O Supremo Tribunal Federal (STF) votou por unanimidade a favor da publicação de biografias não autorizadas no Brasil, nesta quarta-feira (10), com base na liberdade de expressão. A decisão libera biografias não autorizadas pela pessoa retratada ou por seus familiares publicadas em livros ou veiculadas em filmes, novelas e séries. Uma longa sessão realizada no Plenário da Casa teve o voto favorável de todos os ministros que estavam presentes: Carmen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, Celso de Melo e Ricardo Lewandowski. O ministro Teori Zavascki, em viagem oficial à Turquia, não participou da sessão. Durante o julgamento, todos os ministros defenderam a liberdade de expressão e o direito à informação, mas afirmaram que, em caso de violação ao direito à intimidade, a pessoa biografada poderá buscar indenização do biógrafo por danos morais junto ao Judiciário. Os ministros analisaram a ação de Inconstitucionalidade movida em 2012 pela Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), que questionava os artigos 20 e 21 do Código Civil, que permitia a herdeiros ou biografados o pedido da retirada de circulação de livros no país sem suas autorizações.
Para a ministra relatora Cármen Lúcia, a decisão dá interpretação a favor dos direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada, relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais. A ministra destacou ainda que a Constituição prevê, nos casos de violação da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem, a reparação indenizatória, e proíbe “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Assim, uma regra infraconstitucional (o Código Civil) não pode abolir o direito de expressão e criação de obras literárias. “Não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história que se consegue cumprir a Constituição. A norma infraconstitucional não pode amesquinhar preceitos constitucionais, impondo restrições ao exercício de liberdades”, afirmou.
Seguindo o voto da relatora, o ministro Luís Roberto Barroso destacou que o caso envolve uma tensão entre a liberdade de expressão e o direito à informação, de um lado, e os direitos da personalidade (privacidade, imagem e honra), do outro – e, no caso, o Código Civil ponderou essa tensão em desfavor da liberdade de expressão, que tem posição preferencial dentro do sistema constitucional. Ele disse ainda esperar que o resultado do julgamento “passe a mensagem correta para juízes e tribunais do País que ainda têm uma postura de excessiva interferência de liberdade de expressão”, disse. Barroso voltou a repetir que o País “tem um histórico de cerceamento de liberdade de expressão”, citando os períodos do Estado Novo e da Ditadura Militar. “A Constituição de 1988 procurou ser uma reação a essa história acidentada, porém, o Código Civil tal como vinha sendo interpretado, permitia que por via do poder judiciário se violasse a liberdade de expressão”.
Para o ministro Gilmar Mendes, fazer com que a publicação de biografia dependa de prévia autorização traz sério dano para a liberdade de comunicação. Ele destacou também a necessidade de se assentar, caso o biografado entenda que seus direitos foram violados, a reparação poderá ser efetivada de outras formas além da indenização, tais como a publicação de ressalva ou nova edição com correção. O ministro Marco Aurélio disse que há, nas gerações atuais, interesse na preservação da memória do país. “E biografia, em última análise, quer dizer memória”, assinalou. “Biografia, independentemente de autorização, é memória do país. É algo que direciona a busca de dias melhores nessa sofrida República”, afirmou. Por fim, o ministro salientou que, havendo conflito entre o interesse individual e o coletivo, deve-se dar primazia ao segundo.
Ministro mais antigo da Corte, Celso de Mello afirmou que a garantia fundamental da liberdade de expressão é um direito contramajoritário, ou seja, o fato de uma ideia ser considerada errada por particulares ou pelas autoridades públicas não é argumento bastante para que sua veiculação seja condicionada à prévia autorização. O ministro assinalou que a Constituição Federal veda qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística. Mas ressaltou que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, grupo social ou confessional não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. “Não devemos retroceder nesse processo de conquista das liberdades democráticas. O peso da censura, ninguém o suporta”, afirmou o ministro.
Após o julgamento, o representante da Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), Roberto Feith, que apresentou a ação em 2012, disse ver a decisão com muita alegria. “É a conclusão de três anos de luta dos editores. Acho que não só os editores, mas todos os brasileiros, com essa decisão, reconquistaram o direito à plena liberdade de expressão e o direito ao livre acesso ao conhecimento sobre nossa história”, afirmou ao G1. Advogado da Anel, Gustavo Binenbojm disse que houve uma “vitória retumbante” da liberdade de expressão no país. “O que tem que ser celebrado é esse passo largo dado no caminho da plena liberdade de expressão. E é uma vitória não só dos editores, não só dos autores, é uma vitória de todos aqueles que amam a literatura, a cultura e acreditam que as palavras e as ideias podem mudar o mundo”.
Esta decisão pode ter impacto em casos como da biografia de Roberto Carlos, que foi suspensa. O escritor Paulo César de Araújo, autor de uma biografia não autorizada sobre Roberto Carlos, recolhida das livrarias, também comemorou a decisão. “Eliminou talvez o último entulho autoritário da nossa legislação. Não tinha cabimento viver no Estado democrático de direito com censura prévia e livros apreendidos”, afirmou ao G1. Já o advogado do cantor, Carlos de Almeida Castro, o Kakay, acredita que o caso não pode ser alterado pelo fato de já ter transitado em julgado.
*Luana Velloso/ABI com informações do Jornal O Estado da S. Paulo, G1 e do site do STF.