e a comunidade baiana. Além do espetáculo apresentado na ABI, o grupo encena diversas peças, como “As aventuras de Pedrinho”, “Labirinto”, sobre as consequências do uso e do tráfico de drogas, ou “Pedrinho e a luz da vida”, que aborda a violência sexual contra crianças e adolescentes. “A Polícia Militar da Bahia entende o teatro como ferramenta importante para estreitar os laços com a comunidade. Tenho muito orgulho de integrar esse grupo e poder levar conscientização pela arte”.
Assim como a museóloga da ABI, Renata Santos, a bibliotecária da instituição, Valésia Vitória, estava emocionada durante a peça. “Foi a primeira vez que eu vi um teatro transmitir a realidade dessa maneira, foi muito real. As escolas públicas pouco recebem as informações que eles trouxeram de forma artística. Tem muita coisa que foi guardada, foi escondida de nós”, afirmou.
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