No dia 15 de março de 1972, o Brasil se despedia de uma das mais potentes vozes da luta pela justiça social: o jornalista, escritor, político e advogado Cosme de Farias, “O Advogado dos Pobres”. Este ano, uma série de homenagens já foram realizadas para lembrar os 50 anos de sua morte. Na noite de hoje (19/10), às 18:30, a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em parceria com o Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, abordarpa em palestra, no Auditório B do PAF 1 (Campus Ondina UFBA), o filme “Quitanda da Liberdade”.
O evento “Cosme de Farias – o advogado dos pobres” faz parte das apresentações programadas no componente curricular OPB, ministrado pela professora Mariângela Nascimento, docente do NEIM/UFBA.
Depois da exibição será realizada uma palestra com os convidados Marcelo Oliveira (Cineasta/ Documentarista Autor e diretor do documentário “Quitanda da Liberdade”), Dra. Mônica Celestino (Jornalista pela UFBA, autora da tese “As Trincheiras do Major, sobre Cosme de Farias), Prof. Dr. Alfredo Eurico R. Matta (Coordenador do curso de história UNEB/UAB, professor do programa de pós-graduação em educação e contemporaneidades).
Cosme de Farias nasceu no subúrbio distante de Paripe. Sua formação foi apenas do curso primário, mas tornou-se advogado provisionado e passou a vida defendendo milhares de pessoas pobres. Em 1915 fundou a “Liga Baiana contra o Analfabetismo “, instituição que funcionou até a década de 1970, mantendo escolas para a população mais pobre, da capital e de algumas outras cidades baianas.
Iniciou-se na carreira política eleito deputado estadual, em 1914, e por várias legislaturas seguintes. Foi, também, vereador por diversos mandatos. Quando morreu, em 1972, ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa da Bahia, sendo à época o mais velho parlamentar do mundo. Foi patenteado “Major” pela Guarda Nacional (1909).
Serviço
“Cosme de Farias – o advogado dos pobres” Data – 19/10/2022 Hora – 18:30 Local – Auditório B do PAF 1 – Campus Ondina UFBA
O livro A morte de Cosme de Farias. O benfeitor da pobreza, do poeta alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante (1919-1987), é o 29º da série Literatura de Cordel publicado pela Tipografia e Livraria Baiana. Foi publicado logo após a morte do jornalista, advogado e político baiano Cosme de Farias, ocorrida em 15 de março de 1972. O autor, na quarta estrofe da primeira do folheto de oito páginas descreve a reação popular à perda do benfeitor:
“Era o sino badalando/ E o povo no sol ardendo/ Em soluços caminhando/ Cada um em si dizendo:/ ‘Ó meu Deus, Cosme morreu/ Outro igual jamais nasceu/ Morre pobre, só se vendo!…’”
Há, por certo, exemplar desse folheto em Salvador, mas localizei cópia no Acervo Raymond Cantel do Centre de Recherches Latino-Americaines da Université de Poitiers, localizada no centro oeste da França. O acervo do professor Cantel (1914-1986), com mais de quatro mil folhetos brasileiros, portugueses e espanhóis, integra a Biblioteca Virtual Cordel- https://cordel.edel.univ-poitiers.fr/collections/show/3 . Rodolfo Cavalcante, na página sete de A morte de Cosme de Farias recomenda, como se estivesse lendo o testamento deixado pelo falecido:
“Que a infeliz meretriz/ Deixe seu caminho errado/ Pois a mulher sendo honesta/ Tem futuro iluminado,/ Meretriz foi Madalena/ Mas tornou-se uma açucena/ Perante o LÍRIO ORVALHADO. “Que os trovadores se mirem/ Hoje em Cosme de Farias/ Lutando por nobres causas/ Através das poesias,/ Pois a poesia sã/ É o ASTRO-REI da manhã/ Que surge todos os dias! “Que os políticos também/ Sigam ao Cosme os seus feitos,/ Em defesa dos humildes/ Desde que sejam eleitos/ Para servirem ao Povo,/ Pois é o Roteiro novo/ Dos homens que são direitos! “Que a pobreza também/ Se mire no predicado/ Do Major Cosme Farias/ Home[m] simples, denodado, Que não mostrava fraqueza./ Seu estado de pobreza/ Deu-lhe o nome abnegado!”
O poeta encerra o folheto com reverências ao falecido e o elogio de seu exemplo ao longo de quase 97 anos de vida:
“Quinze de março hoje é/ Data jamais esquecida/ Porque Cosme de Farias/ Foi a mais sublime vida/ Pelos seus valores nobres/ Em benefício dos pobres/ E da gente desvalida! “Aceita Cosme estes versos/ De um humilde trovador/ Como tu foste na vida/ O mais divino cantor,/ Aceitas a homenagem/ Nesta singela mensagem/ Que te escrevi com amor! “É impossível, leitores,/ Num folheto de Cordel/ Dizer quem foi Major Cosme/ Homem bondoso e fiel,/ Que tudo fez, em verdade,/ Pra ser útil a humanidade/ E ao nosso Deus de Israel! “Silêncio Bahia, os sinos/ Badalam nas Catedrais…/ É teu filho estremecido/ Que partiu p’ra nunca mais,/ Deixando a eterna lembrança/ No coração da criança/ Para um futuro de paz!”
Aprendi com a professora baiana Jerusa Pires Ferreira (1938-2019), de quem fui aluno em pós na ECA/USP, no final da década de 1980, a relevância da literatura de cordel. Por isso, a localização e adoção, como fonte, do folheto de Rodolfo Coelho Cavalcanti, autor, também, do Cosme de Farias: o defensor do povo baiano, obra de 1945 (http://docvirt.com/docreader.net/CordelFCRB/47701, link de exemplar da coleção de cordéis da FCRB). Encontrei a referência na página de editora europeia que anuncia o livro A construção de Cosme de Farias na narrativa poética de Rodolfo Coelho Cavalcante, da advogada Regina Costa Farias, publicado em 2018. O exemplar é oferecido por mais de R$ 350,00.
Os últimos dias de Cosme de Farias – A leitura do folheto de cordel A morte de Cosme de Farias. O benfeitor da pobreza, de Rodolfo Coelho Cavalcanti, reacendeu minha dúvida sobre a data exata do falecimento do Major. Por isso fui consultar, na hemeroteca do IGHB, as edições de março de 1972 de quatro jornais da capital que circulavam na época: DN (Diário de Notícias), Jornal da Bahia e A Tarde e Tribuna da Bahia. Não há, dúvida: a informação de Coelho Cavalcante está correta: Cosme de Farias faleceu às 4h40 de 15 de março de 1972 no Hospital Português.
Tal informação nos parecia inverídica porque o cortejo féretro foi iniciado às 16h do mesmo dia, portanto 12 horas após o passamento. Vamos então repassar o que ocorreu com Cosme de Farias entre 10 e 15 de março. Conforme nos relembrou o blog do jornalista Reynivaldo Brito, foi ele quem obteve, em 10mar1972 (uma sexta-feira), para A Tarde, a última entrevista que o Major, já moribundo e internado no Hospital Português, concedeu.
No domingo, 12, o então deputado estadual Cosme de Farias acordou e reclamou do barulho na vizinhança do Hospital. Mostrava-se bem disposto e o médico Luiz Vieira Lima (DN, 14mar1972, p. 3) deu-lhe alta. Foi para casa e, nesse mesmo dia, houve o revés do quadro e ele foi conduzido pela a unidade do Sames (Serviço de Assistência Médica Salvador), localizada na Ladeira da Fonte das Pedras (Jornal da Bahia, 14mar1972, 1ª página). Dali foi reconduzido ao Hospital Português.
O quadro de saúde dele se agravou e, na véspera (14mar1972) da morte, os médicos Jaime Câmara e Jaime Viana constataram e diagnosticaram que Cosme de Farias sofrera trombose cerebral; às 21h50, o capelão do Hospital Português ministrou a Extrema Unção no paciente, que ocupava o quarto 52 (Tribuna da Bahia, 15mar1972, 1ª página). O sofrimento prosseguiu até o último suspiro às 4h40 da madrugada de quarta-feira (Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia, 15mar1972, 1ª página). Do Hospital, após os procedimentos legais para o sepultamento, o corpo seguiu para a Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus (Pelourinho), onde Cosme de Farias mantinha o modesto e improvisado escritório de advocacia.
A cobertura da morte do criador da Liga Bahiana contra o Analfabetismo cobriu a primeira página da edição de 15 de março do vespertino A Tarde, o mesmo acontecendo com a edição de 16 de março do matutino Jornal daBahia. A coleção do DN que consultei não tem o exemplar de 16. Repasso alguns registros que li a respeito do sepultamento: o povo – mais de 100 mil pessoas – dispensou o carro funerário e conduziu, revezando braços fortes, o caixão desde o Terreiro até o Cemitério Quinta dos Lázaros. O cortejo teve início às 16h e o trajeto foi cumprido em mais de três horas. A senhora Railda Araci Pitanga, que cuidou de Cosme de Farias desde o falecimento de Dona Semíramis, esposa dele, ocorrido oito anos antes, esteve ao lado do féretro. No mesmo dia, o Governo do Estado inaugurava a Estrada do Feijão (BA 052).
Os restos mortais do jornalista, advogado e político Cosme de Farias estão sepultados, conforme A Tarde (16mar1972, p. 3), “na cova número um da quadra de Nossa Senhora do Pilar, no Cemitério Geral de Quinta dos Lázaros, pertencente à Secretaria da Saúde [do Estado da Bahia]”. Dessa edição do jornal, destaco, para encerrar, o trecho final da crônica “A Bahia de luto” (página 4), do escritor sergipano Mário Cabral (1914-2009):
“Até os noventa anos nunca foi ao médico. Gostava de cachaça com mocotó e era doido por um vinho Clarete ao almoço e uma cerveja Brahma, casco escuro, ao cair da tarde. Quando gripado a cura vinha logo, depois de três doses de aguardente com vermute. Este foi o Cosme de Farias que toda a Bahia conheceu e admirou. Bom, simples, humano, com o seu escritório de advocacia chamado “Quitanda da Liberdade”, deputado, jornalista, vereador, major da Guarda Nacional, patente que os amigos lhe arranjaram pelo preço de trinta e cinco mil Réis. Para falar de Cosme de Farias seria necessário escrever um livro. Que o façam, sem demora, aqueles que o conheceram mais de perto, a sua vida e a sua obra. A Bahia está de luto. Porque morreu, na verdade, um dos seus maiores filhos! O homem que foi um Paladino. Um Apóstolo. Quase diria que foi um Santo… Aqui ficam estas palavras como um preito de justiça. E de saudade, também. Nada mais posso dizer…”
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).
Exatamente há 50 anos, no dia 15 de março de 1972, o Brasil se despedia de uma das mais potentes vozes da luta pela justiça social: o jornalista, escritor, político e advogado Cosme de Farias, ‘Anjo da guarda dos excluídos’. A Associação Bahiana de Imprensa (ABI) dedicou a manhã desta segunda-feira (14) para celebrar a trajetória desse importante personagem da nossa história. Em cerimônia realizada no auditório da entidade, jornalistas, pesquisadores e representantes de instituições relacionadas a Cosme de Farias compartilharam depoimentos e relembraram as razões que tornam tão especial o seu legado.
Para o presidente da ABI, Ernesto Marques, o evento abriu uma sequência de iniciativas com o mesmo propósito de trazer Cosme de Farias para os nossos dias, atualizando suas lutas, “considerando que as violências das desigualdades herdeiras da escravidão que mobilizaram o Cosme cidadão-ativista, político, jornalista e advogado. Estas mesmas feridas atravessam séculos e estão aqui, bem presentes”, refletiu o jornalista, no discurso de abertura da cerimônia. “Ele combateu muitos bons combates tendo a palavra como arma forte, a serviço de suas causas: as lutas por liberdades, por justiça e contra o analfabetismo. Quem se enganar com a sua fragilidade aparente descobre um gladiador em Lama e Sangue [1.ed. Salvador: e.a., 1926]”, disse Marques.
Como parte das homenagens, o cantor Rallie apresentou a inédita canção “A imprensa tem papel”, um samba que enaltece a atuação dos trabalhadores da notícia. “A verdade dos fatos buscar/ Na imprensa, é essencial dever./ E o interesse público mirar/ Noticiando, doa quem doer”, diz trecho da música.
Na sequência, ele convidou o ator Dody Só para interpretar a letra do “Hino dos Jornalistas”, escrito por Cosme de Farias e musicado por João Antônio Wanderley, o regente que dá nome à Banda de Música Maestro Wanderley da Polícia Militar da Bahia. A partir das partituras do Maestro Wanderley, o maestro Luã Almeida, titular da banda de Rallie, produziu o instrumental que ambientou a interpretação de Dody Só. “Funcionou como uma música de fundo e colocamos uma percussão em cima. Ficou com uma força regional, mantendo o tradicional e o samba criou a contemporaneidade”, explica Rallie.
A palestra ficou por conta da jornalista e doutora em História, Mônica Celestino, autora da primeira biografia publicada sobre Cosme. Sua pesquisa sobre o advogado inicia com uma reportagem para o jornal Correio* e a partir daí ela se aprofunda na relação de Cosme com o contexto histórico da Bahia dos séculos XIX e XX. “Cosme de Farias era um humanista por natureza e relembrá-lo, saudá-lo, trazer de volta os seus princípios e ideias é oportuno em um momento em que a gente tem crise de valores, contestação de direitos e necessidade de garantir os direitos humanos e sociais em todo o Brasil”, afirmou a jornalista.
A série de depoimentos da manhã surgiu de um lugar especial: a memória afetiva dos convidados que foram, todos a seu modo, ajudados por Cosme. Talvez ninguém possa falar melhor sobre isso que a guia turística Creusa Carqueija, uma das netas do major. Cosme, que não teve filhos, deixou seus descendentes através dos apadrinhamentos que fazia com várias crianças. Creusa veio para Salvador ainda criança, como retirante, junto com sua família. Sem lugar para morar, todos dormiam nas ruas da cidade, até que a mãe foi avisada de que podia buscar a ajuda de Cosme. O político foi responsável por conseguir vagas em um internato para os irmãos de Creusa e por lhe ensinar uma lição de vida de um modo muito simples.
Questionada se sabia ler, a menina de prontidão puxou a cartilha do ABC do major e leu as lições com destreza. “Eu disse: ‘Eu sei ler. Agora me dê um queimado’. Ele disse que ia me dar uma coisa de que gostava muito, cortou uma fatia de queijo Palmira e um pedaço de goiabada cascão. Botou um pedaço na boca e botou outro na minha. Ali, aprendi que a vida podia ser doce e que não precisava passar o resto da minha vida numa fonte pública para tomar um banho, nem dormindo na rua coberta de papelão”, recordou Carqueija.
O jornalista e agitador cultural Clarindo Silva lembrou de um tempo em que mal possuía condições de estudo. Foi das mãos do próprio major que ele recebeu a Cartilha do ABC, distribuídas para funcionar como apoio para a alfabetização de crianças. “Aquilo me tocou profundamente”, disse, emocionado. “Esse homem é um revolucionário. Comecei a acompanhá-lo em todos os lugares, inclusive em algumas audiências. O discurso dele era extraordinário, tocava na gente. Ele tinha propósito social”.
Clarindo criticou a falta de ações voltadas para se fazer recordar a memória de Cosme e parabenizou a iniciativa das instituições reunidas no evento. “Um evento como esse serve para popularizar e mostrar à sociedade a importância daquele que, pra mim, foi uma das maiores figuras do estado da Bahia”, completou.
O professor Alfredo Matta concorda. Ele conta que Cosme, junto com seu avô Edgard Matta e Dorival Passos, formou o que se chamava de “Trindade de Ouro” do Júri da Bahia. Hoje, Matta se sente um herdeiro da relação próxima que esses advogados possuíram, mas sua admiração pela figura de Cosme vai além disso. “É um dos grandes líderes do início da luta antirracista que a Bahia tem, talvez do Brasil. Então como é que a gente pode deixar de falar de Cosme? Ele tem que ser lembrado porque a luta não acabou”, afirmou.
Assim como Mônica, o cineasta Marcelo Oliveira foi um dos que já narrou a vida do major, mas dessa vez em celuloide, no documentário “Quitanda da Liberdade”, cujo teaser foi exibido no evento. “Qualquer pessoa que fizer uma investigação sobre Cosme vai desenvolver um trabalho fantástico e vai se emocionar”, garante. Questionado sobre o que representava para ele aquele momento de celebração da figura do político, Oliveira aproveitou para endossar a importância que é manter viva a memória de Cosme de Farias. “[O cinquentenário] Representa a história de uma personalidade excepcional, que é a do major Cosme de Farias. E é mais uma maneira de ele estar sempre presente, sempre vivo na nossa comunidade. O velho Cosme é o exemplo de um grande baiano”.
Também prestigiaram o evento o fotojornalista Anízio Carvalho, a professora Cybele Amado, diretora-geral do Instituto Anísio Teixeira; a defensora pública Cynara Fernandes; o vereador e professor Silvio Humberto, representante da Câmara Municipal de Salvador (CMS); a arquiteta Milena Tavares, diretora técnica da Fundação Gregório de Matos (FGM); o advogado Eduardo Rodrigues, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia (OAB Bahia); o jornalista Alberto Freitas, representando a Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA); e a Fundação Pedro Calmon/Secult.
Confira outras programações sobre o cinquentenário da morte de Cosme de Farias:
Dia: 15/03 – Missa Solene
Horário: 08h Local: Igreja do São Francisco Endereço: Largo do Cruzeiro de São Francisco, S/N Realização: Igreja e Convento do São Francisco
Exposição – O Rábula da Democracia e Alfabetismo
Abertura: 10h00 Local: Centro Cultural da Câmara Vereador Manuel Querino Período: 16/03 a 16/04 Realização: Câmara dos Vereadores
Dia: 16/03 (quarta-feira) Mesa redonda: Contos e Feitos de Cosme de Farias
Debatedores: Jair Cardoso, Marcelo Oliveira, Clarindo Silva Mediadora: Mônica Celestino Local: Auditório do Centro de Cultura da Câmara Endereço: Praça Thomé de Souza, s/n Horário: 09h30
Realização: Câmara dos Vereadores
Homenagem a Cosme de Farias
Local: Salão Nobre da Ordem dos Advogados da Bahia – OAB End.: Rua Portão da Piedade, 16 – Dois de Julho Horário: 14h Realização: Ordem dos Advogados da Bahia
O jornalista, advogado, servidor público e político baiano Cosme de Farias (1875-1972) ficou ainda maior na minha vida por causa de um trote que recebi após a publicação, há 22 anos, de artigo sobre seu livro Lama & sangue (1.ed. Salvador: e.a., 1926). Essa lembrança se acentuou nos dias atuais por causa da proximidade do 14 de março, data em que a Associação Bahiana de Imprensa (ABI), assim como outras instituições, o homenageará devido à passagem do cinquentenário de sua morte. Vou contar tim-tim por tim-tim o que ocorreu em 2000.
No final de outubro daquele ano, encaminhei ao editor do caderno “Cultural” de A Tarde, jornalista e professor Florisvaldo Mattos, as três laudas do artigo “Biografia de Cosme de Farias”. Em 11 de novembro, portanto dias depois da minha remessa, o artigo, na íntegra, foi publicado (página 2 e parte da página 3) sob novo título: “Ataques a Góes Calmon”. Ao texto, acrescentou-se o box intitulado “Fotógrafo do povo”, em que agradecia a cessão de retrato do biografado pelo amável e venerado profissional Anizio Carvalho, agora com 92 anos (completados no dia 23 de fevereiro).
Em dia posterior à publicação, no início da noite, alguém (quem?) ligou para o nosso número de telefone fixo e estabeleceu-se o seguinte e constrangedor diálogo:
– É aí que mora o filho da p* do Luis Guilherme?
– Quem está falando?
– Li seu artigo n’A Tarde, seu filho da p*.
Lembro que desliguei. Em seguida, especulei sobre quem poderia ter levantado meu número de telefone pessoal e ligado, movido pelo furibundo propósito de derramar sobre o receptor sua ácida e massacrante ira. Quem? Algum parente do ex-governador e banqueiro Francisco Marques de Góes Calmon (1874-1932)?
Enfim, pouco importa, até porque o desrespeitoso me situou como partidário de Cosme de Farias e não errou de que lado me encontraria!
Pescoço e colarinho – Nas lembranças mais recuadas que tenho de Cosme de Farias, o vejo no alto de caminhãozinho a divulgar a Liga Bahiana contra o Analfabetismo. Ele repetia isso, até o início da década de 1970, nos desfiles cívicos do Dois de Julho e do Sete de Setembro. O público o aplaudia, enquanto, no asfalto, amigos dele distribuíam exemplares da Cartilha do ABI. Mais adiante, em 1971, o vi de perto no térreo do Edifício Ranulpho Oliveira, enquanto esperávamos o elevador. Ele, deputado estadual; eu, funcionário da Assembleia Legislativa que, então, funcionava no prédio-sede da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), vizinho à Praça da Sé.
Ver Cosme de Farias, em 1971, de tão perto, permitiu constatar que o colarinho da camisa dele não era justo e isso permitia que, na altura dos 95 anos, faltasse pescoço para preencher o traje. Recordo de também tê-lo visto no escritório improvisado que mantinha num dos acessos da Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus, e num restaurante da Rua Alfredo Brito, no Pelourinho, almoçando e bebendo cerveja. O Pelô era o território do seu dia-a-dia e era ali que atendia as demandas populares que resolvia junto aos três poderes.
Em finais da década de 1990, 18 anos após a morte dele, voltei a encontrar o jornalista Cosme de Farias na condição de colega do gráfico e editor Arthur Arezio da Fonseca (1873-1940) na Imprensa Oficial do Estado (IOE) e na Associação Typographica Bahiana (ATB). Constatei esse vínculo quando pesquisava para sustentar a tese “Nome para compor em caixa alta: ARTHUR AREZIO DA FONSECA”, que defendi na FFLCH/USP em 2000.
Mais adiante, em 2007, ainda no âmbito acadêmico, auxiliei na edição e publicação do livro Cosme de Farias, sexto volume da Coleção Perfil do Parlamentar da Bahia, criada pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. O livro da professora Mônica Celestino resume a dissertação “Réus, analfabetos, trabalhadores e um major: a inserção social e política do parlamentar Cosme de Farias”, defendida pela então mestranda em 2005.
Para quem, por ventura, tem poucas informações sobre Cosme de Farias, ofereço o breve perfil que acompanhava o texto que encaminhei ao A Tarde em outubro de 2000:
“Fiscal externo da Recebedoria das Rendas do Estado, jornalista e rábula, Cosme de Farias (02.04.1875-15.03.1972) não era militar; a patente de major foi adquirida da extinta Guarda Nacional. Ele foi colega de Arthur Arezio no Jornal de Notícias (1894) e na IOE, onde esteve à disposição nos anos de 1930 e 1940. Era sócio honorário da Associação Typographica Bahiana. Orador cívico prestigiado pelo povo humilde de Salvador, foi deputado estadual nos anos de 1910 e, outra vez, de janeiro de 1971 até a sua morte. Cosme de Farias criou em 1915 a Liga Bahiana contra o Analfabetismo, através da qual distribuiu milhares de cartilhas do ABC.”
Lama & Sangue – Li o exemplar da primeira edição na então Biblioteca Ruy Barbosa da Associação dos Empregados no Comércio do Estado da Bahia (acervo de mais de 10 mil volumes). É necessário lembrar que essa biblioteca desapareceu no bojo da comercialização de imóveis da Rua Chile. O prédio da Associação, também denominado Palacete Tira-Chapéu, prossegue em obras para receber cerca de oito restaurantes temáticos. Apreciaria reencontrar aquele volume que me rendeu mais identificação com Cosme de Farias. Da resenha que escrevi em 2000, seguem mais adiante alguns parágrafos relativos aos capítulos do livro.
Antes desses anunciados parágrafos, registro que há, desde 2018, a 2ª edição de Lama & Sangue. Veio a público com o selo editorial da EDUFBA e prólogo, introdução e notas do advogado Bruno Rodrigues de Lima, paulista formado pela UNEB e pós-graduado na Unicamp, na UnB e no Max-Planck-Institut (Alemanha), com prefácio da professora doutora Wlamyra Albuquerque, da FFCH/UFBA, e apresentação do advogado Adailton Pires Costa, na ocasião cursando doutorado na UFSC. Desconheço as tratativas para a publicação da obra, tendo em vista que ela ainda não caíra em domínio público, o que só ocorrerá em 2042. De todo modo, louve-se a iniciativa.
Vamos, pois, ao resultado da leitura que fiz em 2000 em exemplar da 1ª edição:
“O prefácio, ‘Vômito negro’, é do jurista Carlos Ribeiro. [O livro] tem 21 capítulos e fotografias de políticos e correligionários de Seabra que foram perseguidos por Góes Calmon. O tom geral é o mesmo que se lê na página 48: ‘A Bahia, em tempo algum, teve um governador tão cobarde e tão perverso como o tristemente celebre bacharel Francisco Marques de Góes Calmon que pelo nome não se perca…’
“‘Na Força Pública’ (primeiro capítulo), o autor denuncia: dias após a posse, Góes Calmon demitiu 40 oficiais simpatizantes de Seabra. No segundo capítulo, ‘De foice em punho’, outra denúncia, a demissão do diretor da Biblioteca Pública, ex-deputado federal Francisco Luiz da Costa Drummond, que, por isso, teria morrido ‘victima de traumatismo moral’. No terceiro capítulo, ‘Vingança de Pyrrho’, transcreve o artigo ‘A casa de loucos’, publicado no Correio do Povo (27.06.1924), assinado por José Vicente, mas atribuído por Cosme de Farias ao jornalista Israel Ribeiro. A propósito, Ribeiro publicou em 1926 o livro Minhas prisões, no qual não reconhece a autoria.
“Os capítulos 4 e 5, ‘Um retrato: mysticismo e cangaço’ e ‘A sanguera de Lençoes’, tratam da luta de Góes Calmon contra o poder do coronel Horácio de Mattos na Chapada Diamantina. Na versão de Cosme de Farias, Mattos ganha. Após o banho de sangue nos comandados do tenente coronel PM João da Motta Coelho, que o atacaram, Horácio de Mattos foi nomeado intendente. No capítulo 6, ‘Nas mãos de bandidos’, o autor denuncia que a PM não prestou homenagem póstuma ao tenente coronel Motta Coelho, morto em 17 de fevereiro de 1925 em Lençóis.
“Em ‘Mystificador & mystificações’, sétimo capítulo de Lama & sangue, Cosme de Farias denuncia a propaganda enganosa do governo, a exemplo da estrada Muritiba-Castro Alves, festivamente inaugurada, mas que era apenas para carroças. Em ‘Usurpador de votos & magarefe da lei’, oitavo capítulo, salienta fraudes eleitorais em Jaguaquara (11.11.1923) e Salvador (01.02.1925), sendo que nessa ele próprio foi prejudicado. No capítulo nono, ‘Outras victimas’, detalha como se deu a prisão do jornalista e ex-funcionário do Tribunal de Contas Israel Ribeiro. O capítulo 10, ‘Folha negra’, relaciona os nomes dos que Cosme de Farias considerava traidores de J. J. Seabra.
“No 11º capítulo, ‘Mais uma infâmia’, denuncia a demissão do escrivão Euripides Gomes de Menezes, do distrito de Tartaruga, em Amargosa, porque não quis falsificar uma ata eleitoral. ‘Subsídio para a história’, 12º capítulo, relaciona a série de decretos de Estado de Sítio que atingiram a Bahia no governo Góes Calmon. Em ‘Alma de chacal’, 13º capítulo, o autor relata suas desditas, desde a prisão em 12 de julho de 1924, seguida da deportação para o Rio de Janeiro, onde permaneceu preso até 28 de fevereiro de 1925. “De volta a Salvador, [Cosme de Farias] foi mais uma vez preso em 5 de abril de 1925 e levado para cela na Secretaria de Segurança. Ali ouviu os gritos que o chefe de polícia, Pedro de Azevedo Gordilho, arrancava dos presos: ‘Quando as mãos inchavam e começavam a gotejar sangue dos cantos das unhas, mandava dar bolos na palma dos pés.’ (Página 91 de Sangue & lama [Salvador: e.a., 1926]).”
“No 14º capítulo, ‘A bolsa ou a vida’, Cosme de Farias denuncia a extorsão do Tesouro estadual na selagem de tributos em valores superiores ao devido. No capítulo 15º, ‘Correligionário de ladrões e protetor de sebaças’ denuncia a transferência da sede municipal de Sento-Sé para o distrito de Aldeia por motivos políticos. ‘Um gesto nobre’, 16º capítulo, elogia a iniciativa do coronel Marcelino Figueiredo, de assinar artigo contra Góes Calmon no Diário de Notícias (06.04.1925). No capítulo 17, ‘A delação de um pústula e o granir da cobardia’, relata a tentativa de atentado de Fernando de Luna Freire contra a Góes Calmon em 9 de março de 1925.
“O 18º capítulo, ‘Cabotinismo & cabotinagens’, é dedicado aos gastos do Governo Góes Calmon com a propaganda oficial. No 19º capítulo, ‘Um rol de bandalheiras e o grito de justiça’, Cosme de Farias relata como foi a dilapidação da herança de Cecília Mendes pelo coronel José Rodrigues Mendes. Em ‘Villanias & tropeços’, 20º capítulo, o autor denuncia que a subvenção de seis contos de Réis que destinara como deputado ao Asylo de Mendicidade fora suspensa pelo governo.
O 21º capítulo, “Última pá de cal”, contém a sentença final de Cosme de Farias: ‘Maldito seja, pois, o nome delle pelos seculos a fóra…’”
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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]
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