Por Ernesto Marques*
Aos viventes desta era da sociedade da informação e do conhecimento são oferecidas múltiplas possibilidades, inclusive a pior delas, resumida na recusa a todas as demais. Mais do que nunca, desinformar-se é uma opção. É ato consciente. É escolha/decisão/julgamento sobre uma profusão de “que’s” e “quem’s” que se nos apresentam em velocidade estonteante.
Desinformar-se, deformar-se, ou mesmo permitir-se deformar bovinamente, é uma opção tomada no quarto des-iluminado da nossa intimidade, diante de algum tal dispositivo que, paradoxalmente, deveria nos conectar em redes de conhecimento/informação/aprendizagem.
Esta novíssima variante do ser humano não se materializa por detrás da imagem refletida no espelho preto. Longe de ser uma aberração virtual, é bem real. Feita de carne e osso, integrados numa rede corpórea comandada por um processador, por enquanto, insuperável, e movida pelos espasmos do músculo cardíaco.
A criatura medonha em que muitos de nós escolhemos nos transformar vai se criando, sequencialmente, em ínfimas frações de tempo. Entre o impulso elétrico deflagrador de uma sinapse neuromuscular convertida no movimento de um dedo. Impulso traduzido no gesto de … conectar!
É essa “coisa” em que muita gente se transforma quando se projeta no universo paralelo das redes sociais e, especialmente, dos aplicativos de trocas de mensagens. Assim se formam verdadeiras manadas de pessoas que, renunciando às melhores possibilidades de acesso e produção de conhecimento, estão sempre dispostas a um estouro pautado por uma moral de rebanho.
Ser boi não é apenas uma contingência desta quadra da aventura humana na terra. É, sim, uma escolha política da mais alta importância. Quem escolhe desinformar-se a ponto de se transmutar em boi ajuda a quem quer lhe fazer constar da manada, inescapavelmente, destinada ao abatedouro.
Ao mesmo tempo, o boi convicto ajuda também aos mesmos “quem’s” interessados em fazer com que outras pessoas não cogitem qualquer outra opção, a não ser a condição de boi. Igualmente cheia de conteúdo demasiadamente humano é a possibilidade de escolher ser besta. E de servir à Besta, às vezes, com gozo repetido 666 vezes. São escolhas que fazemos diante dos tais dispositivos, a cada clique. A cada toque, um fado, um tango, um samba… ou uma tragédia.
A cada clique, uma nano-decisão ética no automático e frenético gesto de clicar. E a cada clique, um dito. Surdo/cego/insensível… mas mudo, não! Às vezes, tão fatal e trágico quanto o apertar de um gatilho.
Falamos pelos dedos. E quem, como se dizia antigamente, fala pelos cotovelos, falando pelos dedos para o mundo real, precisa estar consciente de que é responsável pelo que acontece na vida de quem recebe o que você compartilhou. E ao compartilhar qualquer coisa, você compartilha também a decisão: compartilhar ou não compartilhar? Eis a questão.
A lógica do discurso moralista e raso acerca da responsabilidade do consumidor de drogas sobre as mazelas do tráfico encaixa-se muito melhor numa reflexão sobre o fenômeno das fake-news. É fato: o sub-mundo das notícias falsas e caluniosas só existe porque há pessoas dispostas ou até ávidas para consumir/compartilhar esses conteúdos, sem maiores preocupações com as possíveis repercussões nas vidas alheias. E como resulta, não raro, em linchamento virtuais ou mesmo reais, e estimula o suicídio (segunda causa de mortes entre jovens), pode e deve ser compreendido e tratado como problema de saúde pública.
Como doença ética deste capítulo da história da humanidade, escrito em tempo mais ou menos real, e em múltiplas versões “impressas” sobre múltiplas plataformas, a compulsão por compartilhar bem merece ser tratada como problema de saúde pública. E aqui, sim, cabe a comparação com o problemas das drogas. Como tal, não é guerra de onde se possa sair vitorioso. Porque, assim como na guerra contra o tráfico, o business é a própria guerra – que não pode ter fim.
Como remédio, a lógica punitivista das propostas de penalizar com cadeia e indenizações tem eficácia bastante questionável. A cura para essa doença ética negadora da própria natureza humana não está em nenhuma lei dura.
O melhor e talvez o único antídoto é a LEI-TURA. Leitura no sentido mais amplo possível, compreendendo todas as possibilidades sensoriais de absorver informações.
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*Ernesto Marques é jornalista e vice-presidente da ABI.
Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).