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Em 1882, Ruy Barbosa já enaltecia o Design

*Luis Guilherme Pontes Tavares

Emitido o comentário categórico – “Ruy Barbosa foi patrono do design brasileiro” –, fui buscar o lastro para a sentença. Dissera isso diante do designer gaúcho Gringo Cardia e da socióloga Bete Capinan enquanto diretores da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) lhes mostravam o acervo bibliográfico e documental do Museu Casa de Ruy Barbosa, ora resguardado no 8º andar do Edifício Ranulpho Oliveira, sede da Casa do Jornalista. Pois é. Foi Ruy Barbosa quem ofereceu o aval ao jornalista que assina este breve artigo.

O episódio ocorreu em 14 de julho passado, ocasião em que Gringo Cardia assinou contrato com a ABI, em ato em que o presidente da instituição, jornalista Ernesto Marques, manifestou a confiança de que o novo parceiro elabore projeto museográfico para assegurar a qualidade e a atratividade que o Museu Casa de Ruy Barbosa (MCRB) terá quando for reaberto, quiçá em 2023, ano do primeiro centenário de morte do extraordinário baiano, em cuja casa natal o equipamento seguirá atraindo visitante, como o fez durante muitos anos desde 1949.

Capa de “O desenho e a arte industrial”, Ruy Barbosa, 1882

O aval do jornalista, jurista, político, diplomata baiano Ruy Barbosa (1849-1923) à minha sentença é o discurso que ele proferiu em 23 de novembro de 1882 no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Homenageava então o arquiteto carioca Francisco Joaquim Bittencourt da Silva (1831-1911) por ter edificado, há 27 anos, o Liceu. O discurso “O desenho e a arte industrial” (aqui) foi publicado em folheto e enaltece a iniciativa e, na segunda das 23 páginas do documento, afirma: “O homem que concebeu a ideia deste instituto criou para o seu país um mundo novo.”

O DESENHO INDUSTRIAL

A preciosa peça redacional de Ruy Barbosa elogia Bittencourt da Silva pela relevância que emprestou ao desenho na formação educacional do brasileiro e ao espaço que ele assegurou às mulheres nos cursos do Liceu. Estávamos, é bom lembrar, em 1882, e as moças de então tinham o destino, quiçá honroso, de cuidar da casa e dos filhos. Ruy Barbosa, no discurso, passeia pelo mundo, sobretudo pelos EUA e pela Europa, acentuando a relação do desenho com a indústria e, assim, identifica, como preparado conhecedor da matéria, os países que se valeram do design industrial para expandir e diferenciar sua produção.

O autor de “O desenho e a arte industrial” informa:

“A noção da arte aplicada, como elemento essencial a todos os produtos da indústria humana, não existia, por assim dizer, antes da centúria [final do Século XIX] que atravessamos. A Escola dos Bronzistas Franceses, a Escola Industrial de Tolosa, as de desenho e pintura na fábrica de porcelana de Sèvres e raros institutos mais constituíam, até ao fim do século XVIII, os mais consideráveis, senão os únicos núcleos de educação técnica nesta ordem de estudos, num país, como a França, aclamado, entre todos, como o mais consumado produtor de trabalhos de gosto industrial nos tempos modernos. (…). O aspirante à iniciação nos seus mistérios penetrava na tenda do mestre, não para formar sistematicamente a sua vocação, mas para colher a alma do artista esparsa no sacrário da oficina, a sua intuição, a sua inspiração, o seu estilo pessoal. O público e o operário eram ignorados pela arte.”

O orador ressalta esta constatação:

“Hoje [1882], o ensino popular do desenho, que em si encerra a chave de todas as questões e de todos os destinos no domínio da arte, é, entre todas as nações cultas, um fato total ou parcialmente consumado. Já se pôde escrever que esse desideratum fixa em si a grande preocupação dos nossos dias.” E completa com novo elogio ao papel do desenho no desenvolvimento educacional e econômico da humanidade: “Que agente é esse, capaz de operar no mundo, sem a perda de uma gota de sangue, essas transformações incalculáveis, prosperar ou empobrecer Estados, vestir ou despir aos povos o manto da opulência comercial? O desenho, senhores, unicamente, essa modesta e amável disciplina, pacificadora, comunicativa e afetuosa entre todas: o desenho professado às crianças e aos adultos, desde o Kindergarten [Jardim de Infância] até à universidade, como base obrigatória na educação de todas as camadas sociais. Um quarto de século bastou-lhe para revolucionar assim as ideias, e produzir, na face das maiores nações, essas estupendas mudanças.”

E acrescenta:

“A indústria, nos nossos dias, utiliza, nas suas mais finas criações, o gênio e a habilidade artística no mais elevado grau. Entre esses dois domínios, que se discriminam simplesmente por uma gradação de matizes, há uma dependência indissolúvel: não é possível aparelhar o artista para as artes industriais, ‘sem aproximá-lo, até certo ponto, da vereda que conduz à grande arte’ [sem referência]. Na essência, pois, as belas-artes e as artes industriais são duas naturezas homogêneas e homorgânicas. Todavia, não se lhes confundem os papéis. Uma olha a efeitos superiores: é o fim de si mesma; paira independente nas regiões do ideal. A outra tende a esparzir o belo nos hábitos mais frequentes da existência humana. Uma não se entrega, senão a uma família necessariamente mais ou menos limitada de espíritos distintos; a outra não se recusa a ninguém. Uma repele a convencionalidade; imita livremente, nas suas concepções, as formas na natureza. Na outra, cuja lei é tratar como simples motivos as aparências gerais da criação, estilizando-as em tipos de beleza, a tendência naturalística exprime a incapacidade do artista e a sua estranheza aos métodos históricos.”

Liceu de Artes e Ofícios inaugurado em 3 de setembro de 1878 | Reprodução

O LICEU E O FUTURO

O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, após seguidas reformas, prossegue no mesmo endereço em que foi edificado na segunda metade do século XIX: Rua Frederico Silva, no Centro. Há mais de um século, Ruy distinguiu a instituição com estas palavras:

“O Liceu de Artes e Ofícios é a encarnação mais eficaz e mais completa deste movimento. Abri os olhos no seio dele, e involuntariamente perguntareis: é o Brasil? Eu ia perguntar: é a rotina? Não. É uma visão realizada. É uma miragem colhida por um gênio. É um oásis no areal. É o futuro. De ora avante, se quiserdes determinar a estatura aos estadistas nacionais, tendes aqui a medida: aferi-os pelo zelo com que tratarem esta casa, – permiti-me dizer-vos: este templo. Por quê? Porque o Liceu encerra em si a fórmula mais precisa da educação popular, e a educação real do povo é a educação da nação. Essa fórmula tem dois termos capitais: a educação pela arte e a educação pela mulher.”

E encerrou o discurso com estas palavras:

“Que diremos, pois, de uma instituição que alia em si, do modo como aqui as contemplamos, a cultura artística e a cultura feminil? Que essa instituição decifrou o segredo do nosso futuro. A política, a imagem da cegueira neste país, vai passando, a magoar a pátria sob a ponteira do seu bordão ferrado, enquanto as questões, de redor, tumultuam, desdobram impunemente os seus estragos, ‘como o fogo nos vales onde sopra o vento’[nota 11: Sófocles, Ájax], para afinal caírem sobre a nação com todo o peso dos seus males imprevenidos, no meio da confusão crescente dos interesses, dos princípios, através da qual parece estridular a ironia maligna do demônio da Divina Comédia, rindo da imprevidência que não conta com a lógica dos fatos. Resta, portanto, à iniciativa individual acordar o país. Neste sentido, o Liceu de Artes e Ofícios é um rasgo de heroicidade moral que inspira aos mais incrédulos uma confiança reanimadora. O nome de Bethencourt da Silva pertence ao número dos beneméritos cuja condecoração incumbe à história. Com ele os seus auxiliares, os entusiastas intrépidos, que se dedicaram à obra deste Evangelho vivo, formam, no horizonte do nosso país, a maior constelação do futuro. Se ‘o mal ensina o mal’ [nota 12: Sófocles, Elektra], praza aos céus que este bem semeie e reproduza indefinidamente a lição de tão esplêndido exemplo. Apoie-se com firmeza no chão popular. Apele com tenacidade para as classes produtoras. Descreia da velhice incurável, estreitando de dia em dia mais a sua aliança com a mocidade, cujo préstimo o Liceu soleniza na homenagem de hoje, com a mocidade, em cujo seio há batalhadores que podem confundir as caducas pretensões da esterilidade encanecida com a réplica de Hémon na tragédia antiga: ‘Se sou jovem, julga-me antes pelas minhas ações do que pelos meus anos’ [nota 13: Sófocles, Antígona]. Deste modo chegareis a consumar vitoriosamente o vosso compromisso; e, quando o país realizar a obra da emancipação contra a ignorância, a pior de todas as servidões, caberá ao Liceu de Artes e Ofícios a glória incomparável de ter assentado a pedra angular de um monumento mais forte do que os séculos.”

Artigo de Ruy disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_ODesenho_e_a_ArteIndustrial.pdf

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*Jornalista, produtor editorial e professor universitário. É 1º vice-presidente da ABI. [email protected]

Nossas colunas contam com diferentes autores e colaboradores. As opiniões expostas nos textos não necessariamente refletem o posicionamento da Associação Bahiana de Imprensa (ABI). 
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Literatura

Solitário do lado de fora

Aloísio da Franca Rocha Filho*

“Solitário do lado de fora…”

Solitário do lado de fora
percebo dentro de ti ainda
o que restou de nós…
fragmentos…
não têm centro…
caem pela tangente dos teus olhos
inteiros…
tua alma…teu doce sorriso
me animava
e das perguntas do meu semblante
respostas mudas valiam menos
do que beijos…
eles me convenciam mais
torci para que perdesses
o trem
preferiste ganhar os trilhos
na estação do aceno vão…

e… enquanto…
enquanto o trem apitava…
suas rodas de aço
sobre trilhos… sobre dormentes…
ensaiavam as primeiras notas
de sua antiga cantiga…
“café com pão
manteiga não…”
“café com pão
manteiga não…”

“Em algum lugar…”

Em algum lugar
onde a vida não seja um sopro
e reine um silencio total
para um homem
qualquer, existe?
Metafísica…
metafísica do
silencio total
jamais escutei
esse a b s o l u t o…
quem já o ouviu?
voo raso de uma vespa-fada voadora
derrubaria seu
reino…

No banco do jardim um…”

 no banco do jardim um velhinho
cabeça toda branca descansa
os passantes olham-no
como a dizer
a vida é longa…
fotografam…
soprando o vento a favor ali
e contra eles o futuro próximo
se lograrem aqueles fios brancos…
quão breve a vida…
dirão

______

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*Aloisio da Franca Rocha Filho é professor e jornalista; ex-diretor da Associação Bahiana Imprensa (ABI)

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“Andanças”, de Jeremias Macário

Augusto Queiroz*

Acabo de ler a obra Andanças – Causos, histórias e versos, lançada em 2019 pelo jornalista, poeta e escritor Jeremias Macário de Oliveira, de longa e profícua trajetória na imprensa baiana. É o quarto livro do autor, de 385 páginas, obra viabilizada em edição colaborativa através de “Livro de Ouro”, with a little help of his friends, que são muitos… São várias as estórias deliciosas do livro, como a do velho hippie “Sugador de Mentes”, que saiu da Bahia num velho navio e percorreu mundo – África, Europa, Oriente Médio, Ásia – num batidão mochileiro e aventureiro digno de um filme de Bogart, retornando depois de 30 anos para finalmente se fixar na Chapada Diamantina, onde leva vida seminômade em permanente diálogo com a natureza….

Jeremias Macário

Diferentemente dos dois últimos lançamentos do autor – A Imprensa e o Coronelismo e Uma Conquista Cassada – a obra Andanças é uma mistura de ficção com realidade, em prosa – crônicas, contos – e versos. Como o próprio autor diz é um livro “que pode ser lido a partir do início, do meio ou do fim”. A maior parte da obra, [correspondendo a] cerca de 200 páginas, é de poesia. E as primeiras 165 páginas trazem uma prosa diversificada e de agradável leitura. Ponto para o ex-seminarista Macário, que desistiu de ser padre para ingressar no curso de Jornalismo da UFBA em 1970, diplomando-se em 1973. Mesmo ano em que foi admitido no jornal A Tarde como revisor, atuando logo depois como repórter de geral, especial, economia, redator e outras funções. Em 1991 mudou-se para Vitória da Conquista onde chefiou a sucursal de A Tarde até 2005. De parabéns pois o veterano jornalista por nos brindar – desde o seu refúgio cultural na cidade de Vitória da Conquista – com essa leitura divertida e agradável, que surpreende e encanta.

* Jornalista

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