Até os 19 anos, João Machado viveu no mês de agosto a expectativa da viagem de ida e de volta do pai, na carroceria de um caminhão de romeiros, de Xique-Xique a Bom Jesus da Lapa, cidades da margem direita do Rio São Francisco, no Oeste da Bahia. Somente em 2002, aos 31 anos, já como fotógrafo profissional, foi pela primeira vez a Bom Jesus da Lapa e passou a repetir esse percurso, sempre a registrar simbolicamente a presença do pai, numa espécie de busca de uma herança afetiva.
A Fundação Pierre Verger reuniu esse trabalho de duas décadas no projeto “16 Ensaios Baianos” e lançou a exposição Herança do Pai, no final de março, com o apoio do Governo do Estado, através do Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura da Bahia. O catálogo será lançado no próximo sábado (17), às 15h, com visita guiada pelo fotógrafo João Machado, na Fundação Pierre Verger Galeria, na Rua da Misericórdia, Centro Histórico de Salvador. A publicação de 52 páginas, no formato 15×15, traz mais oito fotos além das expostas na galeria.
O projeto “16 Ensaios Baianos” foi iniciado em setembro passado pela exposição Vaqueirama, de Ricardo Prado, encerrada no dia 24 de março. O objetivo da ação é também estimular o mercado, com a venda das fotografias revertida principalmente para o artista.
Herança do Pai
As 23 imagens da exposição e as demais que integram o catálogo foram escolhidas pelos fotógrafos Célia Aguiar e Paulo Coqueiro e pelo coordenador cultural da Fundação Pierre Verger, Alex Baradel, numa curadoria coletiva. A exposição fica em cartaz até o dia 16 de julho.
Alex Baradel chama atenção sobre a originalidade do olhar de João Machado para a romaria da Lapa, um assunto bastante fotografado. “A gente conseguiu selecionar fotos que vão nesse sentido do trabalho dele, de não mostrar a romaria de forma mais clássica, mas sob esse olhar que foge do lugar comum, fazendo enquadramentos originais, botando pessoas desfocadas na frente, cortando pessoas, trabalhando muito a luz como ele sempre faz, pegando mais o cotidiano das pessoas ali naquele lugar, de forma poética e original”.
Descrita e denominada de Meca do Sertão por Euclides da Cunha, no livro “Os Sertões”, Bom Jesus da Lapa recebe a mais antiga romaria do Brasil. Com mais de três séculos de história, a Lapa é um dos três mais importantes destinos de fiéis católicos do país, ao lado de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo, e do Padre Cícero, no Ceará.
“De alguma forma, tento até hoje fazer a foto dele. Alguns personagens que fotografo me remetem muito a ele. Eu fico perguntando o que estaria fazendo ali naquele lugar, naquela hora do dia, com aquelas pessoas”, revela João Machado.
João Machado
A fotografia documental de João Machado começou a ganhar mais visibilidade na Copa de 2014. Seu registro de uma partida de futebol de várzea em Bom Jesus da Lapa foi parar na capa do jornal The Washington Post, em matéria assinada pelo então correspondente Dom Phillips, morto há um ano, em Atalaia do Norte (AM). A originalidade e o rigor técnico das suas fotos chamaram a atenção da Nikon, que o convidou para uma exposição na Galeria Nikon, em São Paulo, e em seguida para a campanha “Eu sou a diferença no olhar”, do lançamento de um novo modelo de câmera. É o único fotógrafo brasileiro que participou de uma campanha publicitária da empresa japonesa.
João Machado nasceu e viveu a primeira infância na roça, numa casa de taipa de uma ilha no Rio São Francisco, próximo ao povoado de Marrecas, distrito de Xique-Xique, a 588 quilômetros de Salvador. Aos 19, foi para São Paulo, onde trabalhou como ajudante de pedreiro. Comprou de um colega uma máquina usada e mergulhou no universo da fotografia. Um defeito na câmera o fez perder o primeiro filme, totalmente velado.
Depois de consertar a máquina, tentou novamente, mas acabou cortando as cabeças do time de futebol formado pelos seus amigos: ele não conhecia o erro de paralaxe das câmeras compactas, cujo visor, ao lado da lente por onde a imagem é captada, permite um ângulo diferente de visão, o que ocasiona um desvio de enquadramento. Passou a praticar, fez curso, trabalhou como fotojornalista. Hoje, João devolve o aprendizado em cursos de fotografia avançada.