ABI BAHIANA

Pelos olhos delas

Fotojornalistas baianas relatam seus desafios e conquistas na profissão

“Todos os dias a fotografia me surpreende, me traz algo de novo, me liberta, me cura e cria histórias mais próximas do real possível”, diz trecho do relato feito pela fotojornalista Paula Fróes em suas redes sociais, para marcar o Dia Mundial da Fotografia, celebrado no dia 19 de agosto.

Nesta data, em 1839, foi apresentado pela primeira vez o daguerreótipo, pela Academia de Ciências da França, em Paris. O primeiro equipamento de fotografia consistia numa caixa pesada de madeira que precisava de horas de exposição ao sol para fixar a imagem. Desde então, não foi apenas o equipamento que sofreu mudanças, mas também o perfil de profissionais que o manuseiam. Se a fotografia sofreu seus revezes e revoluções, o fotojornalismo também. Para celebrar essa mistura entre arte e jornalismo, a ABI traz os relatos de cinco talentos baianos. Cinco mulheres narrando suas vivências, desafios, conquistas, trazendo seus olhares sobre a área.

Linha de frente

O fotojornalismo exige do profissional muita agilidade para não perder o clique e coragem para estar na linha de frente, capturando o acontecimento. “Você vai cobrir uma pauta, tem vinte fotógrafos lá. O que vai definir a melhor foto? O melhor ponto de vista”, observa Margarida Neide, que busca o melhor ângulo há pelo menos 30 anos. “Em toda a minha vida de jornalista, sempre estive na frente”.

Margarida atua com a fotografia desde que era assistente do irmão, o fotógrafo reconhecido internacionalmente Nilton Souza, que ela diz ser sua maior inspiração. Entrou pela primeira vez em uma redação em 1982, para trabalhar no Correio*, e nunca mais largou a câmera. “Quando eu pisei pela primeira vez numa redação, eu sabia que ali era meu ninho. De cara me apaixonei”, recorda. 

Desde então, ela não largou mais a câmera e conquistou seu próprio espaço na profissão. Ainda hoje, é uma das poucas mulheres que já trabalhou com a cobertura de futebol (clique aqui para conferir a galeria), mas, para ela, ser mulher nunca foi um obstáculo em sua carreira. “Quando entrei na Fonte Nova pela primeira vez, era a única mulher. Alguns colegas tentaram [me barrar], mas eu nunca liguei pra isso”. A cobertura esportiva já lhe rendeu o Prêmio Nacional Racimec Esportiva, na categoria “Jogadores no lance”, o prêmio de Melhor Repórter Fotográfico no Esporte pela Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos (Arfoc) e pelo menos duas exposições individuais. Agora, o foco está nos seus projetos pessoais em jornalismo.

Foto: Margarida Neide

Ela não se define como uma jornalista esportiva. “Eu sou uma fotógrafa de ação”, ressalta. Margarida entende que mais importante do que o equipamento é o feeling do profissional, é estar atento ao que acontece. Hoje, fora das redações, ela diz sentir falta da aventura que é ir a campo. “Você passa a carga da notícia através da fotografia, às vezes, mais que o texto. Qualquer pauta para mim é preciosa. Você tem que sair para campo com vontade de achar o que representa aquilo ali”.

A andarilha

A paridade de gênero nas equipes de fotojornalistas nas redações é algo que vem sendo conquistado aos poucos, como mostra o exemplo dos dois maiores jornais em circulação em Salvador. O Correio* conta com uma equipe de cinco pessoas na área de fotojornalismo, sendo quatro mulheres, e o A Tarde, com uma equipe de oito pessoas, sendo duas mulheres fotojornalistas. 

Uma das repórteres do A Tarde, a experiente Shirley Stolze, com 61 anos, não parou de trabalhar durante a pandemia. Assim, ela pôde acompanhar as mudanças que aconteceram na cidade. “A rua é uma grande escola para qualquer pessoa que queira fazer o fotojornalismo, porque ela te dá várias opções. Eu digo que sou uma andarilha. Eu gosto muito de caminhar pela cidade, para ver a temperatura, o que tá acontecendo”, comenta Stolze.

Shirley direcionou seus passos por todo o país, com exposições de seu trabalho em conjunto com outros fotógrafos. Apenas na Bahia, já expôs no Museu de Arte Moderna, na Casa de Castro Alves e no Festival da Bienal do Recôncavo. A Associação Bahiana de Imprensa já reconheceu o seu talento duas vezes, premiando fotos suas publicadas no Correio* e no extinto jornal Bahia Hoje. (Confira a galeria com alguns registros dela)

Foto: Shirley Stolze

O “treino” do seu olhar iniciou pela observação de livros e revistas. “Eu sempre fui fã das imagens. O que ela passava, o que ela podia dizer para as pessoas”. Atualmente, ela precisa captar suas fotos a distância, com a sua lente teleobjetiva e o zoom da câmera. Mas nada te prepara para o dia a dia da profissão e, quando acontece aquela pauta imprevisível, o que resta é contar com o instinto de fotojornalista. “Às vezes, você sai com a pauta, surge outra em sua frente que não tinha nada a ver com aquela que te deram. Tem um acidente, você vai ter que fazer. É uma profissão cheia de novidades, o cotidiano da gente nunca é igual”.

Qual conselho Shirley deixa para quem está começando? “Ficar atento ao olhar. Eu acho que cada fotógrafo tem um olhar que é a sua identidade. Você olha uma foto de Aristides Baptista, você sabe que é dele, você olha a foto de Evandro Teixeira e sabe que é dele, você olha uma foto de Margarida Neide, de Marina ou de Paulinha Froes, aquele olhar já identifica o fotógrafo ou a fotógrafa”, analisa Stolze.

O belo e o cruel 

“O desafio da mulher na fotografia são os mesmos desafios da mulher na sociedade. Você tem que ser muito melhor do que o homem para ser respeitada”, afirma Lucia Correia Lima, fotojornalista desde a década de 70. Ela começou a trabalhar aos 16 anos na extinta Revista Realidade, como assistente no laboratório de fotografia, mas sua carreira como fotojornalista só teve início mesmo no jornal Tribuna da Bahia.

Lucia relata que, apesar do apoio de alguns colegas, sofreu represálias. “O chefe do setor de fotografia disse claramente que não podia contratar uma mulher. ‘Como é que uma mulher ia fotografar um homem mijando, entrar num vestiário na Fonte Nova?’ Ele foi contra, mas o Paulo Tavares [chefe de reportagem do jornal na época] bancou e disse que me queria lá”, lembra ela, grata ao incentivo de Tavares, morto em março deste ano por complicações da Covid-19. 

Para continuar na redação, Lucia tratou de ser a melhor. Conquistou seu espaço dentro da TB – onde teve a oportunidade de trabalhar com grandes nomes, como Sônia Carmo, primeira fotógrafa da imprensa baiana – ou quando trabalhou para a imprensa alternativa paulista, em veículos como a Revista Bondinho e a Leia Livros. 

Foto: Lucia Correia Lima

Lima ainda pretende voltar a atuar com o jornalismo, mas no momento está focada no desenvolvimento de um documentário a partir do seu livro “Mandinga em Manhattan”. O livro rodou o mundo, assim como outros trabalhos de Lucia que já foram expostos nos Estados Unidos, com a exposição Mundo Negro, e na França, com Herança Africana. O respeito à herança afro na cultura brasileira permeia seu trabalho mais recente. Lucia, inclusive, vê paralelos entre a luta feminista e a do movimento negro. 

Ela pôde assistir à mudança do analógico para o digital e agora às mudanças na própria forma de fazer do fotojornalismo. Mas o poder da imagem permanece. “O fotojornalismo é a memória da sociedade, se você quer conhecer uma sociedade, você vai buscar nos jornais, nos registros fotográficos”, afirma.

Além de memória, o fotojornalismo, para ela, é também alternativa. Como conselho para os futuros profissionais, Lucia acredita que não se pode deixar de pensar na própria câmera como um fator de mudança. “Temos que ajudar a mudar a realidade e a construir uma sociedade mais justa através do trabalho. O fotojornalismo é importantíssimo dentro disso. A partir do momento que você mostra o belo, você tem que mostrar as crueldades”, pondera. (Galeria de Lucia)

O detalhe

Marina Ferreira, fotojornalista e editora no Correio*, busca o detalhe dos fatos através de suas fotos. “É uma forma de sair do senso comum, de tentar trabalhar minha criatividade”, afirma. Ela, que iniciou em 2008, pende entre o cansaço da dedicação que a profissão exige e a paixão por descobrir coisas novas a cada pauta. “A gente conhece outras coisas, outras possibilidades e formas de ver  o mundo pelo fotojornalismo”.  

Para Marina, a fotografia dela, mesmo no fotojornalismo, tem que ter arte. “A foto tem que ser sentimento. Você olha para a foto e vê algo mais. É isso que faz uma foto ser melhor que outra”. Quando sai a campo, coisa que se reduziu bastante durante a pandemia, ela sempre busca fazer aquilo que chama de “uma foto para si”. Ela tenta reconhecer a Marina que há nos retratos que vão para os jornais. “Tem uma coisa que caracteriza minhas fotos. Isso é bacana, a pessoa tem que buscar isso, a sua identidade nas fotos e tentar mostrar quem é”. (Confira cliques de Marina)

Foto: Marina Silva

Faconiana de formação, Marina caiu na fotografia ao se tornar monitora em uma das disciplinas. Seu trabalho de conclusão de curso foi um dos primeiros passos na exploração da arte que a foto tem. O projeto “Corpo Revelado” mostra o olhar poético da fotógrafa para as formas e as pessoas.  

Dentro do jornalismo, suas capas para o Correio* já lhe renderam alguns prêmios como o Prêmio OAB-BA de Jornalismo Lima Sobrinho e o The Best New Design Creative Competicion. Para quem sofreu preconceito por ser mulher e inexperiente no início da carreira, hoje ela acumula muitas habilidades da profissão. Agora, trabalhando com uma equipe predominantemente feminina, ela sente que houve avanços nesse sentido. Segundo ela, a nova mudança na área seria a necessidade do instantâneo. E aí, cabe ao profissional continuar atento ao que lhe rodeia. 

Uma arma na mão

O maior sonho de Paula Fróes dentro do fotojornalismo é fazer cobertura de guerra. Ela relata que a última vez em que se sentiu plena de verdade foi quando fez a cobertura de um incêndio dentro de um helicóptero. Essa não foi a única vez em que esteve presente em momentos de risco: ela também cobriu as manifestações anti e pró Dilma, durante o processo de impeachment e foi a primeira fotojornalista baiana a entrar em um hospital em meio à pandemia de Covid.

Mas o risco que a profissional se coloca também já acarretou agressões e assédios. “Já fui agredida trabalhando no carnaval para o bloco As Muquiranas, por ser mulher, estar vulnerável e ser nitidamente uma pessoa LGBT. Meu estereótipo é de mulher lésbica”, afirma Fróes, que se identifica como pessoa não-binária.

Mesmo tendo a bagagem de ter passado por veículos como o  A Tarde, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, O Globo, BBC, AzMina, Metro International e acumular suas distinções, Paula ainda tem de lidar com o machismo nas relações com seus colegas. “Lidando com homens já fui reduzida diversas vezes. ‘Ah, porque você faz assim?’ A foto é minha, você não tem que interferir na minha arte, na minha imagem, nas minhas vivências. Minhas fotos partem das minhas vivências”, relata a jornalista.

Foto: Paula Fróes

A mais recente agressão que viveu foram os xingamentos e assédio verbal por parte de apoiadores de Bolsonaro durante uma passeata. Fróes lembra que poucos profissionais homens passaram por casos semelhantes. O que resta a ela nessas horas para se proteger é recorrer aos seus equipamentos, que são também suas armas. “Eu sempre penso ‘O que eu tenho de arma na minha mão? Um celular e uma câmera’. O que eu posso fazer para me defender nesse momento? Peguei meu celular e filmei a ação deles e mantive a calma”, recorda. (Acesse a galeria com fotos de Fróes)

Com as armas em punho, elas buscam trazer um novo olhar sobre o cotidiano. Algo que tem muito a ver com jornalismo, mas também com elas mesmas. Ou, como encerra Paula em sua homenagem à fotografia: “As minhas vivências são minhas fotografias. Eu sou aquilo que fotografo e nada mais”. 

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*Larissa Costa é estagiária de Jornalismo da ABI.
Edição: Joseanne Guedes

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