“Dados são o novo petróleo”. Essa frase dita pelo matemático londrino Clive Humby vem sendo utilizada no mundo inteiro, para deixar claro o valor dos dados e a importância de sua extração. Mas, assim como o petróleo precisa do processo de refinamento, os dados necessitam ser analisados. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece as diretrizes para esse tratamento, impõe novos desafios ao campo jornalístico, embora ela alcance a face empresarial da atividade e não o trabalho de apuração de informações para a criação de notícias.
Para André Lemos, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA (FACOM/UFBA) e mestre em Política de Ciência e Tecnologia, “o jornalista precisa ter consciência de que, em outras circunstâncias que não seja a matéria, será preciso sensibilidade no trato do dado pessoal para o processamento do texto e como isso vai entrar na estrutura do ambiente empresarial a qual ele está ligado”, explica.
Um dos episódios recentes sobre o uso de dados no processamento de notícias – e que gerou dúvidas em relação a ser ou não vazamento de dados pessoais – foram as denúncias realizadas pelo site The Intercept Brasil. O episódio que revelou as conversas entre membros da Operação Lava Jato foi tema de um debate promovido pela ABI, para discutir pressupostos éticos da atividade jornalística e analisar a influência da cibercultura no caso conhecido como “Vaza Jato”.
Durante o evento, um dos temas abordados foi o uso de informações e documentos obtidos por fonte anônima ou protegida pelo sigilo da fonte. A advogada Fabiani Borges, especializada em Direito Processual Civil e membro da Comissão de TI e Direito Digital da OAB/BA, atendeu às perguntas do público por meio de uma transmissão na página da ABI no Facebook. Ela explicou que no caso The Intercept não se tratava de vazamento de dados pessoais. “Embora seja um vazamento de dados, o jornalista não invadiu nenhum dispositivo”, esclareceu. (Veja a cobertura do debate completa aqui)
“Jornalistas têm a garantia constitucional da ablução da fonte, então, não tem a invasão de dados pessoais”, destacou André Lemos. Para ele, a importância da criação da LGPD está em chamar atenção para o novo capitalismo de dados na sociedade e para proteger as pessoas. “A ideia de capitalismo de dados é que toda economia hoje gira em torno de empresas que captam dados e informações das pessoas e essa captação é rentabilizada”, pontua.
Dataficação
“O que a gente está vivendo hoje é uma sociedade de grandes plataformas de informação que captam dados e esse processo é o que alguns chamam de ‘dataficação”. Toda essa plataformização e dataficação da sociedade contemporânea, é baseada na extração de dados das pessoas”. Segundo Lemos, a dataficação (datefication em inglês) não é a digitalização. “Não é pegar um texto e tornar digital, é fazer com que todas as nossas ações, tudo que a gente fotografe, clique, escreva, vire um dado eletrônico digital e esse dado vai sendo acumulado, processado para gerar perfis sobre as pessoas”, alerta.
“Estamos caminhando para uma regulação desse capitalismo de dados, o equilíbrio em torno daquilo que nós temos num ecossistema informacional de coleta violenta de informação, de big data (o processamento de muitas informações para indicar coisas)”, ressalta o pesquisador. “As pessoas não têm consciência disso. Elas acreditam que o que elas veem no Facebook é o que tem pra ver, mas não é. O que ela vê no Facebook é fruto de um sistema, da ação, dos cliques e das coisas que elas entregam, que o Face vai curar e dizer o que cada pessoa irá preferir”, disse. Segundo ele, o problema hoje não que é o que aparece, mas o que é retirado da visibilidade. “Acho importante que a gente compreenda o papel dos dados na sociedade”, conclui.
Sociedade reage
Ao longo desta série sobre a LGPD, a ABI publicou a situação dos jornais locais frente à legislação, a opinião de especialistas sobre os vetos do presidente Bolsonaro, as consequências previstas para as empresas que não se adequarem à lei e os impactos para a sociedade. Como parte dessa tomada de consciência em relação à importância dos dados, uma rede independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da Internet livre e aberta no Brasil vem fazendo campanha contra os vetos realizados por Jair Messias Bolsonaro durante sanção da LGPD. Sob forte pressão, o Congresso Nacional concluiu ontem (2) a análise dos vetos e trouxe de volta dispositivos que haviam sido rejeitados por Bolsonaro.
Confira a série especial sobre a LGPD:
Segundo a autodenominada “Coalizão Direitos na Rede”, o objetivo da rede “é defender princípios fundamentais para a garantia de uma Internet com acesso universal, respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multi participativos de governança”.
Mais de 30 organizações fazem parte da Coalizão, entre elas o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Internet Sem Fronteiras, Brasil Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e outros. Em nota enviada ao Parlamento, elas alegam que os vetos impostos por Jair Bolsonaro desrespeitam o longo debate realizado entre parlamentares, setor empresarial e sociedade civil nos últimos anos.
A Coalizão queria que os parlamentares revertessem pelo menos três dos vetos: a) o direito à revisão de decisões aplicadas por algoritmos ou inteligência artificial; b) a possibilidade de a ANPD aplicar sanções administrativas mais rígidas; c) proteção para quem utiliza a Lei de Acesso à Informação (LAI).
Vetos derrubados
De acordo com o site do Senado Federal, apenas um dispositivo do texto da LGPD estava pendente de confirmação ontem, já que os demais já haviam sido decididos na sessão anterior, na quarta-feira (25). A Casa manteve o veto do presidente Jair Bolsonaro à obrigatoriedade de revisão humana para as decisões automatizadas (VET 24/2019). Com isso, a decisão da máquina será soberana. Se o titular solicitar revisão de decisões, tais como definições sobre o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito, a análise será feita, no máximo, por outra máquina.
O Congresso já havia trazido de volta as penalidades previstas no texto original da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Entre os vetos rejeitados pelos senadores está a ampliação do rol de sanções administrativas que poderiam ser aplicadas aos agentes de tratamento de dados. Os três novos tipos de punição vetados pelo presidente e agora restabelecidos são: suspensão parcial do funcionamento do banco de dados por até seis meses; suspensão do exercício da atividade de tratamento dos dados pessoais pelo mesmo período; e proibição parcial ou total do exercício de atividades relacionadas a tratamento de dados. Mas, esse tipo de punição seria somente para reincidentes. Primeiro, a empresa é advertida ou multada.
*Reportagem de Joseanne Guedes e I’sis Almeida