Sérgio Mattos*
O jornalista Valber Carvalho nos brindou, em fins de 2020, com o lançamento do livro intitulado Além da Fé: a vida de Irmã Dulce, com 624 páginas, narrando parte da vida da Santa, como resultado de um trabalho de mais de seis anos de pesquisa, envolvendo a consulta de 13 mil documentos e mais de 500 entrevistas. O livro (publicado pela Editora IRMABEM, de Salvador, foi impresso na Edigráfica, do Rio de Janeiro) foi muito bem produzido e apresenta também ilustrações preciosas e de valor histórico. O título do livro é perfeitamente adequado ao conteúdo e apresenta atratividade para o público-alvo, todos aqueles que desejam conhecer os detalhes da vida da primeira Santa brasileira.
Além da Fé tem objetivo claro e definido, sendo, portanto, forte candidato ao Prêmio Jabuti, não só pela relevância do tema, mas pela originalidade da narrativa brilhante, incisiva, concatenada e, principalmente, pela qualidade da linguagem do texto. Com parágrafos e capítulos curtos, o autor lançou mão de sua experiência profissional, como jornalista de impresso e de televisão, para criar um ambiente semelhante ao de um roteiro cinematográfico, pleno de detalhes que transportam o leitor para o local das narrativas como se lá estivéssemos a testemunhar o que está sendo narrado.
O primeiro volume da biografia de Santa Dulce começa no final do século XIX, quando da formação da família dela, concentrando-se, porém, no período a partir de 1914, ano de seu nascimento, até o ano de 1952, quando tinha 39 anos de idade, apresentando e esclarecendo elementos novos e diferenciados de sua vida. O segundo volume, no qual o autor já está trabalhando, abordará a intensa vida do Anjo Azul dos Alagados a partir de 1953 até os dias atuais. Vale destacar que a Santa da Bahia morreu em 13 de março de 1992, aos 77 anos, e que sua canonização foi iniciada no ano 2000, sua beatificação ocorreu em 2011 e foi canonizada no dia 13 de outubro de 2019.
Para narrar a história de vida de Irmã Dulce, o autor se utilizou da técnica da cartografia biográfica, na qual resgata a contextualização sócio econômica, geográfica e cultural de todo o período da narrativa. Na obra, o autor apresenta ideias e argumentos bem articulados e pode-se observar que todos os fatos são referenciados e foram checados para não deixar dúvidas.
Com este livro, Valber Carvalho deixa aflorar todo o seu potencial literário, dotado de uma sensibilidade acima da média para descrever as excentricidades sedutoras de Irmã Dulce, a teimosia e a paciência dela para concretizar todos os sonhos em servir aos pobres, indo, muitas vezes, de encontro aos interesses dos poderosos.
Com uma abordagem original, o autor soube explorar e humanizar a figura incansável de Irmã Dulce em sua luta diária, que a transformou em uma militante que não obedecia a regras de horário para comer, dormir e descansar, pois o tempo era curto e ela precisava resolver todos os problemas e vencer os obstáculos que se apresentassem. Se fosse necessário invadir terrenos ou casas para abrigar seus pobres e doentes, ela não hesitava.
Ela também não tinha vergonha para pedir contribuições para suas obras sociais, tendo se revelado boa administradora e com visão para os negócios, desde que voltados para a proteção e bem estar de seus abrigados. Ela frequentava os escritórios dos empresários e comerciantes poderosos da Bahia e depois resolveu também visitá-los em suas respectivas residências, pois entendeu que os empresários estavam doando apenas como pessoa jurídica e que poderiam também contribuir como pessoa física.
Valber descreve a ousadia e confiança dela em iniciar obras, mesmo não tendo recursos para tal, pois acreditava na providência divina e na ajuda de seu Santo Antonio, a quem pedia ajuda que sempre chegava no momento certo como que já previsto pelas leis de Deus e que de alguma forma ela tinha certeza de que chegaria e os problemas se resolveriam. Sobre a confiança dela em Santo Antonio, Valber Carvalho escreveu:
“Se fosse possível traçar um organograma da sua ação missionária, o Santo de Pádua funcionaria como um intercessor especial, com fácil acesso às hostes celestiais. Uma espécie de antena avançada, retransmissora de suas preces ao Altíssimo, a quem não hesitava reclamar quando um de seus inúmeros pedidos não era atendido. Em linguagem popular, Santo Antonio era seu procurador no céu” (pag. 333).
Paralelo à história de Irmã Dulce, outros personagens importantes e que também merecem um estudo aprofundado destacam-se na narrativa, a exemplo do próprio pai dela, Dr. Lopes Pontes; Frei Hildebrando Kruthaup, que criou uma rede de cinemas católicos em Salvador, emissora de rádio, gráfica-editora e um jornal, O Mensageiro da Fé; além de Raymundo Frexeiras, criador do Abrigo dos Filhos do Povo.
Enfim, vale ressaltar que, como leitor, estou ansioso pelo segundo volume da biografia de Irmã Dulce. Enquanto isso, recomendo a leitura atenta da primeira parte dessa obra, para que descubram o quanto a Santa tinha visão de marketing político e habilidade para arrancar donativos para suas obras sociais. Entre outras coisas ela montou hospital, creche, escolas, farmácia para distribuição de medicamentos e foi, talvez, a primeira pessoa a idealizar o ticket refeição e a implantar uma cesta básica que era distribuída de acordo com a necessidade de cada família. Neste primeiro volume, ou primeira parte, o autor apresenta coerência do começo ao fim.
*Jornalista, professor da UFRB, doutor pela Universidade do Texas, autor de livros de Comunicação e ficção. É 1º vice-presidente da Assembleia Geral da ABI.
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