A voz de Lazzo Matumbi, cantor, compositor e ativista afro-brasileiro, entoa os versos que inspiraram a Associação Bahiana de Imprensa a promover o debate “14 de maio de 1888 – o dia que não acabou” de forma remota e através do YouTube. Com a participação dos convidados Samuel Vida, advogado, ativista e professor e dos jornalistas Yuri Silva e Cleidiana Ramos, a mesa debateu sobre os desafios para a superação do racismo após a promulgação da Lei Áurea no Brasil.
A urgente e necessária reparação das desigualdades raciais cobradas na letra “14 de maio” de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal se fizeram presentes também por meio das contribuições dos convidados. Mediada por Ernesto Marques, presidente da ABI, a atividade também relembrou os últimos acontecimentos de caráter racista que chocaram o país, como o caso da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. No dia 6 de maio, uma operação policial vitimou 28 pessoas no bairro da Zona Norte. Outro caso lembrado foi o assassinato de Bruno Barros e Yan Barros, decorrente de um roubo de refratárias de carne na rede de supermercado Atakarejo de Salvador. Tio e sobrinho foram entregues a traficantes pelo segurança do estabelecimento comercial, localizado no bairro do Nordeste de Amaralina
De acordo com Ernesto, é difícil ouvir a canção de Lazzo e não se emocionar. “Essa reparação é que nós reclamamos para que a gente possa ter de fato uma sociedade menos injusta ou justa. Essa é a nossa utopia, e a Associação ao fazer essa live não está realizando nada menos que cumprir seu Estatuto, pois nós nascemos comprometidos com uma luta por justiça”. O presidente da ABI aproveitou o momento para apresentar o livro de 90 anos da ABI, escrito pelo diretor do departamento de cultura da casa, Nelson Cadena, e relembrar personalidades negras importantes no jornalismo baiano como Thales de Freitas, um dos fundadores da Associação Bahiana de Imprensa e Cosme de Farias, jornalista, rábula e político, conhecido como exímio defensor dos pobres.
Primeira a fazer intervenção na mesa, Cleidiana Ramos agradeceu o convite da ABI em especial pela associação defender os interesses da categoria jornalística. Doutora em antropologia, Cleidiana contou que a imprensa abolicionista teve grande relevância na história do Brasil, assim como jornalistas que conquistaram a liberdade, como é o caso de Luiz Gama. De acordo com a jornalista e professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), “esses exemplos mostram que a imprensa teve seu papel”, conta.
Cleidiana elucidou a ligação histórica entre os editoriais das redações brasileiras com a Declaração Universal adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Mas ressalvou que, no entanto, nem sempre esses códigos de ética dos veículos são cumpridos na prática. “Está lá nesses editoriais que eles vão lutar pela liberdade de pensamento, contra qualquer tipo de discriminação, mas a gente sabe que na prática não é bem isso”, lamenta.
Samuel Vida, professor de Direito da Universidade Federal da Bahia e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA), frisou a necessidade de resgatar alguns elementos para uma melhor compreensão do que foi, e ainda continuar a ser o pós 14 de maio. “O mais importante deles diz respeito a uma atualização do debate sobre o que é racismo. O debate sobre o tema nos últimos 20 anos experimentou uma mudança e uma maior visibilidade que fez com que as pessoas imaginassem que temos entendimento, diagnóstico suficientes e propostas de correção postas às mesas pelas instituições, e isso me parece um equívoco”.
De acordo com Samuel, é evidente o avanço do debate graças à luta dos movimentos negros mas, para ele, é também nítido que persistem dificuldades agudas. “A maior parte das pessoas e das instituições, inclusive, da imprensa, reproduzem uma lógica de limitação do racismo a uma idéia de patologia individual, uma perversão moral fruto da ignorância, fruto de uma má vontade, de algum defeito de caráter, como se o racismo fosse apenas essa manifestação individual e subjetiva de ódio e de perseguição”, alertou.
Para Yuri Silva, além de uma articulação que delibera poder à população branca brasileira, o racismo se constitui na política, fazendo com que os negros sejam as pessoas que estão na fila do Sistema Único de Saúde esperando para serem atendidos, os que estão também no Instituto Médico Legal (IML), nos necrotérios e ainda, integrando os dados da população mais afetada por meio das contaminações do novo coronavírus. Para ele, “não existe estado democrático de direito, não existe combate ao fascismo, sem o combate prioritário ao racismo” e ter certeza disso “é garantir que um projeto pós-Bolsonaro, que substitua o fascismo que atualmente está comandando a política nacional, seja de fato um projeto emancipador”, defendeu Yuri.
“A gente vive guiado ou teleguiado por uma elite que é incapaz de reconhecer o Brasil como ele é, o Brasil na sua diversidade, o Brasil negro, feminino, dos quilombos, dos terreiros”, disse Yuri.
No debate, estiveram também presentes os diretores da Associação Bahiana de Imprensa, Raimundo Marinho e Amália Casal Rey, que fizeram intervenções ao final da mesa. Assistiram ao evento o vice-presidente, Luís Guilherme Pontes Tavares e o suplente do Conselho Fiscal da entidade, Luiz Hermano Abbehusen, além de outras personalidades importantes do jornalismo baiano e da luta anti-racista.
Para Cleidiana, Samuel e Yuri, as comemorações do dia 13 de maio são dúbias, mas é unânime a consciência de que a institucionalização da liberdade dos povos africanos e afro-brasileiros da escravidão não ocorreu por um gesto de bondade. De acordo com Samuel Vida, esse foi um processo de cooptação de conquista por meio do Estado, já que, antes de 1888, muitos homens e mulheres negras lutaram e conseguiram emancipar legalmente pessoas em condição de escravidão no Brasil.
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*I’sis Almeida é estagiária da ABI sob a supervisão das jornalistas Joseanne Guedes e Simone Ribeiro