Por Luis Guilherme Pontes Tavares*
O livro Ruy Barbosa perante a História (Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1919) é uma prova disso. Ele estampa em 146 páginas o discurso proferido pelo político baiano Antonio Moniz Sodré de Aragão (1881-1940) no Teatro São João, em Salvador, na noite de 23 de agosto de 1919. O público lotou os 800 lugares para ouvir e aplaudir o orador desancar o jornalista, jurista e político Ruy Barbosa (1849-1923). O episódio revela muito bem o quão os baianos são plateia de coliseu.
Ruy Barbosa, naquele ano, faria 70 anos em 05 de novembro e a saúde exigia cuidados. Ele se empenhava, então, pela eleição do juiz federal Paulo Martins Fontes, seu contemporâneo, ao Governo do Estado da Bahia. O oponente era o então poderoso José Joaquim Seabra (1855-1942), que fora governador no período de 1912-1916 e permanecia influente e determinante na gestão de Antonio [Ferrão] Muniz [de Aragão] (1875-1931).
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Correligionário de J. J. Seabra, o orador da noite de 23 de agosto no Teatro São João fora convidado pela Comissão Executiva do Partido Democrata da Bahia. Impressiona a presença de tantas pessoas no evento, tantas que não couberam no teatro, mas permaneceram na vizinhança do prédio; impressiona tamanha assistência para ouvir longuíssimo discurso, de dezenas de páginas, sobre o que Ruy Barbosa fizera mais de 25 anos antes, quando, no governo provisório de Deodoro da Fonseca, fora ministro da Fazenda. Aos meus olhos, o orador cumpre a tarefa de tentar reduzir Ruy Barbosa a tudo com que a quase unanimidade dos brasileiros não concordava.
O livro e a nova edição dele – Li o exemplar da edição original de 1919 que pertenceu ao advogado e ruísta baiano Rubem Nogueira (1913-2010), doado por ele ao Museu Casa de Ruy Barbosa (MCRB). Sobre a doação e o exemplar tratarei mais adiante. Chamo a atenção para a novidade que é a edição fac-similar do livro em apreço. Lançada em 2019, pela editora inglesa Forgotten Book (em tradução livre: Livros Esquecidos), a publicação é em capa dura e custa 36 Euros, o equivalente (em 12out2021) a cerca de R$ 230,00, sem o frete.
Quanto à publicação de 1919, ela tem o selo da IOE, empresa pública criada quatro anos antes, tema de dois estudos que fiz, mas que não abarcaram o viés do seu uso para fins políticos. Fica, pois, a sugestão para os universitários! A página pré-textual V (numeração em números romanos) apresenta o livro deste modo (mantive a grafia da época):
“O ‘Theatro S. João’, mais do que repleto: – transborda. Gente por todos os lugares: nos corredores, na platéa, nas frisas, nos camarotes, estes com a lotação no duplo ou no triplo, do lado de fóra e, até, nas immediações do famoso e tradicional edificio. Às 19 horas e meia chega o Sr. Moniz Sodré. Na entrada é grande a agglomeração popular que acclama o ‘leader’ bahiano, emquanto a banda de musica rompe uma marcha de cumprimento. O conferencista dirige-se para o palco, onde o Sr. Frederico Costa, Presidente do Senado, ladeado pela Commissão Executiva do Partido Republicano Democrata da Bahia, promotora da conferencia, abre a sessão, designando uma comissão para conduzir á tribuna o orador. O Sr. Moniz Sodré, ao chegar ao proscenio, é recebido por prolongada salva de palmas, vivas e acclamações de toda a assistencia. S. Ex. começa a leitura de sua conferencia, entrecortada, a todo momento, de calorosos applausos.”
A argumentação do orador Moniz Sodré contra a atuação de Ruy Barbosa como o ministro da Fazenda que estreou a República parte da querela parlamentar que ocorreu no Senado entre Ruy e o colega gaúcho Ramiro Barcellos (1851-1916) na sessão de 12 de janeiro de 1892. O parlamentar pontua, com estardalhaço, equívocos que o ministro da Fazenda do Governo Provisório teria cometido.
Ele se serve, sobretudo, do livro Actas e actos do governo provisório: cópias authenticas dos protocollos das sessões secretas do Conselho de Ministros desde a proclamação da República até a organização do gabinete Lucena, acompanhadas de importantes revelações e documentos, do político e escritor maranhense [João] Dunshee de Abrantes [Moura] (1867-1941], publicado no Rio de Janeiro, pela Imprensa Nacional, em 1907.
O longo relato do orador Moniz Sodré causa perplexidade quando se imagina que centenas de pessoas foram ao Teatro São João ouvi-lo citar, por exemplo, a opinião do ministro mineiro Bernadino [José] de Campos [Junior] (1841-1915), que, ainda no final do século XIX ocupara a mesma pasta de Ruy Barbosa:
“O Brasil chegou ao estado de não poder mais supportar a oppressão que o asphyxia; attingiu o auge de crise e cumpre que se encontre o remédio. É a differença de cambio a formula do mal, é nella que concentram a acção destruidora todos os elementos adversos. Deve-se portanto, buscar o meio de subtrahir promptamente o paiz desse jugo mortifero. para que elle possa iniciar a processo da sua regeneração. No abatimento em que jaz nada poderá tentar e ha de cada vez mais rapidamente rolar pelo plano inclinado até profundezas insondaveis”. (Mantida a redação original. Quiçá o ministro Guedes leia isso!)
Este outro trecho do discurso do baiano Moniz Sodré (foi membro da Academia de Letras da Bahia – ALB) sentencia, sem misericórdia, o conterrâneo admirado e operante:
“Mas a verdade é que a respeito da sua gestão financeira ninguem se deixou enganar até hoje com todos esses artificios de uma eloquencia ardilosa e theatral. Todo o Brasil, felizmente, lhe tem feito plena justiça. Após a desgraçada experiencia do Governo Provisorio não houve neste paiz quem quizesse tomar a terrivel responsabilidade de entregar ás façanhas do seu genio um cargo qualquer de administração, governador ou ministro de Estado, ou Presidente da Republica, que constituiu sempre a idéa fixa e absorvente da sua morbida vaidade e insaciavel ambição. (Applausos)” (p. 66, mantida a redação original)
Coragem, baianos, olhemo-nos uns nos outros… podemos melhorar.
A raridade que pertenceu ao professor Rubem Nogueira – Em 06 de outubro de 2021, a Assembleia Geral da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), em reunião extraordinária, dentre outras deliberações, aprovou a criação da Medalha Rubem Nogueira a ser outorgada, em 2023, ano do centenário da morte de Ruy Barbosa, àqueles que contribuíram com a formação do acervo do MCRB. O professor, político, ruísta Rubem Nogueira não foi superado por nenhum outro no tocante à doação de livros para a instituição. Mesmo antes da inauguração do museu em 05 de novembro de 1949, ele já doava livros; em 1991, no entanto, ele doou, de uma só vez, 225 volumes.
Os livros integram a Coleção Rubem Nogueira da biblioteca do MCRB e estão identificados com o carimbo da oferta e a assinatura dele. Os livros proporcionam tanto a oportunidade de estudo sobre Ruy Barbosa como, também, de Rubem Nogueira, visto que deles se serviu para a construção de sua obra ruísta. O professor Nogueira, que foi membro da ALB, é autor, dentre outros, dos seguintes opúsculos e livros: “A presença de Rui no Direito”: conferência pronunciada no Salão Nobre da Reitoria (Salvador: UFBA, 1967); Presença de Ruy Barbosa no Direito (Braga (Portugal): Livraria Cruz, 1968); Rui Barbosa: constituinte (Salvador: s.e., 1988); Dois momentos decisivos na vida de Rui Barbosa (Brasília: Senado Federal, 1991); Rui Barbosa: 144 anos depois (Salvador: s.e., 1996); Rui Barbosa: combatente da legalidade (Rio de Janeiro: s.e., 1999). Colaborei, nesse último, com a editoração eletrônica; o livro foi patrocinado pela Copene e pela ALB e rodado na gráfica da Editora Record, no Rio de Janeiro.
Ruy Barbosa perante a História é obra que estudiosos de História, de Economia, de Comunicação, de Política do nosso país deveriam ler. A edição fac-similar produzida na Inglaterra talvez se explique pela provável demanda que deve ter sido identificada na web através das consultas que interessados no livro fizeram aos endereços eletrônicos de sebos (alfarrábios). Por certo os eventuais exemplares da publicação de 1919 tenham escasseado enquanto a demanda aumentava.
O exemplar que o professor Rubem Nogueira doou ao MCRB exibe na guarda além da assinatura dele e do carimbo da doação, duas outras informações: o carimbo da livraria e a anotação do professor de que lera o livro em 1942, no avião, em viagem entre São Paulo e Salvador. Na página 5, na margem externa, há o paratexto com que o ilustre leitor exprime a indignação com o discurso do orador Moniz Sodré.
Encerro com a frase do professor Rubem Nogueira que a empresária Mariana Lisboa, neta dele, em recente correspondência à ABI, recordou a fim de acentuar a relação do avô com a obra de Ruy; ele considerava que o jornalista, jurista, político, abolicionista e republicano baiano é “o personagem mais notório e menos conhecido” do Brasil.
Animemo-nos a conhecer Ruy Barbosa, de modo a cultivar sua memória com respeito e admiração.
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* Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É diretor da ABI.< [email protected]>
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