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Big Techs, AI e o refluxo de rolinho primavera

Wall Street e a baleIA: como uma startup chinesa mostrou que as empresas de tecnologia estão desconectadas de suas raízes.

Gabriela de Paula*

Se você esteve no Planeta Terra na última semana, certamente está a par do tsunami que a chinesa Deep Seek causou no oceano azul das grandes corporações que lutam pelo domínio das inteligências artificiais de texto. Para além dos memes… 

Imagem: Reprodução / Sensacionalista

…e das especulações sobre a veracidade dos números divulgados pela chinesa da baleia azul ou do futuro dos LLM, convido você a olhar o passado recente.

A profanação da bíblia

Todo founder de startups tem em sua cabeceira “Lean Startup”. Lançado por Eric Ries em 2011, é uma das principais referências globais para empreendedores que buscam inovação ágil e contínua. Ser o agente da disrupção, aquele que quebra o status quo. O jet ski que dá nó no transatlântico.

Pelo menos cinco das Magnificent Seven (Apple, Microsoft, Amazon, Google/Alphabet e Meta) começaram em garagens, com a mentalidade de experimentação, inovação contínua e aprendizado rápido – mesmo que tenham sido fundadas antes da publicação que deu nome a esse método. As outras duas (Nvidia e Tesla) tiveram origens um pouco mais estruturadas, mas também longe de pompa e circunstância.

No princípio, seus mandamentos deram a tônica da cultura de inovação que fez o Vale do Silício ser conhecido como endereço global da inovação. Com a escassez, eles criavam os ensinamentos posteriormente imortalizados na obra de Ries – e seguidos como canônicos pelos futuros startupeiros. E eu quero hoje focar em dois deles.

  • MVP – Produto Mínimo Viável: uma versão simplificada do produto para coletar dados e validar ideias antes de expandir.
  • BML – Build-Mesure-Learn: ciclo contínuo de desenvolvimento e ajuste de produtos com base no feedback real dos usuários.

A proposta de ser “enxuta” vai ao encontro da escassez de recursos que empresas em estágios iniciais, com pouco ou às vezes quase nenhum investimento. Era preciso validar se as propostas delas seriam bem aceitas gastando o mínimo de recursos, seja tempo, seja dinheiro. Era o Davi derrotando Golias e uma comunidade unida vibrando a cada gigante que caía.

Corta pra algumas décadas depois

As startups enxutas ganham agora o status de big techs e são as empresas mais poderosas do mundo. O monitor da Reuters dedicado ao desempenho das sete empresas monumentais mostra que o valor de mercado delas somado chega perto de US$ 17 trilhões. Ultrapassam o Produto Interno Bruto de todos os países do mundo, exceto Estados Unidos e China.

Com o fim das vacas magras, a criatividade cedeu espaço para resultados impressionantes. a escassez que obrigada a usar da forma mais otimizada possível os parcos recursos foi trocada por debates que envolvem cogitar a construção de usinas nucleares para alimentarem data centers com gastos energéticos que equivalem a cidades de médio porte. Outros tempos. 

Quando ferramentas de inteligência artificial, sobretudo as generativas de texto como ChatGPT, Gemini, Claude, Copilot e Llama, ganharam a atenção das pessoas comuns, houve uma corrida de investimentos no setor. Afinal, onde está a atenção, está o dinheiro. Havia também a necessidade de uma infraestrutura específica, chips e processadores que dessem conta dessa grande demanda computacional sem precedentes. Foi aqui que a NVidia brilhou.

Quando o dragão vira penetra no baile das águias

Em julho de 2024, o criador do Facebook já tinha demonstrado que o derramamento de dinheiro pudesse ser excessivo. “Existe uma chance significativa de que muitas empresas estejam investindo em excesso agora e, no futuro, vamos olhar para trás e pensar: ‘Talvez todas tenhamos gastado alguns bilhões de dólares a mais do que o necessário’, afirmou o Mark Zuckerberg. 

A prática não seguiu o discurso. Em 21 de janeiro de 2025, SoftBank, OpenAI, Oracle, e MGX anunciaram investimentos de US$ 500 bilhões no projeto Stargate – sendo US$ 100 bi já de cara. O foco é garantir o protagonismo dos Estados Unidos no universo das IAs. No dia 24, na mesma linha, a Meta de Zuck prometeu colocar outros US$ 65 bilhões em IA. Tudo isso num cenário em que a China segue proibida de comprar chips de primeira linha dos Estados Unidos para seus projetos de IA, o que reforçava a percepção de não haver concorrentes no páreo.

O que os gigantes não conseguiam enxergar de cima de suas montanhas trilionárias era que as lições da inovação enxuta podem ter sido bem estudadas do outro lado do mundo. Poucos dias antes dos anúncios bilionários, em 10 de janeiro, sem ruídos, sem a cobertura dos grandes veículos do Ocidente, sem grandes números, uma desconhecida empresa chinesa lançava humildemente sua plataforma de texto. O Deep Seek chegou sem convite ao banquete dos chatbots e tomou um lugar à mesa. 

Tenho certeza de que o rolinho primavera está entalado na garganta do CEO da Microsoft Satya Nadella e de Mark Zuckerberg. Jensen Huang, então, diante da desvalorização de US$ 600 bilhões nas ações da Nvidia em um único dia, não vai tão cedo degustar uma receita agridoce. Mas para além dessa sádica torcida que fica nas arquibancadas vibrando para que o desafiante tire o cinturão das mãos do atual campeão, existem lições que parecem ter sido esquecidas depois de tanto tempo vivendo de forma nababesca.

Troco da padaria

O nome do momento, Liang Wenfeng, fundador da Deep Seek, afirma que investiu apenas US$ 5.6 milhões para treinar a sua ferramenta e que teria usado equipamentos de qualidade muito inferior para chegar a resultados semelhantes aos das norte-americanas. Foi este ponto que abalou investidores, preocupados justamente com aquele sinal amarelo que Zuckerberg havia acendido há seis meses.

Para se ter uma ideia da proporção: em abril, Sam Altman, bilionário cofundador da OpenAI, empresa dona do ChatGPT, foi visto dirigindo um carro do modelo Regera fabricado pela marca sueca Koenigsegg. Só existem 80 unidades dele no mundo.O vídeo feito pelo especialista em carros Joseph Velyan, em Napa, na Califórnia, mostra o executivo em um esportivo híbrido raro e exclusivo avaliado em US$4.5 milhões. Era só colocar uns acessórios e ele chegaria ao valor que a chinesa afirma ter investido para bater IA mais famosa do mundo.

Há muitas perguntas no ar: Deep Seek usou o ChatGPT para treinar seu modelo? A empresa usou equipamentos contrabandeados para montar seu data center? Os valores divulgados são subestimados? Mesmo que a resposta seja sim para todas elas, o estrago foi feito. E muito provavelmente com um orçamento muito mais modesto.

Cisne Vermelho

Autor de “A Lógica do Cisne Negro”, outro livro sagrado do empreendedorismo disruptivo, Nassim Nicholas Taleb aposta que este movimento é só o começo. Em entrevista à Bloomberg, afirmou que é um “ajuste das pessoas à realidade” e que os investidores buscavam a Nvidia avaliando que seriam necessários cada vez mais microprocessadores que, por sua vez, precisariam ser cada vez mais potentes para rodar inteligências artificiais. 

O escritor do best seller que demonstra o impacto extremo de eventos raros e imprevisíveis acredita que a chinesa tenha mostrado ao mercado uma abordagem de menor custo – uma ameaça aos modelos que têm capital aberto em Wall Street. Taleb é conhecido por ter um viés mais pessimista, mas sua opinião tem peso nos centros de decisão.

Se há quem afirme que Deep Seek veio furar a bolha das IAs, não podemos cair na ingenuidade de acreditar que a história acaba aqui. No hall da fama das empresas de tecnologia, a maioria das trajetórias não é linear. Vamos lembrar que a própria mentalidade de startup admite que o erro é parte do processo. Verdade que o mantra fala em errar rápido e errar barato. Mas para quem quer inovar, é preciso dar espaço para testar e falhar.

Também é necessário recordar que muitas das ferramentas presentes em nossa cibervida não foram as primeiras a surgir. Um exemplo clássico é o Google: antes dele dominar seu nicho, houve pelo menos uma dezena de buscadores relevantes disponíveis on-line. 

Sempre haverá quem ameace a hegemonia de quem está no topo da montanha. É o player a ser batido. E quem chega muito cedo no mercado da inovação corre o risco de pegar um terreno ainda infértil para suas ideias. A tecnologia precisa estar em sintonia com a conjuntura e os primeiros frequentemente evangelizam o público para quem chega depois usando o aprendizado dos erros de quem começou a jornada.

Ser pioneiro não significa ser o maior. E, voltando mais e mais no tempo, a China não é hoje a maior potência da pólvora. E nem do macarrão.

(Esse texto é fruto da mente de um ser humano que teve uma ajudinha aqui e outra acolá das IAs para arrumar as informações que costuram o raciocínio orgânico. Até por isso, demorou um tiquinho mais pra sair.)

* Gabriela de Paula é jornalista e produtora cultural, formada pela Universidade Federal da Bahia, com experiência em comunicação institucional e corporativa. Criadora do Bom Dia, Futuro e editora-chefe na Ayoo, ao longo dos anos, vem se especializando em conteúdos de inovação, tecnologia e cultura, focando nas transformações sociais impulsionadas pela revolução digital.
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI)

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