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Saudade é como espinho cheirando a flor

Florisvaldo Mattos*

Logo cedo, hoje, a jornalista Olívia Soares postou este obrigatório registro cultural: nesta data, 14 de março de 1939, nascia Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, Bahia. Salve, salve a memória que persiste e prossegue!

Resolvi compartilhar esta superior evocação, aproveitando para reproduzir ode que escrevi, dias seguintes à morte do amigo Glauber Rocha, que hoje estaria completando 84 anos, para glória da Bahia e do Brasil, ante a vastidão de sua criatividade cultural, especialmente cinematográfica. Nesse escrito de entonação lírico-épica remonto aos tempos em que fomos companheiros de redação em dois jornais de Salvador, ambos hoje também finados, ele ainda beirando os 20 anos de idade.
Segue abaixo essa sensível homenagem.

A EDIÇÃO MATUTINA

(À memória de Glauber Rocha, artista, amigo e companheiro de jornal)

Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados

Muito

de dor enclausurada
de raiva contida
de memória desesperada
Muito

de petrificado esterco
de martírio indevassado
fel de carcomida flor

Como em toda experiência humana
Como em toda verdade proclamada
Há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas

Nada sei além do que me contam
relatórios
encimados por tipos de caixa negros
vomitando
pelas janelas dos escritórios
pelos pátios dos colégios
pelos verdes
gramados dos jardins municipais
pelas oficinas mecânicas
pelos bares
pelas praias e estádios superpovoados
pelos ônibus
pelos trens
pelos aviões
e navios que levam petróleo
pelo mar
por todas as estradas que começam na infância

Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu
Tudo o que a água afogou e o fogo torrou
Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou
Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu

Por esta janela escancarada diante do mar
com o horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã de um dezembro moribundo
rajadas de azul me trazem a história
de tudo
estampada nas páginas em fúria
onde não há nenhum signo gráfico
nenhum nome
somente linhas de sangue
vergonha e desespero

Algo lido não sei onde
mas logo esquecido
Algo escrito não sei onde
mas logo apagado
Algo de ausência denunciada
mas logo justificada
Algo de presença intolerada
mas logo consentida
Algo de dúvida arguida
mas logo desfeita
Algo que violou a alma
mas logo com rigor apurado
Algo de assombro que povoa os muros
Algo de aceso punhal que cega as mentes
Algo catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca veio à luz nem foi explicado

Vem-me pela porta aberta desse verão doente
ecoando na varanda das páginas desertas
das edições que sangram gota a gota
nas enfermarias do acontecer
(de ontem
de hoje
de amanhã
de sempre)
e adquire uma velocidade assustadora

Porque a luz é forte e ensurdece
Porque o agitado do mar escurece
Porque chega o vento e exerce
o poder de lançar a espuma
contra as estrelas adormecidas
Porque a poeira da rua enegrece
as vestes nos varais abandonados
Porque é cedo e todos sabemos que tarda

Um novo ciclope no horizonte aparece
Os corpos voam sobre os arranha-céus
Porque a exausta carne se desprende
dos ossos ante petardos de sal

Nada sei além do que me contam
as furiosas páginas dos diários mudos

Morreu o Chefe de Reportagem
E ficamos todos tristes
A penumbra da noite avança pelo amanhecer
A neblina é densa e os automóveis
entram em choque de faróis apagados
Queremos uma pauta
um roteiro qualquer
Não o que leve ao esclarecimento
de todas as culpas
Não buscamos desvendar o impossível
Queremos uma pauta
um caminho (por exemplo)

Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
prossiga com a listagem para as horas de lazer
Que enumere os chopes de todos os botequins
Que reproduza todas as gargalhadas do perímetro urbano
Que forneça o mais seguro boletim meteorológico
Que informe o que se passa nos cinemas
Que esconda os dejetos lançados sobre os monumentos
Que estimule o Ba-Vi das ilusões primeiras
Que abra os corações aos ritos do candomblé
Que dê verso às canções dos trios-elétricos
Que vista a mortalha dos foliões de todos os dias
Que prepare o espírito de todos para o Carnaval

E assim seguindo apenas
o curso luminoso
de cada signo morto
perfurando o arenoso
das páginas desertas
bobinas de horror
manchas de tinta fresca
chumbo e insone rastro

Chorarei então
por entre os escombros
da edição matutina

(Florisvaldo Mattos, Salvador-Bahia, ago., 1981)
Foto: Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos, em 1976.

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*Florisvaldo Mattos é professor, jornalista, poeta, membro da Academia de Letras da Bahia e do Senadinho da ABI.

Contato: [email protected]

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