Cosme de Farias viveu até seus últimos dias (os últimos dois anos) em plena atividade, dentro do que pode ser caracterizado como pleno para um homem de 95 anos. Próximo de completar 96 e 97, dias antes de morrer, alquebrado pela pobreza, e nos últimos dois meses, praticamente prostrado numa cama.
O rabula, jornalista, político ciente de sua missão de servidor e orador popular, foi eleito para a Assembleia Legislativa da Bahia, em 1970. Não tinha recursos para comprar um paletó decente, digamos assim. E muito menos para sua sobrevivência. Solicitou da Associação Bahiana de Imprensa-ABI, entidade da qual fora um dos fundadores, com carteira de associado número 14, um auxílio financeiro, enquanto recebia seu primeiro ordenado como deputado.
A ABI lhe concedeu uma verba de 1.000 cruzeiros mês, até sua posse e o recebimento do primeiro contracheque, com os parcos recursos de sua Caixa de Assistência. A Assembleia então funcionava no prédio-sede da ABI, esquina da Praça da Sé. Numa das entrevistas concedidas à imprensa nacional, quando se tornou o parlamentar mais velho do mundo, com 70 anos de atividades no legislativo, contou ter preferido se candidatar a Assembleia e não à Câmara Municipal, por causa do elevador da Casa. Na Câmara tinha que subir escadas.
Em janeiro de 1971, três meses antes da posse, Cosme de Farias reagiu à entrevista do suplente de deputado Francisco Bastos, do PMDB, que anunciou que pediria ao TRE a cassação de quatro parlamentares. Disse que de se concretizar a ameaça do político, ele mesmo pediria renúncia, em solidariedade com os colegas. Dias depois, se internou no Hospital Espanhol, alegou que precisava descansar, repor as energias para ter maior disposição ao assumir o mandato.
Então, recém apelara ao governo para que evitasse a matança de jegues, pela Cormasa, empresa com sede em Senhor do Bonfim, que anunciava a exportação de mais de 150 toneladas de carne de jumento para o Japão e Suíça. “Para que o jegue não desapareça inteiramente do cenário nordestino”, justificou. Pela mesma época, o rábula assumiu outra causa, interferiu a favor das mulheres se manifestando publicamente a favor da presença delas nas academias. Dizia que a inteligência e a cultura nada tinha a ver com sexo. Ainda em 1971, incrementou a campanha para a remoção dos restos mortais de Castro Alves, da Praça do mesmo nome, o que já era uma bandeira sua, para o Teatro Castro Alves.
Dois meses antes de morrer teve a felicidade de ver entre as produções baianas exibidas, na I Jornada de Curta-Metragem, realizada na Biblioteca Central, o filme de Tuna Espinheira “Major Cosme de Farias”, entre os premiados. Já estava acamado. Dias antes, em 02 de janeiro de 1972, exatos três meses antes de seu falecimento recebeu na sua casa-barraco, na beira da cama, o jornalista Sebastião Nery. Para uma entrevista antológica, publicada no jornal Politika, do Rio de Janeiro, onde rememorou alguns episódios de sua atuação no júri. E, na condição de mais velho parlamentar do mundo, não deixou de fustigar os seus colegas: “Deputado besta é que gosta de Excelência. Eu gosto é de Povo”. Cosme de Farias faleceu na madrugada de 02 de abril de 1972, seu funeral foi o mais concorrido do século, na Bahia, até a data referida.
Foto: acervo pessoal
*Nelson Cadena é jornalista, pesquisador, publicitário e diretor de cultura da ABI.
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI)
Ao longo de minha vida são vários os desafios que tenho enfrentado, e escrever sobre o Major Cosme de Farias é algo que me alegra e me emociona ao mesmo tempo. O fato de ter conhecido esse grandioso homem, cujo meu primeiro encontro foi há exatos 70 anos, quando dos meus primeiros passos aqui no Pelourinho, é algo inenarrável.
Eu andava aqui, no Terreiro de Jesus, quando avistei aquele senhor de altura mediana, carregando debaixo dos braços um monte de cartas de ABC, aritmética, lápis e borracha, um kit com o qual fui presenteado. Confesso que foi o que despertou em mim o gosto que tenho por ler e escrever. Entre tantas qualidades do Major Cosme de Farias, o que mais me encantava era seu dom de oratória. Em qualquer que fosse a circunstância, ouvir o Major Cosme de Farias não só emocionava, mas deixava todos encantados. Ele tinha sempre uma frase de efeito que encantava a quem o escutava.
Isso acontecia no tribunal do júri, na Assembleia Legislativa, na Câmara de Vereadores, nas praças públicas, como um momento que ficou eternamente na memória dos baianos e dos brasileiros, quando do encerramento da campanha presidencial, nos idos do ano de 1955.
Como uma pessoa próxima ao Major, nas suas andanças aqui pelas ruas do nosso Centro Histórico, e especialmente nos desfiles de 2 de julho, quando ele fazia várias paradas e vários discursos, além de distribuir cartas de ABC em todo o trajeto — o que tenho tentado repetir ao longo dos anos, distribuindo um fac-simile da carta autografada por ele —, não posso deixar de parabenizar a ABI pela oportunidade de me expressar sobre tão importante figura da história dessa nação chamada Brasil.
Viva o sesquicentenário do nosso imorredouro Major Cosme de Farias! Viva nossa ABI! Preservar para perpetuar!
Foto: Sérgio Pedreira
*Clarindo Silva é jornalista, escritor, poeta, compositor e agitador cultural. Atuou como repórter policial nos jornais A Tarde, Jornal da Bahia e Tribuna da Bahia, então migrou da reportagem para a literatura, não deixando de usar a pena para a defesa intransigente do Centro Histórico de Salvador, região que tem em sua Cantina da Lua um bastião de resistência.
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Na foto, Creusa Carqueija está atrás de Cosme de Farias | Arquivo pessoal
Por Creusa Carqueija*
Meu avô era um homem de contrastes marcantes: firme e incisivo na defesa da justiça, mas doce e gentil com os que o cercavam. Sua voz suave e seu trato amoroso conquistavam todos ao seu redor. Mais do que um defensor das leis, ele era um exemplo vivo de solidariedade e caridade, ajudando inúmeras crianças de forma indireta ao garantir sua educação e bem-estar.
Sua compaixão não conhecia limites. Nunca ignorava a fome ou a doença de quem cruzava seu caminho, sempre providenciando comida ou remédios. Para ele, não havia distinção social: tratava com o mesmo respeito mendigos, professores, doutores ou políticos. Seu amor pela vida e pela humanidade era evidente em cada gesto.
Detalhes de sua personalidade revelam um homem peculiar e simples. Recusava bebidas geladas, apreciando tudo em temperatura natural. Apaixonado por palavras cruzadas, acreditava que estimulavam a mente e mantinham o espírito alerta. Brincalhão e espirituoso, criava anedotas sempre com humor refinado e respeitoso.
Quando precisava pedir um favor, tinha um hábito marcante: entregava um presente singelo, como um sabonete ou uma caixinha de talco, embrulhado com simplicidade, mas adornado com uma fita verde e amarela, símbolo de seu amor incondicional pelo Brasil. Para ele, criticar o país era inadmissível.
Cosme de Farias sabia cultivar carinho e atenção aos detalhes. Conhecendo o meu gosto por goiabada cascão, fazia questão de presenteá-la com a iguaria acompanhada de queijo de cuia. Esse traço afetuoso refletia sua essência: um homem inteligente, sagaz e bem-humorado, mas, acima de tudo, movido pela bondade e pela luta contra as injustiças. Um ser humano singular, cuja memória permanece viva em cada gesto de generosidade e amor ao próximo.
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*Creusa Carqueija – Neta do Major Cosme de Farias
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Cosme de Farias teve passagens marcantes por diversas redações | Foto: Acervo ABI
Por Mônica Celestino*
Um rapazote pardo, vindo do Subúrbio de Salvador (BA), sem formação superior, escapou das agruras impostas aos negros como ele pela sociedade conservadora da sua época, a partir principalmente da sua trajetória na imprensa. Entre Remingtons, Continentais e Olivettis, Cosme de Farias (1875-1972) percorreu e até empreendeu veículos jornalísticos diversos com desenvoltura, por mais quase oito décadas, de 1894 a 1972, e tornou-se pauta recorrente, sobretudo em periódicos locais, por sua verve e suas incursões políticas e filantrópicas, por toda a vida.
Era personalidade assídua nas páginas de jornais e em rádios, por meio dos quais divulgava seus feitos e projetos como rábula, assistencialista, parlamentar, militante de causas sociais e políticas e literato, bem como seus pleitos, suas reivindicações, seus protestos e suas ideias; pressionava autoridades e empresários para adoção de medidas que favorecessem suas causas; e prestava homenagens. Quando não tinha vínculo com os veículos de comunicação da cidade, remetia matérias prontas ou informações avulsas às redações de impressos e empresas de rádio, com um pedido de divulgação pelos colegas, e era costumeiramente atendido. Se houvesse demora, reiterava o pleito aos editores e chefes de redação, por meio de bilhetes acompanhados de mimos (bolachas, Cartas do ABC, sabonetes etc.).
Apesar de ter concluído somente o antigo ensino primário, ele manifestou a vocação para a escrita e oratória ainda meninote, primeiro, possivelmente pela literatura. Criou Carta do ABC, cartilha distribuída para a alfabetização de crianças e adultos, e escreveu obras independentes, cuja renda era revertida para campanhas e entidades sociais. São de sua lavra as coletâneas de poemas Estrophes (1933), Trovas e Quadras (sem data), Singellas (1900) e Lira do Coração (1902), e a seleção de artigos políticos Lama & Sangue (1926). É provável que tenha feito ainda O Descobrimento do Brasil, livro anunciado em jornais, porém sem exemplares e notícias sobre seu lançamento localizados. Tinha preferência por poemas líricos, sobretudo, trovas (estrofes com quatro versos com sete sílabas cada) e hinos para revelar sentimentos, ideias e ações sobre questões sociais e políticas; protestar; reivindicar e/ou homenagear; e presentear amigos.
Com o tempo, destacou-se também por seus pronunciamentos, tecidos em linguagem popular, em sessões da Câmara Municipal de Salvador e da Assembleia Legislativa da Bahia; em eventos públicos como os festejos pela Independência do Brasil na Bahia, as homenagens anuais ao poeta Castro Alves, o aniversário da Liga Bahiana contra o Analfabetismo criada por ele e seus confrades, e os protestos contra o analfabetismo e com outras motivações; e no Tribunal de Justiça, onde operava como rábula.
Aos 19 anos, enveredou-se pelo jornalismo, tornando esta sua atividade mais frequente e duradoura. Nesta área, militou de 1894, quando estreou no vespertino Jornal de Notícias, que se classificava como a maior folha do Estado, levado pelo jornalista abolicionista e republicano Amaro Lelis Piedade, a 1972, quando morreu, na Cidade da Bahia. Neste ínterim, principalmente nas primeiras décadas do século XX, teve experiências como membro do quadro efetivo, colaborador esporádico e proprietário de organizações de correntes políticas diversas, em especial, “democratas” ligadas ao líder político José Joaquim Seabra, de quem era aliado. Começou como “foca”, fazendo mormente a cobertura de fatos policiais e julgamentos, porém exerceu diferentes papéis, trabalhando como repórter, editor, redator-chefe e até diretor de redação e sócio-fundador.
Na chamada grande imprensa, o Major Cosme contribuiu com Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Diário da Bahia, Gazeta do Povo, A Bahia, Diário da Tarde, A Hora, O Jornal, A Noite, O Democrata, A Tarde e O Imparcial. Entre os pequeninos, teve passagem em A Metralha (1903),periódico de ácida crítica contra o governo do momento; O Condor (1896), semanário republicano-democrata; e o semanário católico antilaicista Leituras Religiosas (1896-1901). Esteve entre os protagonistas do literário O Colibri (1898-1899), do literário e dito imparcial O Cysne (1899-1900) e dos críticos e satíricos A Bala (1900) e A Coisa (1904-?), dos quais foi fundador, proprietário e redator-chefe ou editor.
Com aparente liberdade de agendamento, enquadramento e estilística nos meios em estava inserido, ele publicava artigos intitulados Linhas Ligeiras ou identificados como Ineditoriaes, com ou sem assinatura, acerca de fatos e temas relacionados ao poder e à política, à infraestrutura urbana e ao funcionamento da justiça, a movimentos políticos e sociais, a demandas sociais e à assistencial social, e também com homenagens e elogios a amigos, pessoas que admirava ou com quem firmara parceria. Era comum trazer pautas, até então fora das agendas midiática, social e política, à luz.
Dono de uma redação sedutora para os leitores e mordaz contra adversários, Cosme de Farias fazia textos apelativos e capazes de sensibilizar a audiência e repercutir na vida do receptor, instigando a reflexão e até a reação. Para tanto, explorava substantivos no grau diminutivo, suscitando afetividade, benignidade e desprezo, figuras de linguagem (metáfora, metonímia, eufemismo e ironia), adjetivos com juízo de valor, provérbios, trechos de poesias, referências do cristianismo e da literatura; e construía mensagens assertivas para os eleitores.
Por toda trajetória, até no terceiro quartel do século XX, ele fazia textos com características próximas daquelas descritas por Nelson Werneck Sodré (1911-1999), no clássico História da Imprensa no Brasil, para a tipificação do jornalismo doutrinário do século XIX no Brasil: poucas linhas; linguagem simples e direta para a garantia da compreensão; utilização de provérbios e/ou trechos de poesias; tom panfletário com crítica ácida e incisiva; e exploração da ironia e do humor. Em certas matérias, trazia também citação nominal de destinatários, como estratégia para constranger/coagir, embora essa não fosse uma prática da imprensa da época.
Aliado a isto, firmou-se como pauta. Principalmente notas sem autoria explícita, publicadas no miolo do caderno sem periodicidade definida (até mais de uma por edição), levavam ao público informações de seu interesse, ofertadas ou não por ele. Sob títulos grafados em fontes graúdas e em negrito, debruçavam-se sobre sua vida pessoal, sua produção literária, seus eventos, seu trabalho assistencial, sua atuação como rábula e sua incursão em eleições e outros fatos políticos; serviam como homenagens a personalidades dos cenários nacional e local; rogavam por fundos para organizações assistências ou monumentos; e buscavam apoio de governos e empresariado para atenção a demandas de terceiros.
Exercida principalmente por meio da imprensa e da literatura, a militância política e social do Major atiçou a ira do então governador Góes Calmon (1924-1928). Em 1926, exemplares da coletânea política Lama & Sangue, de sua autoria, foram recolhidos por ordem do mandatário. Adiante, em outubro de 1930, enquanto atuava em O Jornal, sua prisão fora determinada pelo regime recém-instalado, no bojo da chamada “Revolução de 30” e da manifestação do “Quebra-bondes”, por suas ideias oposicionistas, junto com os jornalistas Joel Presídio e Alfredo Lopes, em Salvador, e Franklin Queiroz, no interior. Somente quatro dias depois, o quarteto foi liberado, após protestos de jornais, que passaram a circular com espaços em branco, e intervenção da Associação Bahiana de Imprensa (ABI)junto à Secretaria de Segurança Pública e ao governador interino, Frederico Costa.
A recorrência dos seus textos e de suas ideias e ações nos veículos, contudo, sinaliza que o Major Cosme gozava de certo respaldo e prestígio entre os comunicadores. Sua longa jornada e a dedicação à categoria favoreciam isto. Ele integrou a Associação Tipográfica Baiana; fundou e dirigiu em 1905 o Círculo dos Repórteres; foi um dos 103 membros fundadores da ABI, elegendo-se como suplente e titular da comissão fiscal e de contas, em sucessivas vezes, pelo menos de 1943 e ao ano da sua morte; e pleiteou benefícios para a classe, durante seus mandatos de parlamentar.
Coexistiam, portanto, versões de Cosme de Farias jornalista e pauta jornalística. Conhecido como Major pela conquista da patente da Guarda Nacional, como presente e homenagem de amigos, ele sustentou suas ações assistenciais (inclusive a defesa beneficente de milhares diante da polícia e da justiça) e sua carreira parlamentar, como conselheiro/vereador da capital baiana e deputado estadual da Bahia, ao agendar sua vida e obra nos meios de comunicação a seu alcance. É provável que sua atuação como jornalista tenha facilitado o trânsito entre colegas de atividade e, por conseguinte, o agendamento de conteúdos de seu interesse.
De certo, a jornada do Major se tornou exemplar do Jornalismo Assistencial e do Jornalismo Mobilizador na Bahia republicana, cujas funções sociais perpassaram pela prestação de assistência social à comunidade que lhe procurava, a sensibilização, a convocação e o estímulo ao posicionamento da população contra distorções sociais, e a construção e consolidação da sua imagem carismática, especialmente entre as camadas mais baixas da sociedade. Há, por isso e por tantas outras contribuições, que se celebrar, em 2025, o sesquicentenário do nascimento desta personalidade tão jornalista.
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*Mônica Celestino é jornalista, mestre e doutora em História. Autora da tese “As Trincheiras do Major Cosme de Farias (1875-1972): a interface entre atuação na imprensa e ações de caridade em Salvador (BA) no alvorecer da República”.
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