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Contra as violências de gênero, um bom jornalismo

Jaciara Santos*

A morte da socialite mineira Ângela Diniz, em dezembro de 1976, foi o primeiro feminicídio que despertou minha atenção, pela forma como a vítima teve sua reputação assassinada. À época, ainda estudante de jornalismo e na casa dos vinte anos, me sentia incomodada ao perceber o quanto a mídia se esforçava por apresentar aquela mulher como cúmplice da própria morte. O autor confesso, o empresário Doca Street, era mostrado como um homem apaixonado que não suportara ser rejeitado. Ainda não se falava em feminicídio, o caso foi tipificado como crime passional.

Ao longo da minha trajetória como repórter e depois editora da área de segurança, sempre me senti desconfortável com o desrespeito com que mulheres vítimas de violência são tratadas pela mídia. Estejam vivas ou mortas, há sempre uma necessidade mórbida de buscar motivos para justificar a brutalidade de que foram alvo. Se foram violentadas sexualmente, o que fizeram para despertar a luxúria do estuprador? Por que estavam vestidas dessa ou daquela maneira? O que estavam fazendo naquele local, àquela hora? Muitas vezes, essas eram as perguntas que lhes eram feitas na unidade policial, no momento do registro do boletim de ocorrência. E reproduzidas em larga escala pelo noticiário.

Quando silenciadas pela morte, o tratamento não é menos indigno. Ou são invisibilizadas, ofuscadas pela figura proeminente do suspeito ou têm a reputação assassinada. Em boa parte dos casos, o homem investigado como provável autor do crime é um “cidadão acima de qualquer suspeita, que cometeu um ato de desvario, num momento de descontrole”. Sim, as aspas contêm ironia. Uma imaculada ficha de antecedentes criminais não isenta de responsabilidade abusadores contumazes, estupradores, feminicidas. O fato de nunca terem sido desmascarados não os torna inocentes nem menos culpados. A vítima é a mulher. Nada justifica um feminicídio.

E é para jogar luz sobre esse lado escuro do jornalismo que a Associação Bahiana de Imprensa, por meio de sua diretoria e corpo técnico, resolveu construir um manual de orientação dirigido a profissionais de comunicação envolvidos na divulgação de casos sobre violências de gênero. Batizado de “Protocolo Antifeminicidio – Guia de boas práticas para a cobertura jornalística”, o trabalho chega ao público nesta terça-feira, 30 de abril, mês em que o jornalista tem um dia para chamar de seu. Mais que uma ferramenta de trabalho, o documento é a forma que a ABI encontrou para reforçar seu compromisso com o jornalismo de qualidade.

O Protocolo Antifeminicídio, em si, não constitui um fim, mas, seguramente, é um caminho para combater as diversas formas de violência de gênero. Ao propor uma cobertura sensível, ética e responsável, o guia contribui para alertar a opinião pública sobre a necessidade de cerrar fileiras contra a naturalização da misoginia, do machismo, motivações primárias do assassinato de mulheres.

Ao repetir seguidamente que homem não mata por amor, mas por sentimento irracional de posse, o manual aponta que nós, jornalistas, podemos e devemos ajudar na construção de cenários mais igualitários para todos os gêneros. E para que o fenômeno da revitimização – como a que a mídia impôs a Ângela Diniz, naquele longínquo 1976 – deixe de fazer parte do noticiário cotidiano.

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*Jornalista, diretora de Comunicação da ABI. 

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
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