Carlos Henrique Cardim*
Tudo começou aqui! Na São Francisco. É o ponto de partida, em 17 de junho de 1868, quando aos 19 anos, Rui Barbosa profere seu primeiro discurso político, ao saudar o Mestre José Bonifácio, o moço
Será aqui, também, seu ponto de chegada, com a Oração aos Moços, em 1921. A ligar os dois momentos fundamentais e fundadores, está, basicamente, o grande orador. Quando vemos que a obra de Rui Barbosa tem 137 volumes e nenhum livro, ficamos chocados. Mas é assim mesmo; os grandes mestres – Sócrates, Confúcio e Jesus Cristo – não deixaram nada escrito; conhecemos suas mensagens pelos seus discípulos. Jorge Luis Borges interpreta o aforismo clássico – Scripta manent, verba volant – no sentido inverso ao que é feito, e afirma que o escrito petrifica, tira a emoção, e o verbo, a palavra é vida, é como a música, direto ao coração.
Assim, para o destacado crítico Álvaro Lins, “E como orador, precisamente, é que Rui Barbosa deve ser estudado e admirado. (…) Sim, ele foi um exemplar homem público que se exprimiu como um orador de poderes fora do comum: eis uma legenda alta, justa, e honesta para o nome de Rui Barbosa”. Acrescenta o grande biógrafo do Barão do Rio Branco Álvaro Lins, “Desde a juventude, Rui Barbosa encontra na oratória a sua vocação (…) A propósito de Rui, dizia um dos seus poderosos adversários – Pinheiro Machado – `Rui tinha menos talento do que coragem´”. Coragem, essa a grande virtude de Rui Barbosa! Lutador a vida inteira contra as violências e opressões. Péricles, seguramente o maior estadista da humanidade, sublinhou que o sentido da vida é a liberdade, e que o fundamento da liberdade é a coragem. A propósito da coragem de Rui, destaco o incidente com o Delegado russo Martens, em 1907 na Haia. Agora, estamos nós aqui reunidos em clima de celebração, entre amigas e amigos. Falamos tranquilamente. Muito diferente, é ter que falar em frente de uma placa, onde está escrito “Rússia”, “Estados Unidos”, etc.. Martens, presidente da sessão, corta Rui, porque vê suas palavras serem inadequadas à Conferência. Rui mergulha por 20 segundos em profundo silêncio, e sai fazendo improviso em francês de 30 minutos, em defesa da política e do caráter político do conclave. No final, Martens se desculpa e se confraterniza com Rui, que chama o ocorrido de “felicíssimo incidente”.
Na segunda edição de A raiz das coisas: Rui Barbosa:o Brasil no mundo, há um subtítulo: “Buscando Rui, e achando a Rússia”!, onde exponho o decisivo apoio de Rui à continuidade da “Corte Permanente de Arbitragem CPA”, criada na I Conferência da Paz da Haia em 1899, por importante iniciativa pacifista do Czar Nicolau II. O Brasil cometeu sério erro diplomático, ao não comparecer a esse pioneiro conclave, apesar de ter sido convidado, com Campos Salles alegando motivos internos. O México, o outro convidado latino americano, esteve presente. A CPA existe até hoje, desenvolve notável trabalho, e tem em sua porta, o busto de Rui. A nova edição traz, também, prefácio que fiz à Correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, em 1907, publicada somente em 2014. A palavra de Rui foi uma grande apaziguadora na construção da República. Evitou que o Brasil entrasse na categoria do caudilhismo e das lutas fraticidas. Lembro, a respeito, o episódio de 18 de dezembro de 1889, quando houve um levante de 60 praças contra a República e uma comissão impôs várias condenações à morte, não cumpridas graças à interferência de Rui. O notável orador aí está, a evitar o descaminho da violência com mortes, tão comum nas revoluções. Igualmente, está no bloqueio apaziguador contra o caudilhismo militarista na “Campanha Civilista”, na qual foi um aparente perdedor, mas utilizou-a para pregar, para advertir, dizendo uma vez, que fazia campanhas para perder. Isto é: para perder, e perdendo, educar politicamente o seu país. Karl Popper defendia que são as idéias que devem ser refutadas, não seus suportes, nós, os seres humanos.
Norberto Bobbio fala em 3 metáforas para explicar as possíveis atitudes na política: 1) a mosca na garrafa, que se agita, mas alguém por fora a guia para a “saída salvacionista”; 2) o peixe na rede que se bate, mas não há saída, posição dos existencialismos; e 3) a pessoa no labirinto: avança ao reconhecer os caminhos bloqueados. Num momento hegeliano, Brasil “quinta categoria”, elite de primeira,denuncia as tentações violentas. O Mestre de Turin, no ensaio Elogio della Mitezza, escolhe como sua virtude preferida, a mansidão. Aparentemente, débil em política. Mas, se comparada com seu oposto: o manso supera o feroz. “Bem aventurados os mansos, porque eles possuirão a Terra” diz Cristo, no “Sermão da Montanha”. Rui Barbosa costumava dizer, após derrotar seu adversário: “Não me queira mal; isto é só um debate”. Rui na República, Visconde do Rio Branco no Império, figuras oceânicas, tocam fundo na alma brasileira.
*Discurso proferido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 23/11/2023.
*Carlos Henrique Cardim é doutor em Sociologia (USP), embaixador (MRE) e professor (UnB).