Luis Guilherme Pontes Tavares*
Refiro-me à revista baiana Renascença, sobretudo ao número 102, publicado em março de 1923 e dedicado ao jornalista, político, advogado, diplomata baiano Ruy Barbosa (1849-1923) devido ao falecimento dele em 01 de março daquele ano. Folheei o exemplar que a ilustre cronista e folclorista baiana Hildegardes Vianna (1919-2005), associada e criadora do Museu da Imprensa, doou à Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
Transcrevo abaixo o artigo “A infância de Ruy”, de autoria do médico e educador baiano João Florêncio Gomes (1846-1925), contemporâneo do homenageado no Gymnasio Bahiano, texto circunstanciado no período em que foi escrito, mas que acentua o respeito, a admiração e o compromisso do autor com a biografia do colega.
Ilustro a postagem com a foto da capa do número 102 da Renascença, que, em 1923, estava no sétimo ano de circulação. A revista era publicada pela Photo Lindermann de D. Gramacho, cujos descendentes atuam nos dias de hoje no magistério, no jornalismo e na política. A outra imagem foi copiada da página 10 da publicação Rui Barbosa fotobiografia (Rio de Janeiro: FCRB, 1999).
Que a leitura seja inspiradora e animem reflexões a respeito!
“A INFANCIA DE RUY
Conservo indelével e grata lembrança sobre Ruy Barbosa; fui seu contemporâneo no Gymnasio Bahiano, sob a direção do seu benemérito fundador, o Dr. Abilio Cesar Borges, Barão de Macaúbas.
Menos adiantado em estudos, salvo o latim, cuja classe superior eu cursava sob a regência do Padre Fiusa, latinista consumado e eloquente orador sacro, mas seu colega em francês sob o engenheiro Moreira Sampaio, posso dar testemunho de quanto se distinguia.
Ruy Barbosa, de doze a quatorze anos – pequena estatura, débil organismo, jamais ficara aquém dos condiscípulos.
Sabia-se que, até em feriados, seu ilustre pai, o Dr. João José Barbosa de Oliveira, que Ruy mesmo qualifica de espírito severo, o aplicava a estudos, em determinadas horas, base, sem dúvida, do hábito, cedo adquirido, de falar ou escrever com a facilidade, que justamente lhe admiram.
Com referência a si mesmo disse algures: a ‘única força que a natureza me não recusou foi a minha fé’; e sobre sua orientação literária ‘no vernáculo meu único mestre foi meu pai’.
No colégio, em seus lazeres, lia Ruy Barbosa; ou escrevia para periódicos e crônicas, a princípio manuscritos, mais tarde impressos sob a denominação de 0 Gymnasio, cujo redator-chefe era Aristides Milton.
Quando, em solenemente de férias, foi conferida a Ruy Barbosa medalha de ouro, foi a única, nesse ano, distribuída, o que foi mui significativo.
Outros, anteriormente, não sendo, porém, eu ainda aluno, haviam-na obtido; posteriormente, medalhas, quer de ouro, quer de prata, foram distribuídas a diversos, em cujo número está [in]cluído o meu modesto nome.
‘Quoniam primus fuerat alter, ne solus foret… emulatio, non invidia’.*
Um ou dois anos depois, pelo aniversário natalício do Dr. Abilio, recitando Ruy Barbosa, de lavra sua, lindo soneto, terminando pelo verso seguinte: ‘Só não morre a virtude, a inteligência’.
Tal foi, ante aquela exibição, em verdes anos, o entusiasmo do notável poeta repentista, veterano da independência, Francisco Moniz Barreto, que, após instantes, batia palmas e recitava, em surto de admirável estro poético em improviso, que lhe era peculiar, sobre o último verso do Ruy, o soneto:
‘Morre no prado a flor; a ave, nos ares,
Ao tiro morre de arcabuz certeiro;
Morre do dia o esplendido luzeiro
Morrem as vagas nos quietos mares.
Morrem os gostos, morrem os pesares;
Morre, oculto na terra, o vil dinheiro;
De encontro ao peito, que as apara inteiro,
Morrem as setas dos cruéis azares.
Morrem flamas de amor, morre a beldade;
Na virgem morre a cândida inocência;
Morre a pompa, o poder; morre a amizade;
E’ de morte sinônimo a existência;
No mundo é só perene a sã verdade;
Só não morre a virtude, a inteligência’.
– Um delírio de aplausos!
– E a prodigiosa memória permitiu-lhe reproduzir fielmente o soneto improvisado.
– Não dir-se-á impertinente ou não pertinente ao assunto a referência a certo folhetim do Urbano Duarte sobre o procedimento do Ruy, criança ainda, para com o Padre mestre Fiusa, como lhe chamavam.
Ministro do interior no governo Rodrigues Alves, por ocasião dessa publicação, o Dr. Felix Gaspar, amigo e afilhado do padre Fiusa, e que fora distinto aluno sob o atual diretor, a quem Ruy acaba de chamar de decano dos educadores baianos, enviou-a ao padrinho, que se achava ao Recife em companhia do bispo, conde D. Manuel Santos Pereira.
Estranhando as referências menos lisonjeiras, quer a um, quer a outro, escreveu o padre Fiusa a antigos alunos do Gymnasio, contemporâneos do Ruy, procurando saber se tinha conhecimento de semelhante incidente porque ele a contestava, declarando ter sido Ruy sempre discípulo seu muito dócil e aplicado.
Vindo, afinal, do Recife, ao autor destas linhas, o então monsenhor Fiusa, que assumira as funções de capelão e professor neste colégio, disse que todas as respostas afirmaram não haver memória de aludido incidente.
Não seria sem importância que o Ruy, se chegou ao seu conhecimento esse folhetim ou versão dele (monsenhor Fiusa não entretinha correspondência com antigo discípulo), dirimisse a questão, sob sua palavra, de toda a relevância no assunto.
Na quase impossibilidade de precisar, no decurso de meio século, à época em que Urbano Duarte entrou para o Gymnasio, estou em dúvida se foi ele, na realidade, colega ou contemporâneo de Ruy; se foi, era de tenra idade, pois o Urbano, que, em 1867, era ainda aluno, não era dos mais adiantados; sendo o Ruy, por esse tempo, acadêmico de direito, só por informação de outrem, podia o Urbano saber de ocorrência análoga, porventura desvirtuada, entre outro estudante e outro padre, que lecionasse no Gymnasio.
João Florencio Gomes”
* ‘Já que o outro foi o primeiro, para não ficar sozinho… emulação, não inveja’ (tradução automática pelo Google Tradutor).
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
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