Ao som de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, cantada a cappella pelas ruas do Centro Histórico de Salvador, a torcida holandesa encerrou a participação da Arena Fonte Nova na Copa do Mundo FIFA 2014. Desde a primeira fase do mundial, o Pelourinho e entorno se consolidaram como reduto de animados torcedores, que levaram um colorido especial à região tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. A bem-vinda invasão estrangeira foi responsável pelo fortalecimento do turismo no período e sinalizou o potencial de crescimento do setor. Naqueles que lutam pela efetivação do Plano de Reabilitação do Centro Antigo, a ocupação da área representa a esperança de reverter o processo de esvaziamento habitacional, além da possibilidade de revitalizar o comércio, qualificar os espaços culturais e requalificar a infraestrutura, para que também os baianos passem a valorizar o espaço.
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Dados do Fórum de Operadores Hoteleiros (FOHB) revelam que a ocupação hoteleira nas cidades-sede dos jogos foi de cerca de 90% nos dias de jogos e na véspera deles, sendo que Salvador foi responsável por um dos maiores índices. Sem dúvida, os jogos na Arena Fonte Nova trouxeram brasileiros e turistas de diversas nacionalidades e ajudaram a incrementar a economia local, que, nos últimos sete anos, perdeu cerca de 70 estabelecimentos comerciais. De acordo com a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur), além da grande movimentação nos hotéis, cerca de 70 mil turistas estrangeiros frequentaram bares, restaurantes, lojas e prestadores de serviço.
O diretor do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Salvador e Litoral Norte, Clarindo Silva (72), acredita no legado da Copa por causa da grande projeção da imagem do Brasil para o mundo. No Terreiro de Jesus há mais de 60 anos, ele é proprietário do Bar e Restaurante Cantina da Lua, ponto de referência quando se trata da luta pela preservação do Pelourinho. “Nós temos uma carga tributária muito alta e ainda temos que lidar com a sazonalidade. Trabalhamos no verão para pagar as dívidas do inverno. Eu já tive 49 funcionários, mas fui obrigado a fechar o primeiro andar e dispensar parte deles. Hoje, conto com 14 fixos e cinco temporários. Mas estamos em um momento de oxigenação. Com a Copa e a promoção do “São João no Pelô”, registramos um crescimento de 20% no movimento. Antes da ocupação pelos turistas, o Pelourinho estava abandonado, desprezado”.
Mas, a esperança pode facilmente se transformar em frustração, caso não sejam implantadas medidas para reverter a situação de abandono da área. O Centro Histórico, que já foi o principal ponto de efervescência cultural da cidade, hoje é desértico, perigoso, um oásis da droga e do crime. Um olhar mais atento sobre as ruas não deixa escapar a degradação de monumentos históricos, cujos degraus são utilizados como camas por pessoas em situação de rua, ou a transformação das praças em pontos comerciais pelos vendedores ambulantes. Ao que parece, falta ainda decisão política e consciência de valorização dos bens históricos por parte da população local.
Uma das causas desse abandono, explica o antropólogo Roberto Albergaria, se deve à cultura de valorização do novo e do externo. “A Bahia é o 6º destino turístico do Brasil. Mas, nós estamos acostumados a ver o lado negativo e não imaginamos o impacto que aquele espaço causa no turista, tanto pelo caráter histórico quanto pela ambiência popular. A Barra, onde foi organizado a Fan Fest da FIFA, pode ser qualquer lugar da Terra. O Pelourinho é único. Sua estrutura cênica é conhecida em todo o mundo, é a imagem de marca da Bahia. Mas, não prestigiamos o que é nosso. Sempre valorizamos o outro lado do mar. O baiano quer a modernagem, por isso a cidade antiga tem decaído”.
Clarindo Silva enfatiza que os baianos não vêm ao Centro Histórico, exceto em grandes eventos. Para ele, a cidade precisa adotar o Pelourinho e encará-lo como uma joia rara a ser lapidada. “Existe um estigma que coloca o Pelourinho como lugar de prostituição ou de criminalidade, mas, na verdade, é hoje uma das áreas mais bem policiadas da cidade. Mesmo com toda segurança, eu tenho o cuidado de reconhecer que não se pode andar 50m sem ser abordado por algum pedinte e isso tanto assusta quanto incomoda. Isso revela um grave problema social que precisamos enfrentar. Nossa juventude está sendo dizimada pelas drogas, pelo craque. Logo depois da Copa, vamos fazer um movimento para trazer as secretarias de ação social do estado e do município, representantes de entidades da sociedade civil, além de órgãos como o Conselho Tutelar e o Juizado de Menores, para uma ação conjunta que vai ajudar a fazer do Pelourinho novamente a alma da cidade”, revela o dirigente.
Para Alberto Prado (58), proprietário do Café Gourmet, um tradicional restaurante situado na Praça da Sé, oferecer bons serviços é um passo importante no movimento de revitalização da área. Nascido em uma família de comerciantes do Centro Histórico, ele está no local há quase 40 anos. Montou uma livraria, depois, uma tabacaria. Com a proibição do fumo em locais coletivos, aliado ao talento gastronômico, abriu o restaurante, que conquistou prestígio através do marketing boca a boca. “Quem vem à Bahia tem que conhecer o Centro Histórico, que é o nosso coração. Eu atendo muito bem a minha clientela fixa, composta principalmente pelos trabalhadores do entorno, mas, com a Copa, o movimento dobrou. A grande queixa dos clientes é sobre o estacionamento e a questão da abordagem, fruto do problema social que a cidade inteira atravessa”, afirma o empresário que é conhecido como Beto entre os clientes.
De acordo com o Relações Públicas de uma agência de viagens que funciona no Shopping do Pelô, Jorge Oliveira (36), o principal problema da região continua sendo a falta de segurança. Ele questiona o poder público e descrê do projeto de revitalização. “Em um evento como a Copa, o governo oferece um serviço que em dias normais é quase inexistente. O aquecimento do comércio e a ocupação do Pelourinho pelos nativos e visitantes dependem de segurança. Hoje, contamos com ruas desertas pela escassez de moradores”.
Já para Mab Boaventura, recepcionista do Bahia Café Hotel, situado na Praça da Sé, o movimento do comércio é prejudicado pela carência de serviços. “Nesse período, o número de hóspedes foi acima do esperado. Estivemos com 100% de ocupação desde o início do mundial. Mas, eles reclamam da baixa oferta de alimentos no local. Há poucos restaurantes em pleno funcionamento. Por outro lado, o público que frequenta os estádios quase não compra. Ele vem para farrear”, afirma.
Reduto de irreverentes torcidas
A capital baiana está no topo do ranking das prediletas entre os turistas que visitam as cidades-sede da Copa do Mundo. As partidas realizadas em Salvador trouxeram, primeiro, as torcidas da Espanha, Holanda, Alemanha e Portugal. Depois, Suíça, França, Bósnia e Irã. Na primeira semana de julho, a capital registrou um expressivo número de visitantes dos Estados Unidos, Bélgica, Costa Rica e o retorno da Holanda. Esta última seleção arrastou para cá aproximadamente sete mil torcedores. Os costa-riquenhos até apareceram no Pelourinho antes da partida do dia 5 de julho (sábado) contra a Holanda, mas foram engolidos pela onda laranja proporcionada pela “Orange Fans”, na última invasão holandesa à Salvador durante a Copa. O sucesso dos holandeses foi tão grande que a Cantina da Lua criou duas bebidas em sua homenagem: “nederinha” e “nederoska”, produzidas com laranja, ao invés do limão usado na tradicional caipirinha.
O cônsul honorário da Holanda em Salvador, Egbert Hein Bloemsma, explica a opção pelo Pelourinho. “Fazer festas em todas as copas é uma tradição holandesa. Em Salvador, nós tivemos outras opções de locais, mas preferimos o Terreiro de Jesus não apenas pelo critério da proximidade com o estádio, mas também pela oportunidade de conhecer o belíssimo conjunto arquitetônico colonial conhecido em todo mundo. Nesta edição, só não conseguimos promover a marcha em São Paulo, por causa da segurança pública, um problema que não tivemos em Salvador porque nos foi oferecida toda a estrutura necessária”.
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Os torcedores foram unânimes quando questionados sobre a receptividade e alegria do povo baiano. O agente penitenciário belga Eusebio Roggen (44), morador de Hasselt, se apaixonou pela atmosfera do Pelourinho. “Vim com alguns amigos porque era o ponto de encontro da torcida, mas não esperava uma gente tão amigável e um clima tão bom. Fiquei muito seguro e pretendo ficar no Brasil para acompanhar a final”. Outro belga que se rendeu aos encantos do local foi Jacques Gossuin (44), da cidade de Binche, que reúne no Carnaval cerca de trinta e dois mil moradores, em uma celebração que começou na Idade Média. “Eu adorei a comida, a alegria das pessoas, as praias… Voltarei para a Bélgica daqui a 25 dias, mas retorno para os jogos de 2016”.
Com os estadunidenses não foi diferente. Famílias inteiras circularam pelas ruas do Pelourinho, deslumbradas com a paisagem proporcionada por um dos maiores conjuntos arquitetônicos da América Latina. Moradora de Washington, D.C., Andrea, 25 anos, veio assistir ao jogo com os pais e aproveitou para conhecer o patrimônio histórico, assim como Maria, 24 anos, que mora no Texas e desembarcou em Salvador com um grupo de amigos, todos hospedados em um hotel no bairro da Pituba.
O subsecretário de Turismo da Bahia, Benedito Braga, destaca o trabalho realizado com todos os consulados para montar os receptivos. “Nós fazemos um trabalho de captação e promoção do destino Bahia e previmos a grande movimentação durante a Copa. Fizemos reuniões com a Secretaria de Segurança Pública para dar conforto aos torcedores que visitaram a área, que precisa de uma ação cojunta para contornar os problemas sociais”. Segundo ele, no prazo de um mês, será lançado um projeto de formação de guias mirins de turismo, para capacitar crianças carentes e ajudar a mudar a realidade local.
Mudança essa que passa pelo Plano de Reabilitação do Centro Antigo de Salvador, que está sendo executado pela Diretoria do Centro Antigo de Salvador (Dircas/Conder), para preservar e valorizar o patrimônio cultural, impulsionar as atividades econômicas e culturais da região, além de propiciar condições para a sua sustentabilidade. Uma das promessas do plano é o incentivo a moradias, com a esperança de que as habitações possam ajudar a resolver problemas como a economia local e a segurança. Nesse sentido, a nova perspectiva indica possibilidade de requalificação discutida desde os anos 80.
Segundo a diretora do Centro Antigo de Salvador, Beatriz Lima, em janeiro deste ano foram entregues 17 casarões para moradia. “Diante do processo de esvaziamento ocorrido nas últimas décadas na região, o plano prevê a recuperação dos imóveis em ruínas, subutilizados e terrenos vazios que não estejam cumprindo a função social da propriedade. 41 unidades foram destinadas aos servidores públicos estaduais, que passam a pagar um valor mensal, descontado em folha, pelo uso, e a garantia de preferência caso o imóvel seja colocado à venda pela Conder. Outras 63 novas moradias estão sendo utilizadas por antigos moradores da região. Precisamos habitar a área”, enfatiza a diretora.
Contudo, há mais de dez anos, o governo promete a finalização da 7ª Etapa, área que vem sendo restaurada para habitação. Na busca pelas razões para o tão esperado projeto de revitalização caminhar a passos lentos, o que se encontra é um horizonte misto de expectativa e readequação da gestão pública. Enquanto ações de reparo estão sendo postas em prática, a requalificação total da região, celeiro do nascedouro da cidade de Salvador, patrimônio da humanidade, ainda se apega a um evento pontual como tábua de salvação.