ABI BAHIANA

Jornalismo, literatura e boemia

Efervescência cultural da década de 70 na cidade é recordada em novas edições

Andar pelas ruas de Salvador é uma grande experiência cultural. Desde a década de 50, a província se reinventou em metrópole, movida pelos ventos da industrialização brasileira. Salvador era uma cidade menor, onde era possível sair à noite e onde as pessoas tinham de se encontrar para conversar. Naquela época, os bares e restaurantes também faziam parte do circuito cultural. 

Alguns deles tornaram-se pontos de referência. É o caso do Berro d’Água, recordado por um de seus fundadores, Charles Pereira, em seu livro “Berro d’Água: Festa, Arte e Boemia na Cidade da Bahia”, lançado na última quinta (25) no bar Póstudo, no Rio Vermelho. O bar, que era localizado no Porto da Barra, tornou-se ponto obrigatório para os artistas que vinham para a Bahia, nos anos 70-80. Se fosse apenas pelos drinques e bebidas – o consumo de álcool, beirando o exagero, fazia parte do espírito da época – o Berro seria um bar como qualquer outro. Mas aquele ponto faz parte da história de Salvador. 

“Eu tive um público muito culturado”, recorda Charles. Não apenas afeito à cultura, o bar era frequentado por estrelas nacionais e internacionais. Segundo o escritor baiano, o Berro d’Água já foi visitado pelo ator Michael Douglas, ofereceu uma festa de aniversário a Robert De Niro e uma visita da cantora Mercedes Sosa. Outros nomes também podem ser citados: Pelé, Nina Hagen, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Melodia, Edu Lobo, Toquinho, Jorge Benjor, Cazuza, Jô Soares, Paulo Gaudenzi, Luiz Jasmim, Pierre Verger, Carlos Bastos, Mario Cravo Neto, Roland Schaffner, Glauber Rocha, Luiz Eduardo Magalhães, Ney Galvão, Osmar Marrom, Fernando Guerreiro, Lia Robatto, Átila de Albuquerque, Geraldo Machado, Heitor Reis, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nonato Freire, Armandinho Macedo, Nilda Spencer, Arlete Soares. 

Atento às oportunidades, Charles Pereira conta como tornou o Berro d’Água um ponto de encontro entre artistas. “Quando tinha um momento de cultura na Bahia, por exemplo, um espetáculo de dança, nós fazíamos os cartazes do show. E nós colocavámos ‘Apoio Cultural Berro d’Água’. Sempre no final do show, o artista agradecia ao público em nome do bar”, recorda. Era costume também oferecer no bar coletivas de imprensa antes de um show. Como afirma Charles, o Berro d’Água funcionava como bar e assessoria de imprensa. 

Foi nas paredes do bar que o artista visual Bel Borba fez sua primeira exposição. Charles ainda recepcionou outros artistas como Mário Cravo Neto, que pôde expor em suas paredes. “Eu dei muito espaço para pintores que estavam surgindo, mas não tinham nome ainda para galerias famosas. Como o Berro d’Água era frequentado por pessoas antenadas na cultura baiana, foi um bom espaço para esses artistas”, relata. 

Na lista de frequentadores também encontra-se a teatróloga e agitadora cultural Aninha Franco. Ela, que prestigiou o lançamento do livro, lembra com carinho das noites passadas no bar. “Nós éramos uma geração dos anos 70, que tem um conteúdo bem especial: o rock, o amor livre. Lugares como o Berro d’Água – antes dele tinha o Kirimurê, que ficava na Gamboa – esses eram lugares onde nos encontrávamos, nós conversamos e onde éramos iguais”. 

Aninha afirma ainda que essa foi uma época de muita gentileza entre as pessoas. A energia, a afetuosidade, tudo isso faz parte do jeito baiano de viver a boemia. “ [A boemia] É uma maneira jovem de ser, você tem uma energia no corpo; Eu, por exemplo, não tenho mais. Você tem uma energia que precisa usar. Isso moveu os anos 70 com força; ainda durante a ditadura”, completa. 

É nesse clima de festa, arte e boemia que o jornalista e escritor Otto Freitas lança o seu livro “Aquele jeito baiano de ser boêmio” (Editora P55), em julho deste ano. Reunindo as crônicas publicadas no jornal Bahia Já ao longo de sua carreira, o jornalista retrata Salvador nas décadas finais do século XX. “Aquele Jeito Baiano de ser Boêmio é fruto de quase 10 anos escrevendo crônicas e mais de 40 de atuação ativa como jornalista profissional. Mas não tive qualquer intenção de montar um remember. Apenas contei histórias de um tempo que foi rico existencialmente, apesar da ditadura militar, que tentou, mas não conseguiu matar a poesia”, afirma Otto. 

Sem saudades nenhuma da repressão daqueles tempos, mas com certa nostalgia da aura divertida de uma geração que ainda carregava o ânimo da contracultura. Otto nos relata os tempos onde o tempo era mais devagar e os conhecidos estavam sempre por perto. “Nesse ritmo os afetos enriqueciam as relações e sempre dava tempo para passar no bar ou ir ver um espetáculo, onde sempre haveria alguém conhecido para compartilhar as emoções da noite”.

Lugares, figuras, hábitos e comidas estão lá dando, mas, no fim, o que dá a tônica baiana à boêmia são as pessoas. “Não basta ter patrimônio natural, cultural e histórico rico. A Bahia é sua gente, não estou dizendo nenhuma novidade”, completa o jornalista. 

A boêmia literária

“Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias”, assim recordou o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos, 2° vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa, em palestra concedida no dia 18 de julho na Fundação Pedro Calmon. Nessa época, a boemia era um modo de viver a cidade e de fazer arte.

O poeta viveu o melhor da boêmia literária em grande companhia, junto àqueles que seriam conhecidos como “A Geração Mapa”. Acompanhado de Glauber Rocha, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Antônio Guerra, entre tantos outros, os jovens reuniam – se em para discutir as pautas modernistas. 

“Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se tornariam habituais”, continua Florisvaldo. Em suas recordações, surgem outros pontos onde os encontros tornaram-se comuns: a Sorveteria Cubana, o Bar e Restaurante Cacique, o Bar Anjo Azul – tão marcante quanto o Berro; o Chez Bernard. “E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade boêmia, na Praça Castro Alves, a uns dez metros da estátua do poeta, junto à balaustrada sobre a Ladeira da Montanha”.

Dos projetos do grupo que tomou a cidade, surgiriam a Revista Mapa, o suplemento dominical editado pelo Diário de Notícias, os livros com o selo das Edições Macunaíma, os projetos de filme, de artes, as peças de teatro e outras tantas experiências. Hoje são outros os empreendimentos e os pontos culturais da cidade. Charles Pereira cita alguns, como o Póstudo escolhido para ver o nascimento de livro, outros pontos do Rio Vermelho e o bairro Santo Antônio Além do Carmo, onde, segundo ele, se celebra o carnaval “das pessoas alternativas” na cidade.

A diferença é que a cidade cresceu, os tempos mudaram, mas a Bahia continua sendo um pólo produtor de grandes escritores, poetas, artistas, músicos e jornalistas. A diferença é o tempo, os avanços e recuos naturais da vida. (…) Mas esse jeito baiano de ser, o bom humor, apesar de tudo, isso continua, mesmo através do celular ou do computador”, completa Otto Freitas. 

*Larissa Costa, estudante de Jornalismo, estagiária da ABI.
Sob supervisão de Simone Ribeiro

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