Por I’sis Almeida*
Era 25 de agosto, a assessoria da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), em sistema de home office em função da pandemia do coronavírus, recebeu um pedido de socorro através de um aplicativo de mensagens. A remetente Thyara Pataxó, graduanda em Agroecologia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), jovem liderança da Aldeia Novos Guerreiros, localizada no extremo sul da Bahia, Ponta Grande, em Porto Seguro, desejava repercutir a ameaça de despejo que sua Aldeia sofria com uma ação da Justiça Federal de Eunápolis.
A notícia sobre a possibilidade de despejo de 40 famílias da Aldeia Novos Guerreiros mobilizou as comunidades indígenas da Bahia e do Brasil. A ação judicial em questão beneficiava a reintegração de posse de um Clube de Aviação, em meio à crise sanitária na estância de Porto Seguro. (Entenda aqui).
A atitude tomada pelo juiz foi considerada contraditória à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Quaisquer reintegrações de posse, enquanto durar a pandemia em âmbito nacional, foram suspensas pelo Ministro Edson Fachin. A decisão foi tomada no dia 6 de maio, por meio do Recurso Extraordinário (RE) de número 1.017.365/SC. Após intensa mobilização da comunidade, imprensa nacional, e até mesmo internacional, a ação foi revertida, mas Thyara conta que seu povo não tem dormido tranquilo. “Ainda haverá um novo processo, votado pelo mesmo juiz. Ele terá tempo de analisar e decidir se continuará persistindo na reintegração ou não. Por conta disso, a gente ainda não tem sossego”, relata.
“Nosso povo não dorme tranquilo desde cedo. Nossas crianças já nascem na luta por conta disso. Hoje eu tô aqui com meus filhos em casa, mas amanhã pode haver uma reintegração e eu tenha que sair com eles correndo”, lamenta a liderança Pataxó. Embora o caso da Aldeia Novos Guerreiros tenha recebido decisão favorável da Desembargadora Federal Daniele Maranhão Costa, que suspendeu a liminar do juiz de Eunápolis, a comunidade segue apreensiva. “A gente vê muita coisa acontecendo com as minorias, nas comunidades indígenas, quilombolas, nos assentamentos e sendo pouco divulgado, principalmente nas grandes mídias, sofremos muito com essa invisibilidade”, alerta Thyara.
É em função da notória invisibilidade da população indígena nas mídias tradicionais, seja na televisão, rádio ou em veículos impressos, que hoje surgem veículos produzidos por e, principalmente, para populações indígenas. Quando se forma uma mídia indígena, as comunidades ribeirinhas e quilombolas aproximadas geograficamente dessa população também se beneficiam.
Para entender a lógica de produção, distribuição e recepção desses veículos, o papel da imprensa no trato dos primeiros povos do Brasil, a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) conversou com idealizadores e colaboradores de mídias feitas por ou para pessoas indígenas, e ainda com estudantes de comunicação, sobre a importância da representatividade e ocupação nesse setor.
Mídia Índia
Lançada em 2017, a Mídia Índia foi fundada por jovens Guajajaras no Acampamento Terra Livre, ocorrido em Brasília. Ali, dentro de uma mobilização anual dos povos indígenas, formou-se um grupo de 10 jovens. Essa rede de comunicação é fundada como uma plataforma de comunicação oficial do movimento indígena brasileiro. “Apresentamos o projeto dentro de um evento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que fazia parte da programação, e fomos abraçados pelas lideranças presentes”, conta Emerson Pataxó (21).
De acordo com Emerson, na Mídia Índia, a maioria dos textos é feita por comunicadores indígenas de base. São geralmente pessoas que estão dentro de suas aldeias ou de alguma organização indígena e que contribuem com a Mídia Índia. “Eles encaminham suas pautas, textos, fotos e nós publicamos em nossas redes. Eu também faço alguns textos e quem edita somos nós. Depois, Priscila Tapajoara corrige”, explica o redator. O jovem comunicador é colaborador do veículo desde 2018. Nascido na cidade de Belmonte-Ba, hoje reside em Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália-Ba, de onde atua na redação do veículo.
O principal objetivo do veículo é produzir conteúdos das pautas indígenas e difundir informação. Para Emerson, a mídia tradicional nunca representou os povos indígenas. “Nem ontem, nem hoje e, provavelmente, amanhã não representará as pautas indígenas e das minorias de uma forma geral”, avalia.
“A Mídia Índia nasce justamente por causa disso. A gente não se vê representado. Sempre que falam de nós, fazem de modo pejorativo, a partir da exotização, não mostram a verdade”, reclama o jovem. Acreditamos no nosso protagonismo enquanto juventude indígena. A grande mídia nos coloca como vilões. Ela é encabeçada por grandes empresários ligados ao agronegócio, ao desmatamento na Amazônia e eles não querem nos dar espaço para falar dentro dessas grandes mídias”, explica Emerson.
O papel de “vilão”, como observa Emerson Pataxó, também foi destinado à população indígena na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em seu discurso na Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU), na última terça (22), ele culpou populações tradicionais por incêndios. “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”, declarou. Leia o discurso aqui. Bolsonaro afirmou ainda que o Brasil é “referência em preservação ambiental” e repetiu, em uma live no Facebook na noite de quinta-feira (24), que parte das queimadas florestais que atingem Amazônia e Pantanal partem de “índios e caboclos”.
Visibilidade Indígena
“Visibilidade Indígena” foi uma página fundada no ano de 2017 pela Katú Mirim, rapper, compositora, ativista e atriz pertencente ao povo Boe Bororo. Katú sempre esteve envolvida no movimento indígena de São Paulo. Nascida e criada no ambiente urbano, somente aos 13 anos ela descobriu que descendia de pai biológico da etnia que hoje habita a região do planalto central de Mato Grosso. “Katú fundou o Visibilidade e convidou outros parentes”, conta Isa Santana, criadora de conteúdo, artista, atriz e poeta. Isa é co-fundadora e coordenadora do Visibilidade Indígena e também idealizadora do CineNativo, iniciativas que dividem com a Mídia Índia a insatisfação com a cobertura dispensada à questão indígena e o desejo de mudar essa realidade.
Isa diz que na época da fundação do “Vi” – como se refere frequentemente ao Visibilidade Indígena – sua companheira de trabalho, Katú, sentiu uma ausência de páginas que retratassem artistas, curiosidades e outros assuntos relacionados à população indígena no Brasil. No entanto, pela falta de cobertura representativa nas mídias tradicionais, o projeto passou a abordar também questões relacionadas à terra, a violência à qual a população indígena até os dias atuais é submetida. “Os grandes veículos de mídia, eles não nos representam no sentido de fazer uma cobertura completa e que abrange todas as comunidades que a gente tem hoje. São 308 povos e acontecem muitos ataques que ninguém sabe que tá acontecendo”, alerta a artista.
Atualmente, o principal objetivo do veículo é potencializar a visibilidade indígena através da divulgação da arte contemporânea, de projetos culturais e que buscam a autonomia comunitária. “A gente vê como uma estratégia falar da arte indígena contemporânea. Quando você divulga um artista indígena você também está falando de terra, você também está falando de um povo”, explica Isa. “Hoje a gente tem filmes que falam em línguas quase extintas, ou artistas que carregam a voz do seu povo por onde passa. O “Vi” vem com esse objetivo. Comunicar e, de alguma forma, trazer visibilidade aos artistas e toda essa potência que existe na criação dos artistas indígenas, dos artistas nativos de Pindorama”.
- De acordo com Theodoro Sampaio, o termo “Pindorama” (pindó-rama ou pindó-retama), da língua tupi, pode ser traduzido como “país das palmeiras”. A denominação continuou sendo usada pelos nativos, por muito tempo. (Fonte: Guia Geográfico História do Brasil)
Segundo ela, a triagem do que vai para o site acontece de forma bem intuitiva. “A gente sempre busca notícias que dialoguem com arte contemporânea, com visibilidade, o que saiu em uma capa de revista a exemplo”, detalha Isa. Hoje, ela e o colaborador Karkará Tunga, artista visual e realizador audiovisual, estão mais à frente do processo de publicação no site e nas redes sociais. Os textos, matérias e conteúdos publicados nas plataformas do Visibilidade, no entanto, são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a opinião de toda a equipe do VI.
Podcast Copiô, Parente?
Realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), o podcast “Copiô, Parente?” é o primeiro realizado para povos indígenas e da floresta do Brasil, foi criado em 2017 e tem objetivo de levar a essas pessoas os destaques de Brasília à respeito de suas vidas. Desde sua criação, é apresentado por Letícia Leite, assessora de comunicação do Instituto. Letícia fez mestrado num curso chamado “Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais”, na Universidade de Brasília (UNB) e foi esse mestrado que lhe suscitou a ideia de fazer um produto de comunicação especificamente pensado para esse público.
“É um mestrado pensado para povos indígenas, super precursor dentro das universidades públicas. Ele provoca um encontro entre indígenas, povos da florestas e pessoas que trabalham com essas populações”, conta Leite. “Eu tive o privilégio de estudar com geraizeiros, quilombolas, indígenas de diversas partes do Brasil, pessoas que atuam no judiciário, na antropologia e outras áreas”, completa. Na época, ela já atuava na assessoria do ISA.
Inicialmente, o podcast era somente um boletim de áudio. “A gente não chamava podcast porque desconhecia a linguagem. Depois de produzir muitos boletins é que fomos reconhecer que o que a gente tava fazendo era podcast”, observa a assessora. Hoje o “Copiô, Parente?” alcança mais de 4 mil pessoas. Esse número é somente a quantidade de contatos via WhatsApp que recebem os arquivos de áudio do podcast em formato MP3. Os arquivos também são reproduzidos em rádios comunitárias onde estão localizadas comunidades indígenas.
“A gente continua mandando ‘na unha’. Começamos enviando para 30 parceiros de várias regiões do Brasil e hoje a gente manda pra 4 mil pessoas em todos os estados. Não mando para grupo, mando individualmente. Isso fez o grande diferencial do Copiô, que é a sua distribuição”, destaca Letícia.
Além de ser divulgado através do aplicativo de mensagens mais usado em todo o mundo, esse modelo de distribuição possui uma particularidade. Durante a especialização e ao longo de sua trajetória, e contato com populações indígenas, a comunicadora notou que em áreas remotas – onde o acesso à Internet é limitado -, jovens e lideranças indígenas baixam o Copiô quando se deslocam à cidade, retornam para suas terras e compartilham o material “offline”. O compartilhamento é feito via bluetooth ou através do aplicativo ShareIt, muito utilizado na região do Rio Negro, que entra no Brasil pela localidade de Cucuí, um distrito de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, onde o ISA possuí forte atuação.
“Eu faço isso primeiro porque identifiquei que grande parte de indígenas que eu conversava acessa a Internet pelo celular mas não baixam muitos aplicativos. Percebi também que o WhatsApp é o aplicativo mais baixado, mais usado, então, o produto de comunicação deveria ser um produto feito também pelo mesmo sistema. A gente faz quase todas as entrevistas, todas intervenções pelo WhatsApp”, conta Leite.
“Fazemos poucas entrevistas por telefone, a não ser quando os indígenas estão em Brasília. A gente tem um caso muito bonito para lembrar da cobertura das eleições de 2018, quando a gente fez o “Copiô, Candidato?” e aí os indígenas encaminharam perguntas para os presidenciáveis”, recorda. Foi o caso do seu Herculano, um extrativista da região da Terra do Meio que ficou sabendo do “Copiô, Candidato?” por radiofonia. “A central de rádio Altamira gravou e mandou a pergunta para nós pelo WhatsApp”, relembra Letícia, em tom de alegria. “Receber um de um extrativista, direto da Terra do Meio (PA), na época onde a região não tinha Internet, nem telefone, mostra o alcance que o Copiô tem e a responsabilidade disso”, ressalta.
Uma novidade do ISA é que recentemente foram contratadas duas pessoas indígenas para atuar na equipe de comunicação. “Cristian Wariu, youtuber e estudante de organização comunicacional da UNB, e Gilmar Terena, cineasta indígena, comunicador da Associação Cultural de Realizadores Índigenas (ASCURI) e colega de mestrado de Letícia. A gente passou a contar com uma equipe indígena, o Copiô agora não é feito só para pessoas indígenas, é feito por pessoas indígenas”, relata Letícia.
Representação e representatividade nos meios de comunicação
Apesar das incertezas diante das frequentes ameaças de reintegração de posse que pode afetar a vida de sua comunidade e família, Thyara Pataxó diz ter esperanças na comunicação como ferramenta de disseminação de informações. “A gente acredita e confia em vocês que trabalham com a mídia, a imprensa. Queremos que continuem, porque é um trabalho honrado, apesar de perseguido por grupos fascistas e ditadores. Sem informação, hoje em dia a gente não é nada. Sofremos muitas vezes calados”, aponta.
Isa Santana, do Visibilidade Indígena, pontua seus principais desconfortos com a representação na grande mídia: A ausência de cobertura e a linguagem. “A cobertura é cheia de estereótipos, paradigmas e preconceitos. Há dois pontos fortes: O primeiro é que não produzem tantas notícias que nos deem visibilidade. E outro ponto é a linguagem. Geralmente vão falar de uma pessoa indígena, falam ‘índigena’, mas nunca falam o povo. Falar ‘índio’ é pior ainda. A própria palavra ‘indígena’ é uma invenção colonial. Não somos indígenas, somos povos”, alerta Isa. “Eu não sou indígena, eu sou Pataxó, entendeu?”, completa.
Rayhatã Pataxó cursa Comunicação Social com ênfase em Produção Cultural da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA). Ele é vizinho da Aldeia Novos Guerreiros onde ocorreu toda mobilização em prol da permanência dos índios pataxós nas terras do extremo sul da Bahia. De acordo com o estudante, demarcar a sua presença e a presença de outros povos indígenas nas universidades, em especial nas universidades públicas, é importante. “Muita gente ainda olha para os indígenas como povos que vivem dentro do mato, ou que só vivem trajados, sem levar em consideração que houve um processo de colonização”, explica Rayhatã.
Beatriz Tuxá, cantora e colega graduanda do mesmo curso de Rayhatã, diz que a formação de estudantes indígenas na comunicação é de extrema relevância para as comunidades. “É diferente quando é um indígena trabalhando com comunicação, falo em comparação com um branco, assim como é ter um médico indígena trabalhando dentro de sua comunidade. A gente sente a diferença, o indígena conhece seu povo, sabe da realidade, sabe como tratar. Acho que é o mesmo caso referente à comunicação, a gente sabe o que precisa ser mostrado, divulgado ao contrário do que realmente acontece, onde a imprensa só coloca que quer”, analisa.
Apesar dos desafios, Letícia Leite, assessora do Instituto Socioambiental (ISA) e apresentadora do podcast “Copiô, Parente?”, pondera os avanços. “A grande imprensa, os veículos tradicionais, profissionais, eles têm melhorado na cobertura das pautas indígenas. Eu trabalho no ISA como assessora de imprensa há 8 anos e percebo algumas melhoras”, avalia.
Segundo ela, um exemplo disso é que a Rede Globo passou a usar o termo “terras indígenas” no lugar de “reservas indígenas”. Letícia destaca que, “mesmo a constituição trazendo de forma clara a nomeação ‘terras indígenas’, a gente ainda encontrava dificuldade em fazer com que a principal emissora de televisão falasse “terras indígenas’ e não ‘reservas’, alegando que era o manual de redação”, disse. O jornalismo, neste momento de forte ataque aos povos indígenas, tem importância e vem desempenhado um papel bastante relevante”, reconhece a comunicadora.
*Sob a supervisão de Joseanne Guedes.