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Cartas e versos de Ruy à noiva

Por Luis Guilherme Pontes Tavares*

Em novembro 1949, a revista carioca Ilustração Brasileira publicou resultado de enquete com que apurou a conveniência ou não de se divulgar as 70 cartas que a esposa de Ruy Barbosa, Dona Maria Augusta (1855-1948), mantivera guardada até o final da vida. A revista entrevistou homens e mulheres, entre as quais, a escritora cearense Raquel de Queiroz (1910-2003), então cronista da revista O Cruzeiro, que se posicionou a respeito: “Mesmo que sejam muito simples demais, sem qualquer pretensão literária, quem as escreveu foi muito grande para ter a reputação abalada agora, com a sua publicação” (Ano LX, n. 175, nov1949, p. 56).

Adoto, pois, o veredicto dela, para prosseguir este texto.

Tive acesso à pasta identificada como “Correspondência Íntima”, a de número 25 do arquivo do Museu Casa de Ruy Barbosa (MCRB), e ali encontrei a transcrição datilografada de duas cartas do jornalista, jurista, político e abolicionista Ruy Barbosa (1849-1923) à ainda noiva Maria Augusta Viana Bandeira, baiana como ele; ambas datadas do mesmo ano em que se casaram, 1876. A transcrição da carta de 22 de julho foi doada pelo empresário Plínio Moscoso, em 29jan1969, e a outra, de 08 de julho, portanto anterior à citada, foi doada – não consegui identificar o nome – em 28jul1948, portanto na etapa de recolhimento de doações para compor o museu que seria inaugurado em 05 de Novembro de 1949, no centenário de nascimento de Ruy Barbosa.

A carta de 08 de julho, remetida do Rio de Janeiro, é apelo do noivo (27 anos) por correspondências amiúdes da jovem Maria Augusta (21 anos, portanto seis anos mais nova). Ele tivera que adiar o casamento e, enfim, naquele final de 1876 cumpriria o compromisso. Este trecho exibe a aflição do nubente: “A minha avidez de cartas tuas ainda, infelizmente, não foi satisfeita. Não me queixo, por ora. É possível que ainda te haja sido possível dar-me esse prazer, que eu tão ardorosamente suspiro”. (…)

A outra carta, escrita, segundo o autor, “às cinco horas da manhã”, é de 22 de julho de 1876 e foi remetida da Côrte (Rio de Janeiro). Ruy Barbosa relata pormenores da recepção à palestra que fizera, na véspera, na sede do Grande Oriente Unidos do Brasil sobre “Situação da questão religiosa” ou “A Igreja e o Estado”, que publicaria em livro mais adiante. Essa carta, documental, é mais dádiva e menos súplica. Ruy nos oferece a oportunidade de conhecer o apelido Cota, com que tratava a noiva, e acentua sua admiração e confiança na escolhida para estar com ele toda a vida.

Ele inicia a carta assim:

“Maria Augusta, minha muito adorada noiva:

“Quero que todas as minhas emoções, todas as minhas alegrias sejam primeiro tuas que de ninguém (…)

Num trecho adiante, informa:

“Quando o discurso terminou, às nove da noite [previsto para uma hora, o discurso durou duas horas], aquele auditório inteiro atirou-se ao pobre do seu noivo, a abraçá-lo, a apertá-lo, a machucá-lo, a beijá-lo como a uma criança. Escapei de boa, naquele tumulto indizível!”

Há, na transcrição, este comentário que, não havendo prova em contrário, atribuo ao doador Plinio Moscoso: “Em seguida, com modéstia embora não houvesse exagerado, ele depunha aos pés de Maria Augusta a láurea da vitória”:

“Eu só dei graças a Deus e a ti, a ti, minha noiva; porque – eu te juro! – se alguma inspiração houve, nas pobres cosias que eu disse, devo principalmente à tua lembrança, que durante o meu discurso todo esteve fixa em mim, ao pensamento vivíssimo de ajuntar por um esforço extraordinário as minhas limitadas faculdades, para apressar a nós ambos a felicidade tranquila e pura, que, por ti e contigo, é hoje minha aspiração única. Bem vês, pois, que não há em mim orgulho. Se eu não estivesse habituado, pela ação deprimente de uma vida sempre contraria, a não fitar neste mundo nada senão o meu dever, poderia cair na lolice de enfatuar-me, porque, francamente, havia de quê. Mas sou incapaz dessa meninice. Conheço o nada que valho”.

Pois é, esse “conheço o nada que valho” não tem preço! Por si, inspira mesa redonda interdisciplinar para traduzir verso construído diante do espelho da vida.

Corrijo a licença que cometi acima e encerro este texto com o poema “Seus cabelos”, que Ruy Barbosa dedicou à esposa. Não tem a data, mas sugere que o cometeu, quiçá, no ingresso dela na 3ª idade. Está publicado na Ilustração Brasileira (Ano LX, n. 175, nov1949, p. 65):

SEUS CABELOS

D’antes o ondeado cabelo

Deixavas-me sempre vel-o

Em fartos anéis sombrios

Nos ombros teus a descer…

Pendia daqueles fios

Minh’alma, de amores presa,

E a vista, em êxtase acesa,

Não se cansava de os ver…

Como é que agora, oprimido

Tão contrafeito, e escondido,

A natural formosura

Não lhe deixas expandir?!

Não vês que em teu rosto a alvura

Que os próprios lírios suplanta,

Ri mais viva e mais encanta

Se os deixa solto cair?

Porque essas lindas madeixas

Desfeitas baixar não deixas,

De aroma inefável cheios

Ao colo cândido e nu?

Porque, de tantas candeias

Com que meus olhos cativas,

Assim, ligeira, te privas

Criança ingênua que és tu?

Olha as rosas nas roseiras

Como baloiçam faceiras

Naquelas tranças viçosas

De que o estio as adornou…

Se, pois, o viço das rosas,

– Meu lindo amor, – ultrapassas;

Por que desprezas as graças

Com que Deus te avantajou?

*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da
ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

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