Decisões jurídicas a favor da censura prévia, indenizações, retirada de conteúdo e revelação de fontes têm sido instrumentos largamente usados para coibir profissionais e dificultar o trabalho jornalístico. Ao lado de assassinatos, sequestros, ataques físicos e ameaças que passam quase inteiramente impunes, o cenário de intimidação judicial é apontado por entidades ligadas à profissão como um dos maiores problemas para os jornalistas brasileiros. No relatório de 2012, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) falou da recorrência de decisões judiciais proibindo previamente a divulgação de informações, e classificou a prática como uma afronta ao princípio maior da liberdade de expressão definido pela Constituição. Três anos depois, em 2015, a SIP concluiu que a censura judicial diminuiu, mas que o problema continua frequente, principalmente em períodos eleitorais.
O documento citou um exemplo de dezembro de 2014. Dois meses após o fim das eleições, um juiz da 4ª Vara Federal de São José do Rio Preto (SP) determinou a quebra do sigilo telefônico do jornalista Allan de Abreu e do jornal Diário da Região, para descobrir a fonte de reportagem sobre um caso de corrupção. Na matéria, o profissional usou informações de investigação policial que transcorria em sigilo. O quadro foi revertido graças a uma ação da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Em 8 de janeiro, o Ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu liminarmente a decisão, justificando que ela violava o direito constitucional de sigilo de fonte.
Os jornalistas Mauri König, Felippe Aníbal, Diego Ribeiro e Albari Rosa, da Gazeta do Povo, no Paraná, vivem situação parecida em 2015. Eles têm sido convocados “sistematicamente” para prestar depoimento sobre reportagens que denunciam desvios de conduta de policiais. Em alguns casos, policiais denunciados ou suspeitos de serem os informantes acompanharam o depoimento.A notícia sobre ações inconstitucionais das autoridades junto aos repórteres do Paraná ganhou repercussão nacional e gerou o repúdio de associações e sindicatos da categoria. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) diz que desde 2013 repórteres locais sofrem pressão de policiais militares para que revelem suas fontes na cobertura de segurança pública, e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná (Sindijor-PR) alerta que o direito ao sigilo de fonte está ameaçado no Estado.
Na Bahia, uma decisão da Justiça sentenciou o jornalista Aguirre Peixoto à prisão em regime aberto por crime de calúnia, injúria e difamação, embora a Organização das Nações Unidas (ONU), em seu Plano de Ação para Segurança de Jornalistas, recomende aos países-membros que ações de difamação sejam tratadas no âmbito civil. A decisão do juiz da 15ª Vara Criminal foi favorável ao empresário do setor imobiliário Humberto Riella Sobrinho, que alegava haver informações falsas em reportagens sobre crimes ambientais publicadas no jornal A Tarde em dezembro de 2010. Desligado do jornal A Tarde em 2011, por suposta pressão de empresários do setor imobiliário, Aguirre Peixoto foi condenado a seis meses e seis dias em regime aberto, pena convertida em prestação de serviços e pagamento de 10 salários mínimos. Em julho de 2014, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) concedeu habeas corpus para suspender o processo contra o jornalista, que responde a três processos em varas criminais diferentes, tendo como ponto de partida a mesma reportagem. De acordo com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Bahia (Sinjorba), além de Aguirre Peixoto, também são alvo das ações judiciais os repórteres Biaggio Talento, Regina Bochichio, Patricia França Vitor Rocha, Felipe Amorim e Valmar Fontes Hupsel Filho.
Liberdade tolhida
Alguns profissionais conhecem a Justiça há muitos anos. Em 2011, o site alemão Deutsche Welle (DW) afirmou que no Brasil, “um país oficialmente livre das amarras da censura de imprensa”, quem quer impedir uma informação de ser publicada, consegue. Em sua análise sobre o país, a DW destacou, por exemplo, o caso do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, fundador e dono do Jornal Pessoal, dedicado à cobertura da Amazônia. De 1992 a 2011 ele já tinha 33 processos e foi chamado pela publicação alemã de “um dos jornalistas mais perseguidos do país”. O veículo também falou do jornal O Estado de São Paulo, censurado judicialmente desde julho de 2009. O diário não pode falar do empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney e investigado no escândalo político conhecido como Boi Barrica.
Em 2007, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) também já alertava para a censura preventiva dizendo que ela resultava num “clima desfavorável à liberdade de expressão”. Lançado em 2009 e elaborado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), o relatório “Violência e Liberdade de Imprensa no Brasil”, sobre anos de 2007 e 2008, também diagnosticou o problema. “O número de tentativas de censura e processos judiciais cresceu de 35% para 37% e se compararmos com 2006, este crescimento é maior. Esses casos, naquele ano, não passavam de 24%”, diz o documento.
Para o advogado Alexandre Fidalgo, especialista nas áreas relacionadas à liberdade de expressão, ao direito eleitoral, do entretenimento e regulatório, hoje as ações mais comuns contra jornalistas são as de danos morais e de exercício do direito de resposta, principalmente no período de eleições. Ele diz que nessa época confunde-se jornalismo com propaganda eleitoral para alcançar a competência da Justiça Eleitoral, mas que casos assim devem ser analisados na Justiça comum. “Um texto jornalístico se faz com trabalho de campo, ouvindo fontes, tomando conhecimento de material de investigação. Num processo na Justiça comum seria possível trazer aos autos para comprovar a reportagem. Tudo isso não é permitido na Justiça Eleitoral. Defendo que essa justiça especializada é incompetente para julgar material jornalístico”, afirmou ao Portal IMPRENSA.
Colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico, veiculo no qual fala justamente da liberdade de expressão, Fidalgo reforça que não há assunto limítrofe para o jornalismo, desde que a notícia esteja comprometida com o interesse público e com a verdade. E que diante desses elementos, os demais valores, inclusive os individuais (privacidade e intimidade), se submetem. Apesar dos embates entre esses dois extremos da balança, ele avalia que a relação entre o Judiciário e a imprensa está evoluindo. Para ele, prova disso é que as decisões que violam a Constituição Federal diminuíram ou são corrigidas no Supremo. “Há uma equivocada interpretação pelas instâncias inferiores à possibilidade de se retirar ou corrigir material jornalístico. Qualquer tentativa disso constitui censura. Qualquer obstáculo à difusão de informações deve ser tido como censura. O Supremo tem corrigido tentativas de censura praticada nas instâncias inferiores”. Fidalgo aconselha que a melhor forma da imprensa se proteger é fazendo um bom jornalismo. “Checar as informações e se municiar de documentos para defender-se”, resume.
Já o advogado Guilherme Nostre apresentou uma proposta para equilibrar a proteção dos direitos individuais em face da liberdade de expressão, e proteger a liberdade de expressão, direito fundamental. Segundo ele, com o crescimento da internet e das redes sociais fez aumentar a preocupação em limitar a liberdade de expressão, em face dos ataques feitos a direitos individuais. Só que essa limitação viola a própria liberdade de expressão como direito fundamental. Defendido no pós-doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Coimbra, seu trabalho propõe que criar obstáculos à livre manifestação do pensamento e à divulgação de ideias, fatos, notícias e opiniões, bem como a manipulação de informação e opinião, são crimes contra a liberdade de expressão e devem ser penalizados.
“Para proteger a liberdade de expressão e impedir a manipulação de ideias não existe alternativa a não ser criar garantias para os comunicadores. Esse caldo de opiniões diferentes é o sustentáculo da garantia fundamentam da liberdade de expressão”, diz o criminalista que é sócio do Moraes Pitombo Advogados. Para ele, práticas como tentativas de manipulação da opinião pública por meio de processos, de abuso do poder econômico ou político para dificultar ou impedir o trabalho do jornalismo, bem como manter comunicadores de aluguel, devem ser coibidas e penalizadas. “Isso é um atentado à liberdade de expressão e não pode ser admitido entre nós”, afirma.
*Informações do Portal IMPRENSA, Deutsche Welle e Diário da Região.