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O mordomo devotado não ouviu as três últimas palavras de Ruy

Luis Guilherme Pontes Tavares*

O livro Rui Barbosa na intimidade, escrito por Antônio Joaquim da Costa, que foi o mordomo na residência do jornalista, jurista, diplomata, filólogo e político baiano, foi publicado em 1949 (ano do centenário de nascimento do personagem), no Rio de Janeiro, pela Casa Rui Barbosa (convertida em fundação a partir da década de 1970). Do ponto de vista deste leitor, a obra surpreende tanto pelo texto, quanto pelo tratamento editorial dado ao produto e, também, por causa dos vários episódios relativos à Bahia.

O prefácio do livro é do escritor Luiz Viana Filho, biógrafo de Ruy Barbosa, que acentua que “no gênero [relato de mordomo sobre o patrão] é o presente trabalho cremos que o primeiro a ser editado no Brasil”. O prefaciador foi quem sugeriu, 15 anos antes do lançamento do livro, que Antônio Joaquim da Costa escrevesse sobre o convívio que teve com a família de Ruy.

A obra é dividida em pouco mais de 50 textos sucintos e bem escritos, um dos quais intitulado “As três últimas palavras…”, que transcrevo abaixo com outros três textos que distinguir entre os demais. Com 128 páginas, a obra é ilustrada e exibe, em cores, o brasão da família Barbosa de Oliveira, originária de Portugal. Impressa pela Gráfica Olímpica, do Rio de Janeiro, da edição “foram tirados 200 (duzentos) exemplares em papel Machine Ledger numerados, e rubricados pelo diretor [escritor Américo Jacobina Lacombe (1909-1993)] da Casa de Rui Barbosa”. Boa parte dos textos faz referência à Bahia, sobretudo aos périplos de Ruy pelo interior baiano durante as campanhas de 1910 e 1919 para Presidência da República.

Brasão (encartado entre as páginas 22 e 23 do livro “Rui Barbosa na Intimidade”) | Reprodução

Do Palácio para a Vila

A família de Ruy Barbosa conheceu Antônio Joaquim da Costa no Palácio do Catete, onde trabalhava. No final do Governo Afonso Penna (1906-1909), a convite do filho mais moço de Maria Augusta e Ruy Barbosa, João (1890-1947), Antônio, na altura com 29 anos, apresentou-se na residência da família, na Rua São Clemente, em Botafogo, para ali trabalhar. Seguiria ligado ao endereço por muitos anos após a morte de Ruy em 1923.

Pelos cálculos óbvios, Antônio Joaquim nasceu em 1880 e, em 1948, seguia ativo a ponto de escrever o seu livro Rui Barbosa na intimidade. Em 1909, quando foi admitido como empregado da família de Ruy Barbosa, Antônio Joaquim foi entrevistado por dona Maria Augusta e, no dia seguinte, apresentado ao marido dela, a quem ele só se referia como Conselheiro, título que Ruy herdou do o tempo do Império. No primeiro contato entre os dois, o Conselheiro deu a Antônio Joaquim a tarefa de cuidar dos livros dele. Outras tarefas, no entanto, foram agregadas ao longo do tempo.

A literatura sobre dona Maria Augusta, Ruy e família refere-se a Antônio Joaquim como mordomo e, também, como zelador. Fato é que, após a morte do Conselheiro, e a transformação da Vila no primeiro museu casa do Brasil, Antonio seguia ligado ao imóvel e lhe coube a zeladoria interina em 1937. Ele foi aposentado, nessa função, através da Lei 2108, de 23/11/1953, aprovada pelo Senado Federal. Eis quatro textos dele:

“A última rasteira de Pinheiro Machado

De cada lado da secretária de jacarandá, existente no Salão da Biblioteca, havia duas pequenas escadas das quais o Conselheiro se utilizava para arrumar e retirar os livros. Ainda havia uma escada-cadeira, de carvalho, mandada fazer por ele na Bahia. Nela Rui Barbosa quebrou a perna, surgindo o seguinte episódio pitoresco:

Em 15 de setembro de 1915, às 9 e ½ da manhã, estando pronto para assistir à missa de 7º dia em intensão do General Pinheiro Machado [o gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) foi senador da República], encontra-se Rui Barbosa no corredor com um amigo que vinha pedir-lhe um parecer. Escusou-se o Conselheiro no momento, alegando pressa, por estar na hora da missa, porém na volta o atenderia. Não se conformou com isto o amigo, e Rui Barbosa voltou à Biblioteca mal humorado. Tomando a escada-cadeira, subiu o Conselheiro com pressa e ao estender as mãos para apanhar o livro de que necessitava, perdeu o equilíbrio e caiu sobre um sofá, quebrando a tíbia da perna esquerda. Ao ouvir o barulho, todos corremos para ver o que havia acontecido. Rui Barbosa achava-se caído no chão, muito pálido.

Chamou-se imediatamente a Assistência, mas quem assistiu ao Conselheiro foi o professor Conde Paes Leme.

Passada a hora do pânico, já tudo calmo, disse Rui Barbosa em tom irônico:

– Foi a última rasteira que o Pinheiro me passou. Não quis que fosse à sua missa.

E assim Rui Barbosa ficou impossibilitado de ir às livrarias e ao cinema do qual era grande admirador, durante 70 dias.” (p. 30-31 da edição de 1949)

“Um episódio político

Entre diversos episódios humorísticos a que tive a honra de assistir na minha convivência com o saudoso Conselheiro, transcrevo este, passado entre Rui Barbosa e o Dr. Nilo Pessanha, então candidato à presidência da República.

Certa manhã, estando marcada uma entrevista com Rui Barbosa, em São Clemente, às 8 horas da manhã, encontrava-se o Conselheiro no salão da biblioteca, hoje sala Constituição, esperando Dr. Nilo Pessanha. À hora marcada, chegando o Dr. Nilo, foi imediatamente introduzido no salão da biblioteca. Como os Drs. Alfredo Rui e Batista Pereira ainda não tivessem chegado, permaneci, como era de hábito, perto do grande brasileiro.

Versou a entrevista sobre o apoio de Rui Barbosa à candidatura Seabra à vice-presidente, na chapa Nilo-Seabra. Depois dos rodeios políticos de praxe, pediu o Dr. Nilo Pessanha o apoio de Rui Barbosa para o Dr. Seabra, não só por ser baiano, como pela honra que daria à Bahia. O Conselheiro ouviu com atenção e em seguida respondeu que lamentava não poder aceitar a chapa pelos mesmos motivos que levaram o Dr. Seabra, em 1910, a negar apoio a Rui Barbosa à presidência da República e, como ele, Rui Barbosa, também era baiano. Dava, no entanto, liberdade a seus correligionários de escolher quem quisessem.

Saiu o Dr. Nilo Pessanha às 9 horas, acompanhando-o o Conselheiro até a porta. Às 10 horas chegou o Dr. Batista Pereira a quem Rui Barbosa leu uma carta a fim de ser por ele entregue, com urgência, ao Dr. Nilo Pessanha. Esta carta saiu publicada nos jornais da época e reproduzia a conferência entre os dois políticos.

Passaram-se os dias. E chegou a vez do Dr. Seabra… Tinha ele uma entrevista idêntica à do Dr. Nilo Pessanha. Veio com a mesma conversa de pedir apoio para a candidatura do Dr. Nilo. E o Conselheiro negou o seu apoio pelos mesmos motivos pelos quais o Dr. Nilo Pessanha, em 1910, lhe nega o seu apoio. Estava paga a dívida. Olho por olho, dente por dente. Coisas da política…” (p. 69-71)

“Coisas da vida….

A polidez era perfeita em Rui Barbosa.

Uma vez, chegando à Casa das Fazendas Pretas, antiga casa de modas, na Avenida, ponto de parada de seu carro, foi informado pelo Sr. Araújo, daquele estabelecimento, que Da. Maria Augusta tinha necessitado do carro, e por este motivo não podia mandar buscá-lo. Seguiu o Conselheiro a pé, até a Galeria Cruzeiro a fim de tomar o bonde que o conduzisse à sua residência. Ao e aproximar um elétrico, como o Conselheiro não estava certo se o mesmo passava na rua São Clemente, notando uma senhora parada, também à espera de condução, perguntou-lhe o Conselheiro:

– Minha Senhora, este bonde passa na rua São Clemente?

– Não sei dizer, senhor, eu também não sei ler! Disse a senhora acanhada.

À distância, um cavalheiro que assistia a cena, tendo reconhecido Rui Barbosa, aproximou-se, perguntando se precisava de alguma cousa.

E o Conselheiro risonho:

– Perguntei a esta senhora se aquele bonde passava na rua São Clemente e ela me respondeu que também não sabia ler.

O cavalheiro gozou com a resposta e mostrou ao Conselheiro o bonde Humaitá que vinha chegando”. (p. 72-73)

“As três últimas palavras…

No dia 27 de fevereiro [de 1923], Dona Maria Augusta mandou chamar Frei Celso, a fim de que Rui se confessasse. À cabeceira do Conselheiro encontrava-se o Dr. Correia de Lemos; levando um café para Dr. Lemos, perguntei se o Conselheiro também o desejava. Fez sinal que sim. Sai, e fui buscá-lo. Quando voltei, segurou a xícara, deu umas voltas com a colher, quis que o deitasse um pouco, pois estava sentado na cama, estendi-lhe as mãos para que se firmasse e ao procurar recostar na cama disse-me três palavras que não compreendi. O Dr. Correia de Lemos perguntou-me se tinha entendido o que o Conselheiro queria dizer. Disse-lhe que não. Disse-me o Dr. Lemos:

– Que pena, foram três palavras, as últimas, e não podemos saber.

E assim, a 1º de março de 1923, não podendo resistir aos padecimentos, deixou-nos para sempre Rui Barbosa.

Por uma coincidência que não nos é dado aprofundar, o relógio que havia trazido de Londres e que colocara na copa de sua casa, em São Clemente, parara às 8,45 da manhã, deixando marcada a hora em que Rui Barbosa expirou.

“A vida não tem mais do que duas portas; uma de entrada, pelo nascimento; outra de saída, pela morte. Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá furtar à entrada. Ninguém, desde que entrou, em lhe chegando o turno, se conseguirá evadir a saída”. [Ruy Barbosa]

Rui continuará entre nós. Será eterno, porque procurou ensinar-nos que, sem justiça e sem liberdade, um povo será incapaz de viver.” (p. 125-126)

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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

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