Por Zeca Peixoto*
Utopia e distopia sempre constituíram paradoxo que permeia a história da mídia. Esclarecer ou obnubilar os fatos, narrando-os a partir de interesses políticos e econômicos, constitui o ecossistema midiático desde que o alemão Johann Gutenberg inventou a prensa, ainda no século XV. No final da segunda década do século XXI, a Internet é a plataforma que dá prosseguimento a este enredo. Com uma ressalva: numa economia política da mídia totalmente modificada nos últimos 20 anos. A disputa das narrativas assumiu o status de ciberguerra, ou criptoguerra. E o site WikiLeaks é o principal player neste embate mundial.
Pela primeira vez na História um órgão de imprensa amedrontou os EUA e outras grandes potências. A prisão do fundador do site, o ciberativista australiano Julian Assange, ocorrida em Londres no último dia 11 de abril, foi a resposta do panóptico policialesco controlado pelos norte-americanos às denúncias do WikiLeaks.
Mediante farta documentação oficial, informações vazadas pelo site expuseram ações envolvendo o governo dos EUA com crimes de guerra, espionagens a chefes de estados, violentas agressões aos direitos humanos e interferências políticas em diversos locais do planeta, inclusive no Brasil.
O trabalho do WikiLeaks, entidade sem fins lucrativos, foi iniciado em 04 de outubro de 2006 na Islândia. Pouco tempo depois a base de operações foi transferida para Suécia. Seu modelo de atuação é o jornalismo colaborativo, por isso o termo “wiki”. Conforme o jornalista e sociólogo Ignácio Ramonet, autor do livro A explosão do jornalismo e editor-chefe do jornal Le Monde Diplomatic, o WikiLeaks “é o terreno da transparência”.
Ramonet sustenta que o site de Julian Assange e equipe demonstrou a distopia da grande imprensa como instituição que presumivelmente assegurava boa qualidade de informação a todos. “Ignorávamos praticamente tudo sobre questões fundamentais acerca das guerras do Iraque e Afeganistão e da diplomacia dos EUA”, exemplifica.
Por conta das suas atividades, Assange passou a ser perseguido. Viveu durante sete anos na embaixada do Equador em Londres, onde pediu asilo em 2012. Temia ser preso e extraditado para os EUA caso saísse do prédio. O ex-presidente do país, Rafael Correa, havia lhe dado cidadania equatoriana. Com as mudanças dos ventos políticos no Equador, o presidente que o sucedeu, Lenín Moreno, aliado de Donald Trump, ao arrepio da lei retirou a cidadania de Assange e autorizou a entrada da polícia inglesa na embaixada. Vale registrar que já recaia sobre o ativista a denúncia por parte da polícia sueca de um suposto estupro que ele cometera. Com a fragilidade das provas, as próprias autoridades do país arquivaram temporariamente o processo. Suspeita-se que a CIA esteja por detrás deste episódio.
Assange e muitos que atuam com ele se auto-definem como “cypherpunks”, movimento criado nos anos 90 que, embasado na cultura hacker, lança mão da criptografia e métodos similares para provocar mudanças sociais e políticas. Foi hackeando servidores do Pentágono e da CIA, e recebendo informações de colaboradores de diversos locais do mundo, a exemplo do então soldado estadunidense Bradley Manning, hoje Chelsea Manning, que o WikiLeaks provocou um terremoto na geopolítica internacional. “Os hackers são e serão cada vez mais importantes nas disputas entre concentração e distribuição do poder”, afirmou Julian Assange em seu livro WikiLeaks .
Um dos primeiros documentos vazados foi o vídeo Collateral Murder, que registra o ataque de dois helicópteros apaches a civis iraquianos. A ação resultou em 12 mortes. Entre as vítimas, dois jornalistas da agência Reuters. Era o ano de 2010. A repercussão internacional foi intensa. Outro vazamento foi a cópia de um manual de instruções para tratamento de prisioneiros no campo Delta, na prisão militar estadunidense de Guantánamo. Tratava-se de um tutorial de torturas. Em julho desse mesmo ano o WikiLeaks divulgou 91 mil documentos secretos que detalhavam a morte de milhares de civis na guerra do Afeganistão.
No que diz respeito ao Brasil, em 2015 o site de Assange vazou que a NSA (National Security Agency), ligada à CIA, havia espionado a ex-presidenta Dilma Rousseff e a Petrobrás. Outros documentos informavam que os EUA se beneficiariam com um golpe de estado no Brasil, o que facilitaria a privatização das jazidas de pré-sal. Estes mesmos documentos faziam ligações entre José Serra e a petrolífera Chevron. Posteriormente, foram divulgados contatos entre o ex-presidente Michel Temer e autoridades estadunidenses. De acordo com o jornalista Breno Altman, os arquivos indicavam que Temer estaria à frente das negociações que levaram Dilma Rousseff a ser deposta em 2016 “num golpe de estado”. Altman também assegura que o WikiLeaks dá indícios de conexões entre integrantes da Operação Lava Jato e a inteligência norte-americana.
Nem mesmo aliados dos EUA escaparam à espionagem da NSA. A primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, também foi alvo da bisbilhotagem. O que gerou mal-estar diplomático entre os dois países.
Há um dado interessante acerca da atuação do WikiLeaks. Mesmo conduzindo trabalho de denúncia que, temperatura normal e pressão, jamais atrairia a maior parte da grande imprensa corporativa, importantes órgãos chegaram a atuar em parceria com Assange, a exemplo do El País, Le Monde, Der Spiegel, The Guardian e The New York Times. O objetivo era divulgar conteúdos secretos da diplomacia estadunidense. Esta postura, no nosso entendimento, foi um ato de rendição da chamada imprensa tradicional às ações investigativas do WikiLeaks.
A situação de Assange é delicada. Preso sob custódia da polícia inglesa, ele aguarda como possível desfecho sua extradição para os EUA, que o acusa de conspiração e ciberpirataria. Todavia, esta decisão vai depender da postura do Reino Unido.
O caso WikiLeaks reflete o momento distópico que o mundo atravessa. A Internet, concebida inicialmente como fator de liberdade e avanço civilizatório, se encontra sob o domínio de grandes corporações e estados autoritários. Sua atuação tem se inclinado muito mais em controlar drones não tripulados para lançar bombas do que constituir coletivos que pensem e empreendam um mundo mais livre e igualitário. O WikiLeaks quixotescamente vai travando a ciberguerra pela liberdade.
*Zeca Peixoto é jornalista e mestre em História Social.
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).