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Opinião: Amar a cidade

Por Aloísio da Franca Rocha Filho*

Não se ama uma cidade apenas porque aí se nasce. O amor à pessoa, natural, precede o amor à cidade. O amor à cidade é um sentimento mais tardio. Chega com a idade da razão, a percepção, a inteligência e o sentimento do indivíduo antenados à vida prosaica urbana que estimula gostos por lugares naturais e espaços urbanos, o que neles se constroem ou não para o convívio social. Por isso, o amor à cidade jamais escapou dos laços afetivos dos indivíduos. Suas confissões públicas lotam a literatura, as artes, a filosofia, a arquitetura, a canção. O exemplo maior procede mais uma vez da Antiguidade e de duas cidades ícones e rivais: Atenas e Esparta.

Este tema – o amor à cidade – recentemente alimentou-se de uma boa nova que lhe deu asas. O Rio de Janeiro.  Primeira cidade do mundo a receber o título de  Patrimônio Artístico Mundial como Paisagem  Cultural, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Nada mais justo para o Rio, para os cariocas, e por que não para nós brasileiros que, de há muito, nos deleitamos com o Rio, ele mesmo uma paisagem, incrustado em belas paisagens. Talvez até um reconhecimento tardio desta obra de Deus que a mão do carioca ora conserva e melhora ora agride e mexe para baixo a sua beleza. Coisas próprias do ser humano atuando como uma “espécie de deus protético” (Freud),que deambula daqui para ali com suas criações na busca da felicidade, mas parece hoje não se sentir feliz com tal semelhança.

O Rio de Janeiro continua lindo. Com todos os seus problemas. A sua recente descoberta pelo olho mundial pós-moderno confirma o que o Rio fotografou de há muito no olho da tradição e entre nós: beleza e sedução.

Mas um pedaço da Bahia, o Centro Histórico de Salvador e nele encravado o Pelourinho, também  recebeu em 1985, o honroso titulo de Patrimônio Artístico e Cultural da Humanidade da mesma UNESCO. Menos pela passagem do dedo de Deus por ali (embora não Lhe faltem invocações),mas mais pelo reconhecimento do seu valioso acervo arquitetônico historicamente marcado pelos trabalhos do senhor e do escravo, do artesão e do homem livre, enfim, da carne na pedra.

Seus frutos: igrejas e conventos, sobrados e monumentos, praças e fontes, ruas e calçadas, calhas e esgotos. Ali circulavam homens, mulheres e crianças para seus trabalhos e lazeres, o comércio do suprimento e reposição de mercadorias, o sobe e desce das gentes da cidade alta para a baixa. O Centro Histórico e o Pelourinho eram um lugar de uso, de concentração de serviços, de equipamentos públicos  e também de odores.

No passado recente projetos equivocados contribuíram para evanescer essa mobilidade. Hoje desértico, perigoso, um oásis da droga e do crime. Ao turista resta a foto-lembrança de um espaço público em decomposição. Contudo, lá sopra o que mais sutil se move e se reinventa: o vento fresco, colonial e  barroco da acrópole na cara dos passantes a rodopiar, ainda, as saias das mulheres baianas e das turistas.

Vivemos então em uma cidade também porque a amamos, e desejamos continuar neste território.  A perda de um espaço público dessa magnitude cultural debilita a sociabilidade, rebaixa a nossa auto-estima, cava um lugar de dor no nosso corpo.

Tanto mais quando uma cidade, ou parte dela, ganha foros de Patrimônio Cultural da Humanidade. Aí ela dá um salto. Ela que nunca foi só de seus filhos – muitos ainda pensam assim- mas, de todos os que a pretendem, se alarga.  Neste sentido, ela não se globaliza, se mundializa. Sem amor uma cidade não vive. Nem resiste.

Os atuais poderes público municipal e estadual conservam  este patrimônio da Humanidade na Bahia? Os futuros o revitalizarão?

Amar aqui é verbo transitivo. Amar a cidade. No plano da língua estamos salvos porque carece totalmente poder ao poder político a metamorfose do transitivo em intransitivo. Mas este poder político pode deixar morrer parte do Centro Histórico de Salvador (Pelourinho), espaço significativo da cidade e aqui objeto do transitivo amar. Se o poder político chegar até lá dolorosamente perguntaremos: amar o quê?

*Aloísio da Franca Rocha Filho é jornalista e diretor da ABI – Associação Bahiana de Imprensa. Originalmente publicado no Jornal A Tarde.

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ABI BAHIANA Notícias

Após denúncias de abandono, projeto prevê restauração do Paço Arquiepiscopal

Fachada do Palácio Arquiepiscopal, cuja notável beleza arquitetônica já não consegue esconder a degradação – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Um olhar mais atento sobre a Praça da Sé não deixa escapar a degradação do Palácio Arquiepiscopal de Salvador, considerado um dos maiores exemplos de arquitetura civil do período colonial brasileiro. O prédio construído no início do século XVIII integra a principal vitrine turística e cultural da Bahia, o Centro Histórico de Salvador, mas convive com o abandono evidenciado por janelas semiabertas, vidraças quebradas, paredes desgastadas, além da vegetação que se estende ao telhado, que também reclama reparo. Fechado há mais de uma década, o Paço Arquiepiscopal compõe o cenário de descaso com o patrimônio encontrado na Praça da Sé, onde há mármores sujos e quebrados, os bancos da praça foram transformados em pontos comerciais pelos ambulantes e até os degraus da entrada do Paço são utilizados como camas por pessoas em situação de rua.

Criada em 25 de fevereiro de 1551, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia foi a primeira diocese do Brasil, uma das mais antigas das Américas, e possui o maior arquivo eclesiástico da América Latina. Quando elevada à arquidiocese, em 1676, foi, durante mais de duzentos anos, até 1892, a maior arquidiocese do mundo. O Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador inclui livros de batismo, casamento e óbito registrados na capital, no Recôncavo e no Sertão, dentre outros documentos importantes que revelam aspectos sociais, políticos e culturais da Bahia.

O Palácio do Arcebispado traz ao fundo o monumento da Cruz Caída, erguida em homenagem à antiga Igreja da Sé – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Já o Palácio Arquiepiscopal, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1938, data do ano de 1707 e se comunicava, através de uma pequena passarela, com a Igreja da Sé. O processo de reurbanização do centro de Salvador ignorou a relevância histórica do edifício da antiga Igreja da Sé, que foi demolido em 1933 e deu passagem à linha do Bonde da Companhia Linha Circular de Carris da Bahia – em meio aos protestos da sociedade baiana e de outros estados -, e, posteriormente, à atual Praça da Sé. A demolição da Sé construída no governo de Tomé de Souza foi tema da tese acadêmica “Memória da Sé”, do professor, escritor e poeta baiano Fernando da Rocha Peres. A polêmica causada pelo fato também foi abordada, numa perspectiva histórico-arqueológica, pelo ensaio monográfico do museólogo Carlos Alberto Costa, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Após um acordo firmado entre a Arquidiocese de São Salvador e a Universidade Católica de Salvador (UCSal), o fundo arquivístico foi transferido do Palácio Arquiepiscopal para o Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de Andrade Veiga (LEV), da UCSal. De acordo com um levantamento feito pelo bibliotecário do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Cristian José Oliveira Santos, e publicado pela Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação, após tratamento, o fundo retornará integralmente para o Palácio Arquiepiscopal. No entanto, isso não deve acontecer até que o prédio sofra intervenções que garantam o armazenamento adequado dos documentos.

Segundo dados do primeiro volume do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia – IPAC/SIC, pesquisa coordenada pelo arquiteto Paulo Ormindo Azevedo, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), as últimas obras de conservação do Paço foram realizadas em 1964, quando houve “caiação externa, pintura de esquadrias e limpeza de cantaria”, afirma o documento publicado em 1975. Desde então, não houve qualquer intervenção para preservação do prédio.

“O prédio foi desativado no final da década de 60, mas ficou ali o arquivo da arquidiocese, com um funcionário que atendia a eventuais visitantes e pesquisadores. O abandono completo se deu com a transferência do arquivo para a Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Quando fizemos o inventário, o prédio já estava transformado em um arquivo morto da arquidiocese. Sem ninguém trabalhando ali, já começava o arruinamento. No fundo, tudo se deve à falta de conservação”, lembra o arquiteto.

Abandono

A situação de abandono do Palácio Arquiepiscopal, também conhecido como Palácio do Arcebispado de Salvador ou Palácio Arquiepiscopal da Sé, vem sendo denunciada há anos, com o intuito de despertar o interesse da população para conhecer sua história e incentivar a manutenção e preservação do acervo.

Uma das denúncias foi feita em março do ano passado pelo diretor cultural da Associação Bahiana de Imprensa (ABI-Bahia), Luis Guilherme Tavares. No artigo publicado pelo jornal Tribuna da Bahia, o jornalista classifica o descaso com o Paço como um problema “gritante” e afirma que “sua imponência não disfarça a ruína que pouco a pouco abate os quatro andares do prédio”.

Já o superintendente regional do Iphan, Dr. Carlos Amorim, nega a degradação. “O prédio não tem condições de ser utilizado, mas não está degradado. Aos olhos de quem trabalha com patrimônio histórico, ele está em situação muito razoável e de fácil recuperação”, defendeu.

À direita do Palácio, o prédio do antigo cinema Excelsior também está abandonado – Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Após anos de desambientação e descaso, o prédio deve ser restaurado, através de um projeto aprovado pelo Ministério da Educação, com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O projeto apresentado pelo arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, prevê a restauração completa do equipamento. De acordo com a arquidiocese, não há ainda previsão de abertura do palácio, pois dependerá da captação de parte dos recursos necessários e da execução das obras.

No ano passado, o Programa de Extensão Que Cidade é Essa?, coordenado pelo professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Márcio Campos, realizou um workshop homônimo que também abordou a situação do palácio e demais prédios da área do Centro Histórico de Salvador. Ele criticou a atuação de órgãos encarregados de proteger o patrimônio. “O poder público precisa estar à frente do processo, mas com uma compreensão de participação democrática da sociedade. É preciso questionar os mecanismos de representação hoje reconhecidos como tal. Se entendermos que cabe a estes órgãos agir para a proteção do patrimônio, o estado em que se encontram os azulejos do claustro da Igreja de São Francisco, por exemplo, fala por si”, afirmou o arquiteto.

Segundo Campos, o problema do Centro Histórico “envolve uma série de questões entrelaçadas: o centralismo da gestão associado a uma especulação fundiária e a interesses políticos, a falta de detalhe e cuidado com que o patrimônio arquitetônico foi tratado nos últimos 40 anos, em especial decorrentes da velocidade com que o volume da intervenção dos anos 90 foi efetuado”.

Projeto de recuperação

O arcebispo Dom Murilo Krieger reconhece que, em toda a América Latina, não há uma diocese com tantas obras artísticas e históricas como a de Salvador e destaca a importância do Palácio Arquiepiscopal. “Há muitas igrejas e prédios que precisam ser restaurados. Contudo, em um encontro com o superintendente regional do Iphan, expressei o desejo de que fosse dada prioridade absoluta ao Palácio da Sé, por ser um patrimônio de valor inestimável, de uma beleza única e de uma importância histórica especial. Foram dados vários passos para a concretização desse objetivo. Fomos ao Rio de Janeiro, na sede do BNDES, que assumirá a metade dos custos previstos para a restauração. Estamos atrás da outra metade”.

Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

Em 2002, a Cúria Metropolitana já havia tentado, sem sucesso, aprovar em Brasília uma proposta de restauração. Com a aprovação do projeto apresentado pelo arcebispo, o Palácio deve sofrer reformulação total. A antiga residência dos arcebispos dará espaço ao “Memorial da Igreja Católica Brasileira”, além de espaços para exposição, salas para a restauração de imagens e, também, para a restauração de documentos. Ao lado, a Prefeitura de Salvador pretende instalar uma espécie de museu dinâmico da cidade, no Cine Excelsior. O projeto estimado em 18 milhões, que inclui restaurações artísticas e arquitetônicas, já recebeu os primeiros recursos e está na fase de elaboração dos projetos executivos e complementares, como as partes de hidráulica, elétrica e iluminação.

De acordo com o superintendente regional do Iphan, Dr. Carlos Amorim, restaurar patrimônio tombado não é obrigação do órgão. “A lei de tombamento brasileira restringe o direito de propriedade, para preservar a memória nacional. Ela não é uma desapropriação. Há um grande equívoco em relação a isso. As pessoas são responsáveis pelos seus imóveis, independentemente de serem tombados ou não. O proprietário tem que provar que não tem recursos. E não é o que vemos ao passar, por exemplo, pelo bairro do Comércio, em que cada imóvel degradado exibe uma placa de vendas com o número do respectivo corretor”, afirmou o dirigente.

Para ele, o abandono dos imóveis comerciais e sua perda de função no Centro fizeram com que tudo entrasse em decadência e degradação. “Salvador tem um dos maiores sítios tombados contínuos do mundo. Isso é um problema muito grande porque o centro de Salvador não tem grandes finalidades, não cumpre funções sociais relevantes. Nosso propósito é recuperar tudo, mas os recursos são escassos e precisamos estabelecer parcerias como a que vai possibilitar a restauração do Palácio Arquiepiscopal”, completa.

Vista a partir do último andar do Edf. Ranulpho Oliveira, sede da ABI/ Foto: Joseanne Guedes/ABI-Bahia

A diretora do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), professora Consuelo Pondé, que também é presidente do Conselho Consultivo da ABI-Bahia, revelou que o arcebispo foi convidado para uma reunião na sede da associação. “Nós, da ABI, convocamos o arcebispo para uma conversa sobre o monumento arquitetônico. Mas, delicadamente, ele recusou-se a comparecer à sede, sob a alegação de que já estava tomando providências. Não sendo nordestino, como o D. Avelar Brandão Vilela, que sempre acolheu as convocações da Casa da Imprensa, ele não sabe como seria importante dar conta dessas medidas”.

Para a dirigente, que chegou a publicar um artigo no jornal Tribuna da Bahia sobre o abandono do palácio, “todo imóvel requer conservação e ocupação”. Em sua fala, há ainda esperança de que o Paço volte a ter uma ocupação digna e à altura de sua importância histórica. “Que bom que D. Murilo tenha se sensibilizado com o estado deplorável da bela construção e obtido recurso para sua recuperação”, analisa a professora.

Por Joseanne Guedes

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