Por Inaldo da Paixão Santos Araújo*
A velha Casa de Ruy Barbosa repousa discreta no coração do Centro Histórico de Salvador, entre ladeiras que já ouviram tambores, oratórias inflamadas e passos de visitantes de todo o mundo. Ali, no casarão da Rua Ruy Barbosa, número 12, o menino Ruy passou parte da infância, absorvendo os ecos de uma cidade que respirava política, cultura e resistência. O tempo, como sempre, seguiu sua marcha, e a casa, em vez de se converter em ruína anônima, foi preservada pela vontade dos homens de imprensa. Em 1935, a Associação Bahiana de Imprensa recebeu o imóvel e, anos depois, fez dele um museu, aberto no centenário de nascimento do Águia de Haia, em 1949.
O espaço tinha uma missão clara: guardar a memória de um dos maiores pensadores brasileiros, jurista, jornalista, orador e político que marcou a vida nacional. Por muito tempo, foi esse lugar de reverência, visita escolar, pesquisa acadêmica, parada obrigatória de turistas. Mas os museus também envelhecem. Sem cuidados constantes, sem recursos adequados, a casa começou a padecer. O convênio firmado em 1998 com a Faculdade Ruy Barbosa prolongou-lhe o fôlego, mas os anos seguintes mostraram que a parceria não deu conta do desafio. Houve infiltrações, furtos de peças, disputas judiciais e, por fim, a interrupção das atividades.
Em 2022, a Justiça reintegrou o imóvel à ABI, devolvendo à entidade jornalística a guarda do patrimônio. Mas o que se encontrou ali não foi mais o museu vibrante do passado, e sim um prédio fechado, ferido pelo descuido. A pergunta que se impõe é inevitável: como devolver vida à Casa de Ruy Barbosa? Como reabrir suas portas ao público, transformando-a em um centro de memória e, ao mesmo tempo, em um espaço de diálogo contemporâneo?
A resposta pode estar no próprio tempo presente. O governo da Bahia, recentemente, firmou um contrato de concessão do Palácio da Aclamação, localizado no Campo Grande, para que o Banco do Brasil transforme a antiga residência oficial dos governadores — inaugurada em 1917 e tombada pelo IPAC em 2006 — em um centro cultural moderno. Um exemplo de parceria que, se bem conduzida, pode equilibrar a conservação do patrimônio histórico com o dinamismo da iniciativa privada. O mesmo caminho pode ser trilhado para a Casa de Ruy Barbosa.

A ABI já anunciou o projeto de requalificação que rebatiza o espaço como Casa da Palavra Ruy Barbosa. Não é apenas uma mudança de nome, mas uma mudança de propósito: do museu estático ao centro vivo de cultura. A palavra, afinal, foi a principal arma de Ruy, seja nos discursos inflamados, seja nos artigos de jornal que ecoaram contra a escravatura e em defesa da República. A palavra também é o que move a imprensa, que funda democracias e as sustenta. Tornar a casa um lugar da palavra é devolver-lhe sua essência.
Mas, para materializar esse sonho, são necessários recursos, expertise técnica, curadoria sofisticada e gestão eficiente. Nada disso pode ser garantido apenas com o esforço isolado de uma entidade civil, por mais aguerrida que seja. Aí se abre o espaço para um modelo de parceria: com um banco público, uma sociedade de economia mista, uma fundação cultural ou até mesmo um consórcio empresarial disposto a investir em cultura como contrapartida social.
O paralelo com o Palácio da Aclamação é didático. Se um prédio histórico do Estado pode ser entregue à guarda de uma instituição financeira para renascer como espaço cultural, por que não pode a Casa de Ruy, patrimônio simbólico da Bahia, firmar sua sobrevivência por meio de uma parceria sólida? Não se trata de mercantilizar a memória, mas de garantir que ela não se perca em paredes úmidas e telhados carcomidos. O que o vento leva, já dizia Mãe Stella de Oxóssi, não volta mais. E obras de tal grandeza não podem se perder.
A reabertura da Casa como um centro cultural vivo teria ainda outro efeito simbólico: ajudar a reocupar o Centro Histórico com atividades que devolvam dignidade e movimento àquele espaço. Imagine-se um casarão onde jovens poetas possam declamar seus versos em saraus, onde jornalistas possam debater os rumos da democracia, onde estudantes descubram Ruy não como uma estátua em bronze, mas como um homem que ousou pensar o Brasil em sua inteireza.
A Bahia tem um compromisso moral com seus símbolos. Se o Pelourinho foi restaurado e devolvido ao mundo como um patrimônio da humanidade, se o Palácio da Aclamação terá nova vida pelas mãos de um banco, não é admissível que a casa do maior intelectual baiano continue fechada. Ruy Barbosa pertence à nação, mas sobretudo pertence à Bahia. E sua casa precisa voltar a ser, como no passado, um ponto de encontro entre a memória e o futuro.
O tempo já mostrou que, quando há descuido, ele corrói e aniquila. Mas também nos ensina que obras geniais podem ser salvas, se houver vontade e compromisso. A Casa da Palavra Ruy Barbosa é mais do que um projeto arquitetônico; é uma oportunidade de afirmar que a palavra, na Bahia, não se perde — renasce.

*Inaldo da Paixão Santos Araújo é Mestre em Contabilidade, Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, Professor da Universidade do Estado da Bahia, Vice-presidente de auditoria do Instituto Rui Barbosa, Escritor.
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