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Comunicadoras baianas falam sobre barreiras e exigem respeito

Além do assédio sexual e da violência psicológica, as profissionais da imprensa têm que enfrentar a discriminação sexista, materializada até pela distribuição de pautas e cargos com base em estereótipos de gênero. As comunicadoras falaram sobre os desafios no cotidiano da atividade jornalística e também repudiaram as frequentes agressões e intimidações contra as profissionais da comunicação.

Uma repórter é beijada à força por um torcedor, enquanto faz a cobertura de um jogo. Outra é acusada de oferecer sexo em troca de informações para uma reportagem. Em alguma redação do país, outra mulher é assediada. Além do assédio sexual por parte de fontes e colegas, e da violência psicológica, as profissionais da imprensa têm que enfrentar a discriminação sexista, materializada até pela distribuição de pautas com base em estereótipos de gênero – e quase sempre sem uma resposta adequada das empresas. Para encerrar o mês da mulher, a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) conversou com comunicadoras baianas que atuam no contexto televisivo. As profissionais expuseram barreiras impostas às mulheres no cotidiano da atividade jornalística, repudiaram as frequentes agressões e intimidações contra as profissionais da comunicação, e reivindicaram mais oportunidades e espaços de destaque.

Uma pesquisa realizada pela Gênero e Número e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostrou a presença de atitudes sexistas em redações por todo o país. Os dados revelam a ameaça à liberdade de expressão que a violência de gênero representa no jornalismo brasileiro: 86,4% das mulheres jornalistas já passaram por pelo menos uma situação de discriminação de gênero. Nas redações e estúdios de rádio, para cada mulher no ambiente de trabalho, existe um número 3 vezes maior de homens. 70,2% das jornalistas já presenciaram ou tomaram conhecimento de uma colega sendo assediada no ambiente de trabalho. O fato é que cada vez mais mulheres estão driblando essa realidade e conquistando o seu espaço.

É o caso da jovem radialista e publicitária Manuela Avena, que atua como repórter da TV Aratu. Ela entrou para a história como a primeira mulher a narrar uma Copa do Nordeste. Na partida entre os times Bahia e o Confiança (de Sergipe), no último dia 7, Avena foi a voz que deu o tom às emoções do jogo, escrevendo seu nome em um território majoritariamente masculino e dominado pelo preconceito. A emissora afiliada do SBT no estado alcançou a liderança de audiência durante a transmissão. “Sempre fui apaixonada por futebol, mas eu nunca pensei em trabalhar na área”, conta. Pós-graduada em gestão esportiva e com passagens pelas rádios CBN Salvador e Metrópole, a radialista já havia marcado outro importante gol na carreira: foi a única nordestina, entre homens e mulheres, a narrar uma Copa do Mundo (Rússia, 2018), através do projeto “Narra quem sabe”, do canal Fox.

“As melhores experiências que eu tive foram as narrações da Copa do Mundo e da Copa do Nordeste. Quem é mulher atuando no jornalismo esportivo sabe que é muito difícil ter espaço e mostrar nosso trabalho, por ser um mercado essencialmente machista”, observa. Apesar de nunca ter sofrido assédio durante o trabalho, Manuela Avena diz ter consciência do problema enfrentado por muitas colegas. “Precisamos falar, denunciar, para que não aconteça. Que as mulheres possam ser olhadas pela competência e que não existam barreiras nem locais onde a gente não possa estar. Meu sonho é narrar a final de uma Copa do Mundo ou a final de um campeonato nacional”, afirma a narradora.

Destaque por competência

Ao contrário de Manuela Avena, a jornalista Jéssica Senra revela ter enfrentado em mais de uma ocasião a violência de gênero no contexto profissional. “Já sofri assédio sexual, embora na época não se falasse tanto sobre isso e a gente visse como algo ‘normal’ no meio. Já vivi desigualdade salarial em relação a colegas homens em posições semelhantes”, disse. “Quando eu apresentava um jornal matinal, muita gente se referia a mim como ‘a bela das manhãs’. Aparentemente, era um elogio. Certo? Mas você já ouviu algum apresentador ser chamado de ‘belo das manhãs’?”, questiona. Para ela, as referências às profissionais mulheres giram em torno da aparência física, enquanto os homens são destacados por seu desempenho. “Eu quero que as pessoas me reconheçam como uma mulher inteligente, talentosa, corajosa, não pelo meu físico, porque ele não é o aspecto mais importante do meu ofício e não interfere na qualidade das notícias”, reclama.

Mesmo tendo iniciado sua carreira no rádio, foi o interesse pela televisão que a levou ao jornalismo, atividade que ela exerce há 17 anos. Atualmente na TV Bahia, ela é apresentadora e editora-executiva do telejornal Bahia Meio Dia. “A mulher tem conquistado espaços importantes na comunicação, mas isso ainda é muito desproporcional”, avalia Senra. Ela destaca que os maiores cargos de chefia e direção são ocupados por homens. Para ela, sua chegada à emissora afiliada da Rede Globo foi parte de um processo de renovação da empresa, em busca de aproximação com a audiência. “Uma comunicação mais conectada com as pessoas sempre foi uma marca minha. Mais do que opinar, busco analisar os fatos, interpretar as notícias, para ajudar quem está em casa a entendê-las e a refletir sobre elas”, explica.

Sua atuação na bancada do Jornal Nacional (Rede Globo), em setembro, durante as comemorações dos 50 anos do telejornal, lhe rendeu um convite para se juntar ao rodízio fixo de apresentadores, também composto por mulheres como Maju Coutinho, Giuliana Morrone, Aline Aguiar, Ana Paula Araújo e Ana Luiza Guimarães. Apesar de ocupar uma posição privilegiada no cenário baiano, Jéssica diz que sofre rotineiramente pressão estética para estar magra. “A maneira como a mulher é representada na comunicação, principalmente na TV, ainda é muito objetificada e subestimada. Muitas vezes, a nossa participação é hipersexualizada. Muitas críticas ou ataques que recebo têm fundo sexista. Às vezes, não criticam o conteúdo da fala e tentam me diminuir pela condição feminina”, ressalta.

Agressões como as sofridas diariamente pelas jornalistas Vera Magalhães, apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura, e Patrícia Campos Mello, repórter da Folha de S.Paulo, são consideradas por Jéssica Senra como ataques também à liberdade de imprensa. “São uma forma baixa de desvalorizar mulheres e o trabalho jornalístico, numa tentativa de desviar o foco das questões, dos temas que incomodam quem ataca”, aponta. Em fevereiro, Patrícia Campos Mello foi acusada por um ex-funcionário da Yacows, agência de disparos de mensagens em massa, de querer “um determinado tipo de matéria a troco de sexo”. A declaração fornecida durante a CPMI das Fake News foi repercutida pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e, mais tarde, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) faria insinuações sexuais contra a jornalista, ensejando o pronunciamento de diversas entidades. (Leia aqui)

Longe da capital

“Quero ser valorizada e respeitada pela minha competência, não pela aparência física. Quero estar e ver mais mulheres em lugares de destaque. Por um jornalismo sem machismo”, reivindica a jornalista Thaís Pimenta, coautora do livro “Afinal, o que é Jornalismo Cívico?”, fruto de pesquisas realizadas durante sua graduação, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). A pós-graduanda em Comunicação Eleitoral e Marketing Político também denuncia a objetificação e padronização do corpo feminino, além de expor o panorama de Vitória da Conquista (BA). “As âncoras e apresentadoras, em sua maioria, obedecem aos padrões estéticos comerciais: são magras, brancas, de cabelos longos e lisos. Não basta a competência e capacidade profissional. É preciso satisfazer as exigências machistas do mercado estético”, ressalta.

A jornalista argumenta que a situação de desigualdade entre homens e mulheres no jornalismo baiano é intensificada no interior do estado. “Há mulheres nas redações de site de notícias, mas são poucas que assinam colunas especializadas de áreas como política. E isso acontece porque parte da sociedade ainda acredita que mulher não sabe falar sobre determinados assuntos, não tem competência para postos de comando”, considera. Há cerca de um mês, ela topou um novo desafio: locução e produção do programa “Acontece Conquista”, ao lado da jornalista Luciana Oliveira. A atração, realizada pelo Instituto de Desenvolvimento Humano e Ação Comunitária (IDAC) e veiculada pela UESB FM, é toda comandada por mulheres.

“Vitória da Conquista tem como forte característica a atuação de blogs de notícias, mas poucos veículos tem equipe de jornalismo. Geralmente, o trabalho é feito pelo próprio dono do blog. É uma área predominantemente masculina”, conta. Ela atribui a isso o fato de a maioria dos jornalistas locais atuar em assessorias de imprensa. “O rádio em Vitória da Conquista é dominado por locutores homens. O espaço das mulheres é quase restrito à produção e reportagens. Com o nosso programa, queremos mostrar que jornalistas mulheres podem e devem ocupar esses espaços de destaque também”, destaca.

Desigualdade salarial e racismo

As mulheres estudam mais, fazem mais pós-graduação, mais mestrado, mais doutorado. Ainda assim, recebem salários menores que os homens no Brasil. E embora a violência de gênero no contexto profissional possa alcançar todas as mulheres, a vivência da mulher negra é carregada de marcadores raciais que transcendem o limite do fenômeno de gênero: Mulheres negras recebem menos da metade do salário dos homens brancos no Brasil. Negras ganham menos que homens negros e eles são mais mal remunerados que mulheres brancas, aponta a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De 2012 até 2018, a diferença entre as mulheres cresceu de 66% para 71%.

Um ano atrás, ao integrar o quadro da TV Bahia, a jornalista Luana Assiz declarou ao Portal SoteroPreta que se sentia feliz pela oportunidade de representar mulheres negras através da ocupação de um espaço na televisão aberta – apesar de sua carreira na TV não ter sido planejada. Agora, em entrevista à ABI, ela reforça a necessidade de ampliar essa participação feminina e salienta a diferença salarial. “É um absurdo, considerando que, de modo geral, as mulheres têm mais anos de estudo que os homens. As mulheres ocupam muitos lugares na comunicação, mas podem e devem ser mais presentes nos espaços de liderança. O mesmo se aplica à TV”, avalia. Nos 12 anos de profissão, a repórter que iniciou sua carreira no rádio já atuou nas áreas de produção, apresentação, reportagem e edição, adquirindo também experiência internacional, em sua passagem por Angola.

Fazer televisão também não estava nos planos de Naiá Braga, quando trilhou os primeiros passos no jornalismo. Ela vem de uma família de educadores e chegou a cursar Direito junto com Jornalismo, mas trancou a primeira opção e se encantou pelo campo da comunicação. Hoje, depois de acumular experiências na rádio CBN Salvaddor, em assessoria e produção televisiva, ela está fazendo pós-graduação em Comunicação Estratégica, na Faculdade de Comunicação da UFBA. A repórter da TV Bahia acredita que a área vive um momento “muito positivo, de maior visibilidade dessas profissionais, das suas demandas e questões”, no entanto, ainda destaca a pouca representatividade negra nas atrações jornalísticas das emissoras baianas.

“Esse crescimento de comunicadoras negras tem sido muito enriquecedor, porque a gente para de falar dos assuntos de forma distópica e passa a uma abordagem mais próxima da realidade da população negra no país”, diz a jornalista. “Que as comunicadoras tenham o espaço e a voz que elas nunca tiveram, que sejam respeitadas enquanto mulheres e profissionais em suas rotinas”, deseja. Para ela, a compreensão de que o papel da imprensa é um dos pilares do estado democrático de direito é fundamental para que a atividade ocorra com liberdade e consistência.

“Desde criança, eu dizia que seria jornalista, que seria a próxima Glória Maria”, recorda Tarsilla Alvarindo. Seu primeiro vestibular foi para Direito. Ela não passou e resolveu apostar no Jornalismo. “Fazer televisão era um sonho de infância, mas quando cheguei à universidade eu achei que isso não aconteceria. Por muito tempo, acreditei que não seria pra mim, até mesmo pela falta de representatividade. A gente precisa lutar contra o machismo e contra o racismo”, destaca. Desde então, trabalhou em assessorias, na Rádio Metrópole, no Bahia Notícias, na TV Band Bahia, e atualmente é repórter da Record TV Itapoan e apresentadora da TV Câmara Salvador. “A reportagem de rua me trouxe a possibilidade de estar mais perto das pessoas, o contato com a rua, a dinâmica da novidade”, afirma.

Segundo ela, na maioria das vezes, o assédio e a discriminação vêm de forma velada. “A gente vive situações que só acontecem porque somos mulheres”, analisa. Luana, Tarsilla e Naiá foram desafiadas a citar, ao menos, 5 comunicadoras negras atuando na TV, sem incluir a si próprias. Uma citou a outra, duas delas mencionaram Luana Souza, e as três incluíram Emanuele Pereira e Georgina Maynart. O único nome que apareceu em apenas uma das respostas foi a jornalista Lise Oliveira. “O cenário vem mudando, há dois anos eu não conseguiria listar cinco, por exemplo. O que não significa que a luta para conquistar esses espaços acabou, só estamos começando. Ainda vamos enegrecer a TV baiana”, avisa Tarsilla. No último dia 6, a jornalista realizou um sonho antigo. Ela levou ao ar um projeto para tratar de questões da negritude. O programa “Azeviche”, da TV Câmara Salvador, discute temas como racismo, estética, empoderamento, educação e literatura.

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