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A censura não é ação restrita às ditaduras

No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o jornalista Luis Guilherme Pontes Tavares reflete sobre a censura e a imprensa baiana

Luis Guilherme Pontes Tavares*

Inicio com esta sentença: a censura à Imprensa não é prerrogativa de ditadura. Ouso compartilhar minha suspeita de que a Imprensa brasileira, de modo especial a Imprensa baiana, está sob asfixia econômica e grave comprometimento de sua natureza. Os jornais impressos minguaram. As revistas baianas rarearam. Há redações vazias; as equipes de repórteres, redatores e editores trabalham no regime de home office. Muito do que acontece não é estampado nas páginas dos jornais ou nos outros meios.

Sob o argumento de que o digital ajuda a preservar o meio ambiente, reduziu-se as tiragens e optou-se pela edição online. Em contrapartida, muitos de nós recebe com entusiasmo o veículo elétrico e, sem nenhum cuidado com as consequências para o meio ambiente,  multiplicamos as baterias de lítios e afins e construímos lixo eterno.

Recordo que em pleno Governo Octávio Mangabeira, no período de 1947 a 1951, ao qual a História registrou como democrático, houve episódios graves de agressão à imprensa. Vou relatar o que aconteceu com os jornalistas Luis Henrique Dias Tavares (1926-2020) e Henrique Lima Santos (1925-2018), ambos repórteres de O Momento, periódico de esquerda. Foram detidos e agredidos.

Conheço esta história porque sou filho de Luis Henrique, que viria a ser Professor Emérito da UFBA e autor do clássico História da Bahia (12.ed. Salvador: EDUFBA; São Paulo: EDUNESP, 2019). Os dois foram destacados para cobrir o comício de líder comunista que aconteceria na Praça da Sé. Eles foram presos e conduzidos para a sede da Secretaria de Segurança, na Praça da Piedade, os dois deitados no assoalho do veículo e pisoteados pelos policiais. Desembarcaram e foram apupados quando conduzidos à cela tendo que atravessar “corredor polonês” sob tapas e pontapés.

No dia seguinte, o jornalista Luis Henrique foi destacado para lavar os sanitários. Se negou. As consequências da reação do jovem que faria vestibular nos dias seguintes só não foram mais graves porque o seu primo Nestor Duarte, então secretário da Agricultura, disse ao governador que deixaria o cargo caso Luis Henrique não fosse solto naquele dia. O advogado, político e escritor foi atendido e o libertado, dias depois, e sob o amparo e incentivo de duas colegas próximas, Celeste Amaral e Sulamita Tabacof, fez as provas e foi admitido no curso de Geografia e História da Universidade da Bahia.

Saliento, mais uma vez, que o adjetivo democrático distingue o governo de Octávio Mangabeira (1886-1960).

A Bahia tem Imprensa desde 1811, quando, em 13 de maio, estreou a publicação, pela Typographia Silva Serva, do periódico Idade d’Ouro do Brazil. O produto era submetido aos censores oficiais e eclesiásticos e assim prosseguiu até o início da década de 1820. Logo após, por causa das lutas pela consolidação da Independência do Brasil na Bahia, surgiram outros periódicos e a luta em favor da Liberdade prosseguiu e experimentou altos e baixos até os dias atuais. A bibliografia a respeito não é vasta, mas há, entre os poucos, a coletânea Apontamentos para a história da Imprensa na Bahia, organizada por mim e publicada, em 2005, sob os auspício do convênio da Academia de Letras da Bahia (ALB) com a Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. A segunda edição, revista e ampliada, saiu em 2008, contando com o patrocínio da Empresa Gráfica da Bahia (EGBA). À época, tais edições foram identificadas também como atividades de extensão da Estácio-FIB, onde ensinei por cerca de 10 anos.

Quanto à Imprensa no período da ditadura civil-militar de 1964 a 1985 registre-se o quão aguerrida ela foi. Parte dos donos de jornais, a princípio, endossou o golpe, mas os passos seguintes foram de resistência. A leitura, por exemplo, do livro Jornalistas e revolucionários. Nos tempos do jornalismo alternativo (São Paulo: EDUSP, 1991), do professor doutor Bernardo Kucisnki, um dos destaques do corpo didático da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), é fundamental.

Livro organizado por Gustavo Falcón sobre jornalismo alternativo na Bahia | Reprodução

De igual modo e afim com o citado, sugiro a leitura do livro Os baianos que rugem. A imprensa alternativa na Bahia (Salvador: EDUFBA, 1996), do jornalista, sociólogo, professor e escritor Gustavo Falcón, sempre lembrado como um dos destaques da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA). Nesse trabalho, ele, com alguns alunos, registrou episódios relativos aos alternativos publicados na Bahia.

Por motivos diversos, inclusive a autocensura, são raras as coleções dos jornais alternativas nas bibliotecas baianas, o que deveria animar jovens pesquisadores a buscar corrigir, enquanto ainda há tempo, essas situação. Recordo apenas da edição fac-similar de Verbo Encantado, publicada pela Solisluna em 2014. O alternativo circulou entre 1971 e 1972, sob o comando dos jornalistas e diretores teatrais Armindo Bião e Álvaro Guimarães. Aguço a curiosidade de vocês, lhes informando que o site da Estante Virtual, que reúne sebos do país inteiro, está comercializando essa publicação por R$ 680,00.

Enfim, foram muitos os alternativos brasileiros, dentre os quais OpiniãoMovimentoBondinhoEx-, do qual tratarei mais adiante, e O Pasquim. Rendo minhas homenagens a esse título histórico do jornalismo, numa homenagem ao extraordinário brasileiro Ziraldo, que faleceu em 06 de abril passado. A dose de graça que os jornalistas e ilustradores injetavam nas páginas desse periódico de circulação nacional nos adverte que o bom humor é arma para enfrentar as adversidades e ousar apontar novos caminhos. O semanário, publicado entre 1969 e 1991, era editado no Rio de Janeiro e contou com a participação de Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar, Tasso de Castro, Sérgio Cabral, Paulo Francis e muitos outros.

Acrescento, ademais, a sugestão da leitura do livro A censura política na Imprensa brasileira 1968-1978 (São Paulo: Global, 1980), do jornalista Paolo Marconi, ex-conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) da Bahia.

Luis Guilherme e Nelson Cerqueira, autor de “Regime militar e além” | Foto: Madalice Moura

Caminho para o encerramento, lembrando da minha estreia como foca (aprendiz de jornalista), no inicio da década de 1970, portanto em plena fase dos Anos de Chumbo da ditadura de 1964 a 1985, se deu na Tribuna da Bahia. Que bom que tenha sido assim! A Tribuna, que trato como TB, era, na época, periódico de oposição ao regime. Fundado em 1969, logo após o Ato Institucional nº 5, o jornal admitiu nos seus quadros ex-presos políticos e jornalistas, homens e mulheres, identificados com a esquerda. Estive na redação entre 1972 e 1973, período suficiente para experimentar a liberdade e a opressão.

A experiência com a liberdade ocorreu, sobretudo, com a passagem do jornalista carioca Hamilton Almeida Filho (1946-1993), admitido na TB para apoiar à redação com pesquisas afins com a cobertura jornalística diária. De repente, HAF, apelido com o qual o tratávamos, alterou a rotina do jornal e marcou sua passagem ao requalificar a edição de final de semana e propor e editar o caderno especial que festejou o anunciado final da guerra do Vietnã. Estive, pois, ao lado daquele que editou, em São Paulo, o alternativo Ex-, título emblemático de periódico que nascia sabendo que estaria fadado a desaparecer sob o tacão da censura.

Quanto à opressão, com a qual convivia sob a proteção dos meus mais próximos, apesar de sentir o calor do hálito venenoso devido às ameaças de prisão que recaíam sobre meu pai, então carimbado de comunista, ela me atingiu de modo perverso por causa. Vou contar o que me lembro.

Após a eleição de novembro de 1972, um anônimo remeteu carta à redação da TB denunciando fraude na disputa. A falta de identidade do autor da denúncia seria suficiente para descartá-la. Todavia a gravidade do conteúdo me moveu a apresentar o problema ao redator-chefe. Ele leu, refletiu e autorizou a publicação na coluna que me cabia editar todos os dias: a “Senhor redator, dois pontos”.

Passados alguns dias, o jornal foi intimado a explicar a publicação e a Polícia Federal ouviria a todos que tiveram contato com a carta, inclusive este que vos fala. A presidência do Tribunal Regional Eleitoral na Bahia era ocupada pelo desembargador Antonio Carlos Souto (1912-2011), pai do geólogo Paulo Souto, que, anos depois, viria a ser governador da Bahia. Não tive a quem apelar, até porque meu pai não estava em Salvador naquele dia, e assim, muito assustado, segui, com dificuldade até a sede da Política Federal, que, então, ocupava galpões próximos ao terminal da Companhia Bahiana de Navegação, na zona do Comércio.

O jornal não destacou advogado ou chefe para me acompanhar. Fui sozinho. Na sede da PF, fui conduzido, por um agente, a uma sala. Aguardei um tantão e, nesse intervalo, um preposto da Polícia Rodoviária Federal entrou na sala e, falando alto como quem desejava ser ouvido na sala vizinha, relatou que eliminara mais um na véspera. Suponho que cumpria a prática de tortura emocional, mas não tenho certeza de que foi assim. Passado algum tempo, o agente, em companhia de escrivão, me interrogou e, ao fim, me liberou.

Jamais tive acesso aos autos, até porque isso não me interessou.

Sei, muitos anos depois, que a censura deixa marcas.

Tampouco nutro entusiasmo com a convivência passiva, em nome do respeito à liberdade alheia, com as fake news e as estrepolias da AI (Inteligência Artificial).

Sigamos com a disposição de vencê-la, sempre.

* Pronunciamento na roda de conversa que antecedeu o lançamento do livro Regime militar e além. Retrato e identidade de um jornalista (João Pessoa, PB: Porta, 2024), do jornalista e professor Nelson Cerqueira, eventos afins ocorridos, no dia 18abr2024, na sala de congregação da Faculdade de Direito da UFBA.

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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
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