*Liliana Peixinho
Estatísticas, fatos, registros sobre desrespeito, violência, exploração, negação de direitos à mulher são diários, constantes e históricos. Lamentável, pois a alma feminina – símbolo de cuidado, amor, coragem – alimenta a vida produtiva, mesmo com dados invisíveis sobre o valor do trabalho.
Firme, forte, sem desistir do seu papel agregador, sensível, atenta a detalhes, a mulher segue na luta, em atuação permanente em todas as áreas da vida: no ambiente acadêmico, na ciência, na política, no esporte, nas artes, na pesquisa avançada, no intercâmbio entre países, nas residências, na agricultura, no artesanato, na moda, na culinária, nos cuidados e afetos.
Seja no céu, no mar, na terra, a mulher, historicamente, mostra sua coragem e força em compromisso coletivo para o bem viver.
São diversas as lutas históricas em desafios constantes.
Mães sem renda, com renca de filhos; pais desempregados, sem moradias decentes, amontoados uns sobre outros; exploração no trabalho, violências diversas, Brasil e mundo afora, nos chamam a atenção, diariamente.
Que futuro pode ter a humanidade em cenários tão perversos? Mães que, pressionadas, cansadas e sem alternativas, saem ao nascer do sol de suas moradias, madrugadas insones, em via-crúcis de baldeação de transportes coletivos, para chegar até outro bairro, em residência alheia, para cuidar dos filhos de outras mães, em troca de um salário mínimo e cuja remuneração tem se mostrado insuficiente para a mínima dignidade familiar, como acesso a água e alimentação de qualidade.
Para jornalistas independentes, sem pautas previamente produzidas, em liberdade e desafio de ir a campo investigativo para observar, retratar e compartilhar histórias, é preciso atitude de compromisso e risco. Pesquisas recentes revelam o quanto as mulheres jornalistas, planeta afora, precisam continuar lutando por respeito, por direitos, por reconhecimento de fato do trabalho.
São diversas as labutas diárias, entre os seus múltiplos papéis – afazeres fora e dentro de casa, com foco no cuidado.
Nas imersões jornalísticas que faço, Brasil afora, Sertão Adentro, compartilho de rotinas com mulheres que não dormem, apenas cochilam, em dias curtos e noites longas.
“A mulher não precisa mais dar provas de sua capacidade para encarar desafios”
A mídia, movimentos sociais, coletivos diversos, reforçam o proativismo feminino em seus múltiplos papéis. O reconhecimento desse perfil da mulher, apesar de propagado, não tem correspondência com os esforços históricos de lutas, nas diversas frentes. A mulher não precisa mais dar provas de sua capacidade para encarar desafios. A proporção entre o tempo de corrida para fortalecer e elevar esse perfil, e a garantia de estruturas sociais dignas do esforço, são injustas, não suprem as reais necessidades cotidianas. Na realidade são abusivas, exploradoras, injustas.
Depois de tanta luta, cansaço, entrega, a mulher quer tempo e espaço para si mesma.
O protagonismo feminino precisa ser traduzido em direitos, que continuam sendo negados. A desvalorização da mão de obra, do tempo, suor, entrega ao trabalho, em todas suas múltiplas jornadas, tem elevado os níveis de dores ao insuportável.
O que ainda se vê é a submissão de mulheres, que se veem acuadas diante de provedores materiais. É uma escravidão, em agenda pesada, que até tenta amenizar, distribuir atividades para arranjar tempo e tentar se dar prioridade, colocar-se no topo, por um tempo, antes de qualquer outra atividade.
No entanto, antes dela, existem outros: a família, o patrão, os colegas de trabalho, a mãe, o pai, o neto, o sobrinho, a amiga, num ritmo de atenção e cuidados sem fim.
A 25ª hora é acionada, com frequência, em dias onde 24 horas não têm sido suficientes para tanta sobrecarga de atividades.
Ouço e leio por aí que a mulher moderna é aquela que se permite ser um pouco relapsa. Relapsa? Que luxo poderia ser! Mas não pode, ou ela não se permite. Precisa estar bela, e até escrava de alguns comportamentos, para atender padrões estéticos externos. O consolo é ver movimentos libertários dos padrões do culto à escravidão de padrões, por meio da valorização do todo, onde a estética é apenas um detalhe dentre muitos outros aspectos importantes no cuidado integral à vida.
Nas imersões jornalísticas que faço, por conta própria, observo por que mulheres não se permitem ser relapsas. Como se permitir, fazer de conta que não vê, sente, ouve, o que está a necessitar de cuidar, fazer, diante de filhos e filhos à sua frente?
Como deixar de lado famílias inteiras, numerosas, para educar, dar de comer, vestir, cuidar, promover a saúde, em ambientes de muita carência?
Como ser “relapsa” com determinadas demandas para pensar em si, vendo o companheiro desempregado, a despensa vazia, os filhos puxando a barra da saia, chorando de dor, de fome?
“A divisão do trabalho, não depende de gênero, mas de consciência coletiva responsável”
Com dribles no tempo, a mulher – com a sua típica resistência – alimenta forças invisíveis para se levantar e seguir nos desafios cotidianos. O que vejo são mulheres mãe solo, ou ao lado de maridos, filhos e parentes, lutando pela vida, aparentemente incansáveis. Vejo mulheres que são mães, avós, filhas, netas, sobrinhas, esposas, em filas gigantes, em via-crúcis diárias para garantir direitos; vejo mulheres com pesos sobre a cabeça, andando quilômetros, suadas e cansadas; vejo mulheres com bacias cheias de roupas para lavar, esfregar, estender, pegar do varal, dobrar, guardar organizar; vejo mulheres sempre carregadas de peso nos ombros, nos quadris; vejo mulheres driblando a vida para amortecer dores.
Mulheres, jovens e idosas, sob o sol a pino à procura de feijão, farinha, frutas.
Mulheres das roças, das cidades, das metrópoles. Mulheres que criam, transformam, improvisam, inventam, tentam, conseguem e resistem às dores de perdas. Mulheres que tentam sair de perversos ciclos de negação de direitos.
E, nesse cenário, a realidade de trabalho da mulher nordestina, brasileira, africana, asiática e mundo afora, está a nos indignar em tanta desumanidade.
Depois de tanto correr, lutar, desafiar, se entregar inteira, na criação e cuidados com filhos, sobrinhos, netos, vizinhos, a guerreira, a que não para, ainda não se permite dizer não.
Muitas sonham alto, com os pés no chão. Aquelas que conseguiram ter acesso à informação de qualidade, que galgaram espaços de decisão em empresas, em instituições, na ciência, na política, no esporte, na cultura, não o fazem com exclusividade. Estão, como outras, a desempenhar múltiplas funções, em sobrecargas de trabalho que estressam, adoecem, pela constante abnegação do seu tempo, a outrem.
Mulheres que carregam o peso de encontrar tempo para promover o cuidado com a família e a carreira; em entrega ao acompanhamento da educação e afetos, mulheres que tentam esticar o tempo para a fundamental formação de valores que a família requer.
Nesse cenário, quando observamos o comportamento de homens comprometidos, parceiros, lado a lado, enfrentando os desafios, chegando junto nas atividades domésticas, no trabalho externo, nas ruas, com os filhos, com os pais idosos e doentes, esse é um tempo de alimentarmos a prática de que a divisão do trabalho não depende de gênero, competência, tradição, mas sim de compromisso e consciência coletiva responsável.
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