Por Ernesto Marques*
Quando finalmente fui dar atenção às mensagens não lidas, colegas me questionavam sobre posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa no episódio que deu na exoneração do agora ex-secretário de Saúde, Fábio Vilas-Boas. Angeluci Figueiredo foi alvo da ira de Vilas-Boas, não por ser jornalista, mas como empresária negra baiana, dona do Restaurante Preta.
E foi com essa autoridade tamanha que ela subiu nas tamancas e não deixou ao branco irado, que chegou a invadir seu restaurante, outra alternativa a não ser pedir o boné. Diante dos olhos claros e apopléticos do estressado comandante da guerra contra a covid19, a preta honrou suas ancestrais, pretas como ela, quando encararam outros olhos claros como aqueles.
E honrou também o diploma de jornalista conquistado na Ufba. Além de não se intimidar quando a imprensa foi usada como ameaça de publicar notícia negativa contra seu restaurante, a jornalista Angeluci Figueiredo entrou no circuito para defender a Preta. Quase em tempo real!
Nada de xingamento, nem desqualificação ou acusação leviana. Ao lado da exposição crua dos fatos, uma carta do tamanho da Bahia. Querida e respeitada por coleguinhas de faculdade e de redação, ela tem ainda a admiração de muita gente da imprensa baiana que curte sua gastronomia e capacidade empreendedora.
Se tivesse que fazer uma nota sobre o caso, seria de aplauso à altivez de uma mulher, baiana, negra, empresária, jornalista por formação. O repúdio e o ato misógino, minúsculos como são, servem apenas para justificar a reação dela e os aplausos nossos. Nos grupos de aplicativos de mensagens em que o assunto for pautado, teremos a oportunidade de um prazerzinho corporativista, dizendo: mas também… a mulher é jornalista!
Sobre o desfecho, um lamento e um alento. É de se lamentar a perda de um gestor revelado eficiente na condução da maior crise sanitária da nossa história. Contrariando muitas expectativas, Fábio chegou à Secretaria Estadual de Saúde chamando SUS de “programa” e sai reconhecido por seus méritos.
Coube a ele executar uma política de saúde pública que levou serviços de diagnóstico e procedimentos de média e alta complexidade para todas as regiões da Bahia. E pelo combate eficiente à pandemia. Não cairia se não tivesse tropeçado na própria língua.
O alento é podermos encher o peito com o ar que invade Salvador no embalo das águas sempre renovadas de Kirimurê. Atavicamente presente entre nós, ainda, a tradição autoritária e marcadamente machista e racista, persistirá. Mas sofreu mais um revés com este episódio. Sem esperar e sem pedir solidariedade, uma mulher baiana se retou e criou “jurisprudência”: Na Bahia, misoginia é incompatível com o exercício de função pública.
Texto originalmente publicado no Jornal Correio.
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*Ernesto Marques é jornalista, radialista e presidente da ABI.